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Armazenagem em portos secos e aquáticos pode não ser tributada pelo ISS

Antes da efetivação da reforma tributária, ainda é possível que recintos alfandegados se livrem da incidência de ISS sobre a armazenagem.

3/4/2024

Chegou o momento de se lançar luz no que pode ser uma das últimas oportunidades de ressarcimento de ISS indevido, antes que este imposto deixe de existir, com o inevitável advento da reforma tributária.

Estamos tratando do ISS que diversos recintos alfandegados, portos secos ou aquáticos, recolhem sobre uma dada atividade, apelidada de “armazenagem. Não nos referimos à geral, a qual é, sim, pela incidência de ISS, justamente porque na maioria das atividades não há separação entre a locação e a prestação de serviços. Isso é o que está prescrito no item 20.01 da lista de serviços da lei Complementar 116/03 (norma geral do ISS), quando a regra faz menção à tributação de serviços portuários pelo ISS e, neles, inclui a armazenagem de qualquer natureza. O dispositivo legal aponta visivelmente para a maioria dos casos portuários, que possuem atividades misturadas, mistas, nesse sentido, ou sem dissociação entre os serviços e a locação ou cessão. A LC 116 também se refere a portos em geral, sem trazer para seu texto eventuais especificidades das realidades de alguns portos que também sejam recintos alfandegados, o que demandam análise caso a caso.

Sobre o ISS, cabe destacar o fundamento doutrinário principal para o tema, qual seja, os trabalhos do saudoso professor Aires Fernandino Barreto, que contribuíram para que o STF aprovasse a SV - súmula vinculante 31, em 4/2/10.

O instituto da SV significa o posicionamento uniforme e sobre o qual não paira nenhuma dissidência, que o STF constrói acerca de uma determinada matéria, a partir de inúmeros precedentes no mesmo sentido do próprio tribunal (RE 455.613 AgR, RE 553.223 AgR, RE 465.456 AgR, RE 450120 AgR, RE 446.003 AgR, AI 543.317 AgR, AI 551.336 AgR, AI 546.588 AgR, RE 116.121, para o caso do ISS). Essa convicção, obrigatoriamente, deve ser adotada por toda a Administração Fazendária e por todo o Poder Judiciário, como determina o art. 103-A da Constituição. 

A frase que resume o entendimento da referida SV 31 é a seguinte: É inconstitucional a incidência do ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - sobre operações de locação de bens móveis.

Obviamente, a frase é uma síntese do ponto de vista do STF. E esse posicionamento tornou-se cada vez mais claro ao longo dos anos, como se pode constatar nos seguintes processos: AI 758.697 AgR/RJ, ARE 656.709 AgR/RS, AI 854.553 ED/MG, Rcl 14.290 AgR/DF, Rcl 28324/SC, RE 449.516 AgR/MG, dentre outros. Inclusive, em 2023, no julgamento da ADI 5.869/DF, o ministro Gilmar Mendes ressaltou que toda a SV 31 continua plenamente válida para o STF, apenas a ela se acrescendo a visão de que a utilidade que é oferecida para outrem no oferecimento serviço, e por outrem pretendida, é igualmente um norte relevante para a tributação ou não pelo ISS, ponto que também é relevante para o caso aqui tratado. 

Para nosso tema, consolidou-se o entendimento no STF de que, na maioria das situações, o ISS incide integralmente na operação, como ocorre sempre que houver uma atividade com natureza de cessão ou locação em conjunto com a prestação de serviços, porém que se ache com ela misturada, mista a ela, indissociável dela. Entretanto, quando estiver apartada, com cobrança diferenciada, com objeto e discriminação claramente distintos, notadamente separando-a dos serviços, o ISS incide nestes, sem, no entanto, alcançar a locação ou cessão de coisas. Um exemplo disso, como será mostrado adiante, pode ocorrer quando aquilo que é contratado é o local para a realização do chamado depósito necessário. Mas, em suma, quanto ao verbete da SV 31 do STF, não importa se a atividade de locação é de bens móveis ou imóveis, posto que nenhuma locação, desde que apartada, é passível de incidência de ISS (vide no STF o AI 854553 ED MG), pois, locação ou cessão remunerada é fato gerador de tributos da União e não dos municípios (vide RE 634.764/RJ).

O ministro Gilmar Mendes também ressaltou que se, em uma dada atividade, a predominância for o oferecimento de uma utilidade prestacional (um serviço) e, como tal, buscado por outrem, como está nos itens da lista de serviços da lei complementar do ISS, nenhuma exceção há na tributação pelo ISS. É o que acontece com a cessão de espaços em cemitérios, totalmente atingida pelo ISS porque completamente misturada com serviços prestados, característicos de tais campos-santos, os quais, inclusive, são o objetivo principal buscado na contratação. 

Porém, em um recinto alfandegado, observa-se essencialmente a busca pelo usuário do espaço para estadia de coisas até o desembaraço aduaneiro. Tal busca, até mesmo, decorre de obrigação legal (decreto-lei 37/66 e IN RFB 1.702/17). Trata-se do chamado depósito necessário, normalmente advindo de imposição normativa (vide art. 647 do Código Civil). Contudo, ainda nesses casos, a exceção de não tributação pelo ISS somente se dá nas atividades com natureza de cessão ou locação e que estejam dissociadas dos serviços. 

Foi exatamente essa exceção que, desde 2012 mostrou-se perfeitamente possível a verificação de estarem distintas a prestação de serviços e a locação ou cessão de espaços para a estadia de mercadorias até o desembaraço aduaneiro. Para tais casos, em específico, a armazenagem é meramente uma alcunha, um apelido, posto que se trada fundamentalmente de uma locação!

Cabe ressaltar que, para o Direito Tributário, identifica-se o fato gerador do tributo examinando-se sua natureza jurídica, sendo irrelevante a denominação que possa lhe ser atribuída (vide, dentre outros, art. 4º, I do CTN e art. 1º, § 4º, da LC 116/03). Ou seja, os efeitos tributários devem ser somente apreciados à luz da natureza jurídica do fato gerador do tributo.

Nitidamente por isso é que se optou por se iniciar pela primeira instância judicial a discussão sobre a indevida cobrança de ISS em recintos alfandegados que têm apartada, e perfeitamente identificável, a locação ou cessão de espaços, distinguindo-a dos serviços lá ocorridos subsidiariamente. Em verdade, teria sido possível escolher-se a elaboração de uma reclamação, diretamente ao STF, nos termos do § 3º do art. 103 da Constituição, uma vez que a temática em questão é atinente exclusivamente à violação da SV 31 daquele tribunal constitucional. Mas, afastando-se de atalhos inadequados, priorizou-se pela análise criteriosa do fato gerador, que somente pode ser realizada pelo Poder Judiciário do local em que se realiza a atividade, principalmente pela Primeira Instância. 

O exame pelas instâncias superiores, de Brasília, necessariamente e unicamente, deve corresponder à aplicação do direito sobre os fatos que foram destrinchados e depois consolidados pelas instâncias iniciais – o STJ e o STF partem dos fatos existentes no processo, não podendo desconsiderá-los. Numa síntese simplificada, para o ISS do recinto alfandegado, pode-se dizer que o STJ deve observar se um dado caso concreto violou a LC 116/03 ou outra lei federal. E o STF deve verificar se houve contrariedade ao que a Constituição apresenta como competências do Município e da União, em caso de locação, verificando também a vulneração à sua Súmula Vinculante n. 31.

Os dois casos reais que merecem destaque, em início de abril de 2024, data deste artigo, estão discutidos nos processos de nos 0715535-20.2012.8.04.0001 e 0715529-13.2012.8.04.0001, ambos iniciados em Manaus/AM, na origem distribuídos para a 2ª vara da Dívida Ativa Municipal de Manaus. Referem-se a recintos alfandegados (porto seco e fluvial), justamente nos quais a locação não está baralhada com os serviços, ao contrário, encontra-se totalmente dissociada, seja em sua identificação, seja em seu objeto ou mesmo em sua cobrança. 

Em ambos os processos, observam-se até vinte e quatro atividades realizadas. Dessas, vinte e três têm a natureza de serviços e, apenas uma, a nítida natureza de locação, apesar de descrita como armazenagem. São elas: (1) amarração, (2) desamarração, (3) reboque, (4) verificação do ISPS code, (5) contratação de seguro, (6), inspeção não invasiva, (7) pesagem, (8) ovação, (9) desova, (10) transporte interno, (11) quebra de lacre, (12) colocação de lacre, (13) abertura de carga em contêineres, (14) fechamento de carga em contêineres, (15) handling in, (16) handling out, (17) separação de cargas, (18) registro de trânsito, (19) monitoramento de contêiner frigorificado, (20) controle de cartão magnético de pedágio, (21) colocação de adesivo IMO, (22) retirada de adesivo IMO e (23) fotografia de contêiner ou veículos; estas são os serviços distintos da locação e que, por isso, devem sofrer a natural incidência do ISS, como de fato sofrem; porém a (24) “armazenagem”, especificamente nos referidos portos, tem a clara natureza de cessão remunerada de espaço para estadia de mercadorias em contêineres até o desembaraço aduaneiro, ou seja, locação de espaço.

O fato, a locação ou “armazenagem” praticada por referidos portos, recebeu criteriosa análise pela Primeira Instância e pelo TJ/AM (por até 26 desembargadores diferentes, praticamente todo o plenário daquele tribunal). Os casos sofreram um total de dez avaliações por referidos juízos – um deles com análise em (1) liminar, (2) agravo, (3) pedido de suspensão da segurança e (4) apelação; outro, com análise em (1) liminar. (2) agravo. (3) embargos de declaração, (4) outros embargos de declaração, (5) pedido de suspensão da segurança e (6) apelação.

Em todos esses dez julgamentos o resultado foi o mesmo, demonstrando a fortaleza da construção jurídica e do Direito aplicável: a “armazenagem” dos casos concretos não correspondia à armazenagem descrita na LC 116/03, mas, de fato, tinha a natureza jurídica de locação de espaços, distinta dos serviços.

Como aqui mencionado, tais processos tiveram seu início em 2012, sendo que hoje (início de abril/24) se encontram em andamento, e, se não sofrerem qualquer ocorrência incomum, encerrar-se-ão somente no STF, uma vez que foram calcados exclusivamente na Constituição e na SV 31 da referida corte constitucional.

Um dos casos, obviamente, teve o recurso do município com seguimento negado pelo STJ, tramitando ainda um recurso da municipalidade. No outro, pedimos vênia para dizer que o digno ministro Relator parece não ter observado que não estava diante da armazenagem portuária descrita na LC 116/03. Em verdade, o caso que lhe chegara às mãos adveio com o fato concreto já devidamente comprovado, por isso indiscutível no STJ: a respectiva atividade era efetivamente uma locação de espaços, perfeitamente apartada em tudo, inclusive em seu objeto, em sua descrição e em sua cobrança – este caso, logicamente, também está tramitando nesta data com recursos do porto, já admitidos e a serem julgados.

Aliás, o próprio município de Manaus pareceu reconhecer a evidência fática, posto que as razões originais de seus recursos ao STJ e STF foram incomumente sucintas, uma com seis laudas, outra com apenas cinco, respectivamente, aparentando estar apenas cumprindo o dever legal de recorrer.

Mas, independentemente do que vier a acontecer com os processos, até mesmo se houver desistência deles, o ponto principal já está definido:

O fato concreto já recebeu análise do Poder Judiciário competente, que unanimemente reconheceu o afastamento do ISS da parte correspondente à locação de espaços nos recintos alfandegados, independentemente de tal locação ser denominada por armazenagem, aplicando ao fato o entendimento do STF. É isso que pode ser aproveitável por todos os portos, desde que estejam em igualdade de condições!

Passando a vigorar a reforma tributária, o ISS deixará de existir, deixando o porto de discuti-lo, daí a constatação de ser esta a hora para pleitear judicialmente a recuperação do ISS recolhido a maior nos últimos cinco anos, também reduzindo-se de forma relevante a carga tributária atual, com a separação, na base de cálculo do ISS, os serviços da locação mensal, apenas alcunhada por armazenagem, conforme o que se explicou acima. Não poderíamos nos calar diante disso, pois, como bem ensinou o mestre Jesus, “ninguém acende uma candeia para pô-la debaixo do alqueire; põe-na, ao contrário, sobre o candeeiro, a fim de que ilumine a todos os que estão na casa” (Mateus, 5: 15).

Nicolau Abrahão Haddad Neto
Sócio fundador da Advocacia Haddad Neto. Professor convidado da FGV/SP. Palestrante e parecerista em Direito Tributário. Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pelo CEU.

Robinson Vieira
Sócio da Advocacia Haddad Neto. Advogado tributarista. Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e pelo IBET. Especialista em Direito Empresarial pela PUC/SP.

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