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As ações “ut universi” e “ut singuli” pelos acionistas de S.A

As ações de responsabilidade representam formas de exercício da reparação de danos causados à companhia. Podem ser intentadas por ela, por seus acionistas ou simplesmente não propostas.

20/2/2024

No intrincado universo da governança corporativa nas sociedades anônimas - S.A., a proteção dos interesses dos acionistas minoritários assume papel fundamental. Nesse contexto, as ações ut universi e ut singuli despontam como ferramentas essenciais para garantir a reparação de danos causados à empresa por atos ilícitos de administradores ou controladores.

A ação social ut universi, proposta pela própria S.A., representa a via tradicional para a defesa dos seus interesses. É a defesa da companhia através da própria companhia. Para tanto, a deliberação da assembleia geral configura-se como etapa crucial, a inobservância dessa formalidade pode comprometer a legitimidade da ação.

O caput do artigo 159 da lei 6.404, a lei das S.A., dispõe que “compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral [sic], a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio”, podendo ser assembleia-geral ordinária ou extraordinária. Esta é a ação ut universi: quando a própria pessoa jurídica propõe a demanda em vista de prejuízos causados à sociedade.

Por outro lado, a ação social ut singuli surge como alternativa quando a S.A. se mostra inerte em face de atos lesivos, ou mesmo omissa ou conivente.  No caso de terem deliberado positivamente para propor a ação, mas após três meses nada for feito, o parágrafo terceiro do artigo 159 diz que “qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 meses da deliberação”, dando origem a ação ut singuli derivada. Ou, ainda, no caso de terem deliberado negativamente para não propor a ação, o parágrafo quarto preceitua que “poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5%, pelo menos, do capital social”, promovendo a ação ut singuli originária.

Nestes últimos casos, os acionistas minoritários assumem a iniciativa de propor a ação judicial, a fim de que a companhia adote medidas que visem a proteção de seus direitos, em caso de dano ou prejuízo causado pela administração da empresa e por atos que causem danos à sua participação acionária ou a outros direitos individuais.

No entanto, para que a ação ut singuli prospere, uma série de requisitos precisa ser observada. A prévia deliberação da assembleia geral para o ajuizamento da ação pela S.A. configura-se como o ponto de partida. A inércia da companhia por um período de 3 meses após tal deliberação consolida a necessidade de intervenção de “qualquer acionista”. Adicionalmente, se a deliberação for negativa, a representatividade mínima de 5% do capital social pelos acionistas que desejam intentar a ação demonstra que ela seja proposta por um grupo de acionistas com um interesse legítimo e significativo na reparação do dano.

É nesta ação que concentraremos a atenção destes comentários, pois além de toda a questão societária subjacente, chama também temas procedimentais, em virtude da substituição processual. A ação vislumbra-se  importante porque a maior parte dos poderes de controle das sociedades anônimas é detida pelos acionistas majoritários, o que pode deixar os minoritários em posição vulnerável. Para que seja aceita, é necessário que a empresa tenha sofrido um dano ou prejuízo decorrente da atuação dos administradores, e que o acionista minoritário tenha sofrido um prejuízo individual em decorrência desse dano. 

É certo que o artigo 18 do Código de Processo Civil diz que “ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio”. Porém, a exceção vem em seguida: “salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”. E essa autorização, como visto, está prevista nos parágrafos terceiro e quarto do artigo 159 da lei das S.A. Nelson Eizirik explica a substituição processual que ocorre nesta situação: “trata-se de legitimação extraordinária, sob a forma de substituição processual, uma vez que ocorre a dissociação entre o sujeito da lide (sociedade) e o sujeito do processo (acionista); o interesse perseguido é o da companhia, tanto que ela será a indenizada, atuando o acionista como parte apenas em sentido formal. A substituição, na hipótese do § 3°, é derivada (originalmente era da companhia a competência); já no caso do § 4°, é originária”. 1

Quanto à utilidade desse mecanismo, além de permitir a proteção dos direitos dos acionistas minoritários e o aprimoramento da governança corporativa, é destacado que a relevância dessa ação está no fato de que os acionistas minoritários geralmente não possuem poder de decisão significativo na gestão das companhias, portanto, necessário se valer do instrumento que lhe beneficia. A ação é também vista como forma de garantir a transparência e a accountability nas empresas. Com uma boa governança, as companhias podem minimizar os conflitos entre acionistas majoritários e minoritários, aumentar a confiança do mercado e, consequentemente, atrair mais investimentos.

A jurisprudência dos tribunais brasileiros é firme em relação à legitimidade ativa das ações de responsabilidade: se da companhia ou dos acionistas. No Conflito de Competência 185.702-DF, julgado de 2022, lê-se na ementa do STJ: “a deliberação da companhia para promover ação social de responsabilidade do administrador e/ou do controlador dá-se, indiscutivelmente, por meio da realização de assembleia geral. A caracterização da inércia da companhia depende, pois, da deliberação autorizativa e, passados os três meses subsequentes, a titular do direito não ter promovido a medida judicial/arbitral cabível; ou, mesmo da deliberação negativa, termos a partir dos quais é possível cogitar na abertura da via da ação social ut singuli”.2

Vale ressaltar que a escolha entre as ações ut universi e ut singuli depende de uma análise criteriosa das particularidades de cada caso. Fatores como a gravidade do dano, a postura da administração da S.A. e o perfil dos acionistas minoritários influenciam essa decisão.

Dessa forma, as principais diferenças entre as ações de responsabilidade são as seguintes: a ação ut universi é proposta pela própria S.A., enquanto a ação ut singuli é proposta pelos acionistas; a primeira exige apenas a deliberação da assembleia geral, já a segunda exige a inércia da S.A. e a representação de 5% do capital social. Em ambas, o prazo para ajuizamento é de três anos a partir da ciência do fato danoso.

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1 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada: arts. 121 a 188. Vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 415.

2 No mesmo sentido: “[...] 4. A teor do art. 159 da Lei nº 6.404/1976, apenas em caráter excepcional, em situações que se objetive a responsabilização do administrador da sociedade, pode o acionista propor a chamada ação social ut singuli, dependendo tal legitimação extraordinária, porém, da realização de assembleia geral na qual se delibera pela responsabilização ou não do administrador. 5. Deliberando a assembleia pela responsabilização do administrador, a ausência de efetivação da respectiva medida judicial por parte da própria companhia no prazo de 3 (três) meses legitima qualquer acionista para que o faça. Afastando a assembleia a responsabilização daquele, a lei ainda assegura aos acionistas detentores de pelo menos 5% (cinco por cento) do capital social que tragam a questão a juízo. 6. Hipótese em que é manifesta a ilegitimidade dos autores para a propositura de ação em defesa dos interesses da própria companhia, seja porque não houve prévia deliberação da assembleia geral, nem positiva nem negativa, seja porque não são eles detentores de ações representativas de ao menos 5% (cinco por cento) do capital social. [...]” (STJ, REsp n° 1.741.678-SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/6/2018, DJe de 19/6/2018).

Davi Ferreira Avelino Santana
Graduando em Direito na Universidade Católica do Salvador com intercâmbio na Universidade do Porto e extensão na Pontificia Università Lateranense di Roma

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