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Projeto de regulação de motoristas de aplicativo: Análise e possíveis impactos aos usuários-consumidores

Iniciativa legislativa mira regulamentação de trabalho para motoristas em plataformas digitais, prometendo impactos significativos tanto para trabalhadores quanto consumidores.

14/3/2024

No dia 4/3/24, o Presidente apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei cujo foco é regularizar as condições de trabalho dos motoristas independentes que, por meio de plataformas digitais, realizam o transporte de passageiros. Esse movimento coloca o Brasil no centro de um debate global sobre a regulamentação do trabalho em plataformas digitais, trazendo à tona comparações inevitáveis com iniciativas em outras partes do mundo, como a controversa proposta 22 na Califórnia (EUA) e regulamentações em países europeus, que buscam equilibrar a flexibilidade do trabalho independente com direitos trabalhistas básicos.

Atualmente, os motoristas e entregadores de aplicativos no Brasil operam na qualidade de empreendedores independentes, que se cadastram na plataforma para prestar os mais variados tipos de serviços diretamente a clientes-usuários que buscam contratá-los, podendo dispor livremente quando e se disponibilizara' seu serviço de transporte bem como sem qualquer exigência de carga horária de trabalho mínimo ou número mínimo de viagens por período.

Tanto o STJ, como o TST, já possuem reiteradas decisões reconhecendo a inexistência de vínculo de emprego ou de trabalho entre as plataformas digitais, como Uber e 99POP, e os motoristas ou entregadores independentes. De toda forma, o projeto pode provocar discussões sobre a responsabilização civil das plataformas em caso de acidentes e incidentes ocorridos durante os trajetos.

A proposta legislativa estipula uma remuneração mínima para os motoristas, definindo um limite de trabalho diário de até 12 horas, com um mínimo de 8 horas diárias para acesso ao piso salarial. Inclui também contribuições ao INSS, auxílio-maternidade e um pagamento mínimo por hora trabalhada de R$ 32,10. O texto permite que motoristas se cadastrem em múltiplas plataformas, proibindo a exigência de exclusividade por parte das empresas. A exclusão de motoristas pelas plataformas só poderá ocorrer mediante prova de fraude ou violação dos termos de uso.

Outras disposições importantes dizem respeito à transparência e acesso à informação, garantindo aos motoristas dados sobre a oferta de viagens, avaliações, bloqueios, suspensões e exclusões, além dos critérios de remuneração, que deverão ser disponibilizados mensalmente em relatórios claros e compreensíveis.

O cálculo da remuneração mínima considerará os custos básicos dos motoristas, excluindo despesas como uso do celular, combustível, manutenção do veículo, seguro e impostos. Quanto à contribuição previdenciária, os motoristas deverão contribuir com 7,5% de seus ganhos, cabendo às plataformas a responsabilidade de descontar e recolher esse valor ao INSS. Essa medida assegura aos motoristas direitos previdenciários como aposentadoria, pensão por morte, auxílio-maternidade, auxílio-doença e auxílio-acidente.

O art. 3º do projeto prevê a representação dos interesses dos motoristas por meio de entidade sindical da categoria econômica específica, que terá a prerrogativa de celebrar acordos coletivos, convenções coletivas e representar a categoria em demandas judiciais e extrajudiciais.

Embora o foco principal da proposta seja a regulamentação das condições de trabalho dos motoristas, há potenciais repercussões para os usuários das plataformas, ainda que possivelmente mais indiretas, sendo as principais:

Possíveis ajustes nos custos de serviços:

Na prática, a introdução de um piso salarial e a obrigação de prover benefícios como auxílio-maternidade, seguro contra acidentes e contribuições previdenciárias aumentam o custo por viagem para as empresas operadoras. Diferentemente de um modelo puramente baseado em demanda, onde os custos variam principalmente com o número de viagens, essas despesas fixas adicionais permanecem constantes, aumentando a pressão sobre as margens de lucro das plataformas.

Diante dessa nova estrutura de custos, é razoável prever que as plataformas possam buscar meios para mitigar esses impactos financeiros. Uma das abordagens mais diretas seria ajustar as tarifas cobradas pelos serviços prestados aos consumidores. Isso poderia se manifestar de várias formas, incluindo aumento das tarifas base, taxas de serviço mais altas, ou a introdução de novas taxas para serviços específicos. Embora tais ajustes possam ser necessários para assegurar a sustentabilidade do modelo de negócios das plataformas, eles também podem levar a um aumento no custo para os usuários ao solicitar um veículo.

Para o consumidor, o resultado dessas mudanças pode ser uma ponderação mais cuidadosa entre o custo e a conveniência dos serviços de transporte por aplicativo. Enquanto muitos usuários valorizam a facilidade e a rapidez de chamar um veículo pelo aplicativo, um aumento significativo no preço pode levar à reavaliação da frequência de uso desses serviços ou à busca por alternativas mais econômicas.

Impacto na disponibilidade de motoristas:

A introdução de regulamentações mais estritas sobre as condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, incluindo a imposição de uma remuneração mínima e a oferta de benefícios trabalhistas, pode ter um impacto duplo na disponibilidade de motoristas, afetando diretamente a experiência dos usuários desses serviços. 

Por um lado, motoristas atuais podem reconsiderar sua continuidade nas plataformas devido às novas exigências que podem perceber como restritivas ou menos flexíveis em comparação com as condições atuais. Esta reavaliação por parte de alguns motoristas pode levar a uma diminuição na quantidade de motoristas disponíveis, o que, por sua vez, poderia resultar em tempos de espera mais longos para os usuários, além de potencialmente limitar a cobertura de serviço em certas áreas ou horários.

Por outro lado, a regulamentação também pode atrair novos motoristas que anteriormente hesitavam em aderir às plataformas devido à percepção de instabilidade ou à falta de proteção trabalhista. Isso não só pode compensar a possível perda de motoristas existentes como também expandir a base de motoristas, melhorando a disponibilidade de veículos para os usuários.

Melhoria na qualidade do serviço:

Para o usuário-consumidor, a promessa de condições de trabalho mais favoráveis para os motoristas sugere uma possível melhoria na qualidade do serviço tendo em vista que a satisfação profissional dos motoristas é um componente crítico que influencia diretamente a qualidade da experiência para o usuário, desde o momento em que uma viagem é solicitada até a sua conclusão.

Esta melhoria na experiência geral do serviço, que engloba desde a pontualidade e a limpeza do veículo até a habilidade de navegação e a interação com o cliente, é um aspecto positivo que pode compensar eventuais aumentos nos custos para os usuários.

Adaptações tecnológicas e operacionais:

A introdução de novas regulamentações destinadas a aprimorar as condições de trabalho dos motoristas de aplicativos traz consigo a necessidade de adaptações tecnológicas e operacionais substanciais por parte das empresas que gerenciam essas plataformas. Para estar em conformidade com tais regulamentações, as plataformas podem precisar implementar uma série de mudanças significativas, desde a revisão dos sistemas de cálculo de tarifas até a melhoria da transparência nas políticas de remuneração, além de refinamentos nos mecanismos de feedback e avaliação tanto para motoristas quanto para usuários.

Estas adaptações podem refletir diretamente na experiência dos usuários. Com informações mais claras sobre como as tarifas são calculadas e como os motoristas são remunerados, os usuários podem fazer escolhas mais informadas sobre quais serviços utilizar e em qual momento, baseando-se em critérios mais objetivos e específicos.

A questão da regulação do trabalho em plataformas digitais transcende as fronteiras nacionais, tornando-se um ponto de discussão global. Um exemplo emblemático desse debate ocorreu na Califórnia, EUA, com a aprovação da proposta 22 em 2020. Essa legislação específica foi um marco na luta pela definição do status dos motoristas de aplicativos, permitindo-lhes manter a classificação como contratados independentes, mas introduzindo concessões significativas em termos de benefícios e proteções. Esta medida ilustra a complexa tarefa de conciliar a flexibilidade intrínseca ao modelo de negócios dos aplicativos com as demandas por direitos trabalhistas.

Na contramão, a Europa adota uma postura tendencialmente mais protecionista em relação aos direitos dos trabalhadores, refletindo diferentes abordagens políticas e sociais no trato da economia. Estas divergências internacionais ressaltam os variados caminhos tomados por diferentes jurisdições na tentativa de equilibrar os interesses das plataformas digitais com os dos trabalhadores que nelas atuam.

Estas experiências oferecem insights valiosos sobre os desafios e as possíveis soluções para conciliar a flexibilidade com a necessidade. Tais lições são particularmente pertinentes para o Brasil, que agora enfrenta seus próprios dilemas na regulação deste setor em evolução.

Ao propor uma legislação que visa melhorar as condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, o Brasil se insere nessa discussão global, levantando questões importantes sobre o impacto dessas mudanças não apenas para os trabalhadores, mas também para os usuários-consumidores. Os ajustes nos preços e as potenciais melhorias na qualidade do serviço evidenciam uma evolução na dinâmica entre plataformas, motoristas e usuários, cujas repercussões merecem atenção detalhada.

Até o momento, o Congresso não possui relator ou data para votação do texto, porém o projeto foi enviado com regime de urgência, devendo ser votado dentro do prazo de 45 dias. 

Tamires Freitas
Advogada do Andrade Maia, é especialista em Direito Civil, Processo Civil e em Direito Empresarial, e mestranda em Direito e Negócios Internacionais.

Ágata Roberta Vinhas Brum
Advogada do Andrade Maia, é especialista em Direito e Negócios Imobiliários.

Guilherme Stefan
Advogado do Andrade Maia, é especialista em Advocacia Cível, e doutorando em Direito.

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