Tratemos aqui das limitações à compensação tributária, trazidas pela MP 1202/23. Sem embargo da ausência de urgência e relevância a justificar a MP (não valendo, para tanto, a suposta necessidade de se interromper ou limitar no tempo as compensações que podem ser realizadas da forma anteriormente vigente, há mais de 28 anos, e isso com fundamento em uma suposta falta de previsibilidade das quantidades a serem compensadas, e ainda de uma tese decidida, no seu mérito, há mais de 7 anos, pelo STF, em 2017 – a chamada “tese do século”), temos que a referida MP viola os princípios da isonomia, da segurança jurídica, do ato jurídico perfeito (acordo entre contribuintes e a Receita Federal, quando da renúncia à execução em espécie, exigida, para justamente se optar pela compensação) e do direito adquirido (emanado das decisões judicias transitadas em julgado e do referido acordo de renúncia para se compensar), além da moralidade e da impessoalidade; isso sem se falar na instituição de um verdadeiro empréstimo compulsório (também por motivo imoral, qual seja, para fazer verdade um anunciado e alardeado déficit zero das contas públicas em 2024), e tudo isso no fundo para fazer frente a uma verdadeira sangria recente de caixa do tesouro nacional, “acordada”, segundo as declarações do próprio Ministro da Fazenda, com o STF, por claros motivos políticos, agora descortinados.
Realmente, o governo que deu com uma mão, agora, em dezembro/2022, com o integral – e correto – pagamento de precatórios que tinham sido indevidamente retidos pelo executivo anterior (embora fora do chamado “teto” e nesse ponto criticável, com a devida vênia) - até como forma de descredibilizar o referido governo anterior e taxá-lo de caloteiro – promove, agora, para justamente financiar essa “bondade com chapéu alheio”, limitações ao direito de compensação tributária (outra modalidade, além do pagamento em espécie, de extinção do crédito tributário) de créditos judiciais, reconhecidos por decisões transitadas em julgado, e também objeto de homologações, pela Receita Federal, de habilitações administrativas de créditos judiciais, exigidas, há quase duas décadas, dos contribuintes, como condição para o início das compensações, e nas quais são declarados os créditos compensáveis integrais, dos quais toma ciência, antecipada, o órgão de arrecadação (certamente para fazer o seu planejamento), como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo, ademais, a partir dessa homologação, da integralidade dos créditos compensáveis, que a Receita Federal entende devidos, sobre esse total, o IRPJ e a CSLL devidas por pessoas jurídicas que, à época dos pagamentos indevidos recuperados, se sujeitaram à apuração desses dois tributos segundo o chamado Lucro Real.
Só que, além de incoerente, tal medida se mostra imoral e antidemocrática, além de atentatória à Lei de Responsabilidade Fiscal, por pretender limitar a eficácia de decisões judiciais transitadas em julgado, sob a falsa justificativa de imprevisibilidade atual das compensações que serão realizadas pelas empresas, cujos montantes integrais, aliás, desde a homologação de habilitações administrativas (exigidas para tanto, pela Receita Federal, há quase duas décadas, justamente para conferir essa previsibilidade antecipada dos montantes compensáveis), já se conhece. Sendo assim, tais montantes compensáveis deveriam já estar previstos dentre as obrigações a suportar pela União Federal e não serem imprevisíveis, como justifica a exposição de motivos da MP. OU seja, das duas uma, ou a justificativa é falsa, ou pior, a mesma revela um sistemático descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo não contingenciamento das obrigações compensáveis a que a União Federal, por meio da Receita Federal, já tem prévio acesso, e sobre os quais, aliás, cobra o IRPJ e a CSLL, no momento da homologação da habilitação administrativa do crédito judicial compensável.
Além disso, a referida MP contraria, também, o princípio constitucional da Isonomia, porque o governo acabou por restringir a compensação de acordo com o volume dos créditos compensáveis, como se os contribuintes que tiveram de arcar com mais indébitos no passado (e por isso justamente seus créditos maiores), pudessem ser tratados diferentemente, mais gravosamente, em razão de tal circunstância, a despeito da identidade, proporcionalmente, de sua situação jurídica, com aqueles que tiveram indébitos menores. Ou seja, ter mais créditos compensáveis não guarda relação com a diferenciação estabelecida pela MP, de ter de se submeter a um maior prazo para a recuperação daquilo que o Poder Judiciário definiu como indevido, a lá Robin Hood, posto que vivemos em um estado democrático de direito, pautado na livre iniciativa e na igualdade jurídica, sem a possibilidade de discriminação sem um estreite liame entre o elemento díscrimen e a diferenciação dele decorrente.
Contrariou-se, também, o Direito adquirido e ato jurídico perfeito, porque, ao redefinir os prazos dessa postergação compulsória da compensação, o governo violou todos os acordos firmados com esses contribuintes que tiveram seus trânsitos em julgado e, posteriormente, protocolizaram, como condição para o início de suas compensações, renúncias ao direito de execução de seus créditos em espécie, que, caso contrário, já deveriam até ter sido pagos pela União Federal (isso, inclusive, em mandados de segurança, como já pacificou o STJ), e à vista, em precatório, e não fracionadamente, o que diga-se de passagem, seria muito mais oneroso e imediato para os cofres públicos (e sem possibilidade de fracionamento por conta da iniciativa governamental na referida ADIN “acordada”). Realmente, os contribuintes que iniciaram seus processos de compensação, com o deferimento de renúncia à execução em espécie essencial para tanto, e o deferimento de sua habilitação, do total do crédito habilitado, do qual, aliás, são cobrados, imediatamente, pelo Imposto de Renda e pela Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, independentemente da compensação realizada ou não (posição defendida pela Receita Federal), não podem agora ter esses créditos, já habilitados na sua integralidade para a compensação, sem limites temporais, verdadeiramente desabilitados ou com habilitação retardada. Ou então que se devolva a oportunidade de execução em espécie e se pague o devido conforme foi determinado o pagamento dos 95 bilhões de dívida da Emenda de Reeleição do presidente anterior, sob pena de indisfarçável incoerência, e da utilização de dois pesos diversos para a medida de situações idênticas na sua essência, de impossibilidade de calote ou de postergação de pagamentos da União Federal.
Não fosse isso o suficiente, ao se negar a reconhecer a compensação, taxando-a de inexistente, o governo se auto financia ao custo da taxa SELIC (por ele mesmo fixada), criando dessa forma, aí com mais razão ainda, uma verdadeira bola de neve (que declarou buscar evitar com a referida ADIN contra a PEC de reeleição), e essa sim irreversível, pois realiza essa verdadeira maquiagem de seus passivos, postergando-os no tempo e verdadeiramente obrigando esses seus credores e se tornarem sócios ocultos e involuntários da dívida pública, ao mesmo tempo em que segura, na marra, os juros que diz poderem ser menores, justamente pelo suposto menor endividamento e/ou pelo seu fluxo mais estendido. Só que não por conta da rolagem pública e transparente de títulos do governo, vinculados à mesma SELIC, e sim pela sua imposição de aceite aos seus credores judiciais, com um manifesto desrespeito, em última análise, não somente à Responsabilidade Fiscal, mas principalmente, às ordens de pagamento emanadas pelo Poder Judiciário, e nem por via transversa, por via declarada e sem qualquer constrangimento. E faz isso por meio de MP, quando é certo que o empréstimo compulsório, como define a Constituição Federal e também já decidiu o STF em diversas oportunidades é matéria de reserva de lei complementar.
E finalmente não podemos deixar de reafirmar a violação no caso da moralidade administrativa, pois a justificativa utilizada na MP, posteriormente regulamentada por igualmente viciada Portaria, é a de declaradamente não pagar ou ao menos dilatar no tempo, o máximo possível, retirando sua eficácia, ao menos em parte, crédito tributário legítimo, incontroverso pela própria Administração, matéria determinada com repercussão geral pelo STF, em relação à qual o Ministro da Fazenda abertamente já fez diversos comentários públicos, para descredibilizar o entendimento da Suprema Corte, como se somente as decisões favoráveis tiverem mérito e merecessem respeito, o que é rigorosamente o oposto de um governo democrático, pautado e sustentado pela garantia de tripartição do poderes.
E ainda isso é justificado como necessário para que o governo tenha supostamente uma previsibilidade daquilo que será compensado anualmente pelas empresas (como se a alternativa de pagamento à vista, via precatório, não fosse mais onerosa ainda para a União Federal), quando é certo que, segundo os critérios definidos na Lei de Responsabilidade Fiscal, o valor total dos créditos tributário cuja habilitação já foi deferida pela própria Receita Federal, não tivesse de ser contingenciadas na íntegra, de acordo com as informações exigidas em tais pedidos de habilitação administrativa, criadas justamente para isso.
Ou seja, a justificativa é notoriamente falsa e contraria aquilo que a própria União Federal, a AGU e o Ministro da Fazenda declararam ter “acordado” com o STF, quando do ajuizamento e julgamento da mencionada ADIN dos Precatórios/reeleição, que tratou do integral pagamento, não postergável, das obrigações da União Federal que haviam sido postergadas no governo anterior.
Ou seja, na essência o que o governo pretende com a famigerada MP, é identicamente aquilo que lutou para cancelar junto ao STF, só que do governo anterior. De fato, adiar pagamentos em espécie ou mediante aceitação de compensações determinadas pelo Judiciário e habilitadas após renúncia do contribuinte à execução em espécie, dá na mesma. Tal atitude ilegal, inconstitucional e imoral, de limitação de compensações (não realizadas na integralidade até o momento, diga-se de passagem, pois tivermos uma pandemia no meio do caminho, o que reduziu, drasticamente, no período, os montantes de débitos compensáveis, da maioria das empresas, como é notório) não pode ser incorreta quando praticada pelo governo anterior e correta e justificável agora, quando o representante do Poder Executivo muda.
Com efeito, temos de entender de uma vez por todas no Brasil - e os Tribunais têm de ser firmes nesse sentido - que o que é certo e o que é errado não pode ser uma questão de quem está no governo e nem tampouco ter coloração partidária sob pena de contrariedade, em última análise, ao princípio máximo da impessoalidade da Administração Pública e ao princípio máximo da democracia e da tripartição dos Poderes da República.