O artigo 226 da Constituição Federal de 1988 destaca a família como o núcleo fundamental da sociedade. Por sua vez, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE define família como um conjunto de indivíduos que compartilham o mesmo lar (domicílio) e que estão interligados por laços sanguíneos ou afinidade. Nessa perspectiva, é prudente afirmar que ninguém vive de forma isolada, pois todos necessitamos de alguém em quem possamos confiar, especialmente nos momentos de maior necessidade.
O ambiente familiar representa o primeiro espaço de socialização para todo indivíduo, desempenhando um papel crucial em seu desenvolvimento, amadurecimento e trajetória. Dessa maneira, diante do atual contexto brasileiro marcado pela crescente vulnerabilidade social, política e econômica, juntamente com as disparidades entre as classes sociais, a família se configura como o pilar essencial para o desenvolvimento infantil em meio a essas adversidades. É crucial destacar que algumas famílias podem estar à margem das políticas sociais brasileiras, abrangendo áreas como trabalho, educação, saúde, habitação e alimentação. Essa realidade ressalta que, se a família se encontra fragilizada e em situação de vulnerabilidade, a criança inevitavelmente compartilha dessa condição, tornando-se fundamental analisar como essa fragilidade pode impactar seu desenvolvimento.
Ao longo de muitos séculos, o conceito de família passou por transformações para se adaptar às necessidades da humanidade. Para muitas pessoas, uma família considerada tradicional geralmente é composta pelo pai e mãe, unidos por matrimônio ou união estável, e por um ou mais filhos, configurando uma família nuclear ou elementar. No Brasil, é bastante frequente encontrarmos famílias formadas exclusivamente por uma mãe e seus filhos. Em algumas situações, o pai pode ter falecido, estar desaparecido ou ter abandonado o lar, rompendo o contato com a família. Independentemente da configuração, seja com pai, mãe e filhos, somente pai e mãe, dois pais, duas mães, tios e sobrinhos, avós e netos, pais solteiros, mães solteiras, apenas irmãos, entre outras possibilidades, a família deve ser reconhecida como um núcleo de extrema importância perante a sociedade.
Quando abordamos a violência familiar e seu impacto na desestruturação da família, torna-se essencial contextualizar as fases que antecedem a formação da família e os elementos, como a violência, que têm contribuído para a desorganização de algumas delas. A família representa o alicerce da sociedade, desempenhando o papel fundamental de transmitir cultura, valores, compreensão e amor entre seus membros. Além disso, contribui significativamente para o desenvolvimento saudável dos filhos em aspectos psicológicos, emocionais e comportamentais. Contudo, lamentavelmente, a desestruturação familiar, que inclui a carência emocional e afetiva, propicia respostas negativas em muitos vínculos familiares, impactando a sociedade como um todo.
Nesse sentido, as interações entre pais e filhos são sutis e abrangem desde a educação, passando pela disciplina e, em alguns casos, alcançando a violência, dependendo da perspectiva externa que determina qual será o limite dessa relação. Portanto, o que se evidencia é que, aos olhos da sociedade e dos próprios pais, as crianças estão sob sua responsabilidade, e cabe a eles dedicarem-se ao cumprimento desse papel moldado pela sociedade e, de certa maneira, validado por ela.
Diversas normas jurídicas foram estabelecidas para assegurar a proteção da criança e do adolescente, buscando garantir, mesmo que teoricamente, seus direitos fundamentais. O principal desses direitos está consagrado na Constituição Federal de 1988, especificamente no artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Seguindo a disposição da Constituição Federal, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, a partir da lei Federal 8.069/90, estabeleceu a garantia de direitos. Juridicamente, foram conferidos às crianças e aos adolescentes direitos de proteção prioritária e atenção especial, considerando sua condição de desenvolvimento e crescimento.
No que dispõe esse título e, em correlação com o aqui discutido, os atos de maus-tratos e suas respectivas penalidades estão contemplados nos artigos 87, 130 e 245, que estabelecem a responsabilidade e a obrigação de notificação por parte dos órgãos de saúde aos Conselhos Tutelares. Contudo, o Estatuto também atribui à sociedade a responsabilidade pelo trabalho obrigatório de prevenção e combate à violência sofrida por crianças e adolescentes.
Ainda, pode-se falar no que concerne a negligência dos pais para com seus filhos. A negligência ocorre quando os pais ou responsáveis deixam de assegurar o mínimo necessário para uma vida saudável e digna. Isso se manifesta na ausência de fornecimento dos cuidados essenciais às necessidades físicas e emocionais dos filhos. As crianças sujeitas à negligência não apenas enfrentam a carência de cuidados físicos, mas também experimentam deficiências emocionais, uma vez que os pais transferem suas responsabilidades para terceiros.
Conforme discutido anteriormente, a desestruturação familiar pode acarretar danos emocionais e psíquicos no desenvolvimento fundamental de crianças e adolescentes, refletindo em sua maneira de interagir com a sociedade. O ambiente familiar, que poderia ser uma fonte de boa educação, também tem o potencial de se tornar o cenário do pior pesadelo para uma criança, envolvendo violências e abusos desprovidos de qualquer laço afetivo, resultando, consequentemente, em traços de comportamentos antissociais nesses jovens.
Crianças criadas em ambientes emocionalmente frágeis tendem a perpetuar esse padrão de comportamento, levando a transmissão dessas condutas de uma geração para outra. Em relação às formas como essas violências ocorrem, o Caderno de Atenção Básica, publicado pelo Ministério da Saúde (2002, p. 17-22), indica que a violência pode manifestar-se por cinco vias distintas, que serão analisadas a seguir.
- Violência física: Compreende a aplicação de tapas, empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, estrangulamento, lesões causadas por armas ou objetos, forçar o consumo de medicamentos desnecessários ou inadequados, bem como de álcool, drogas ou outras substâncias, incluindo alimentos, além de ações como tirar à força de casa, amarrar, arrastar e arrancar roupas, ou ainda abandonar em lugares desconhecidos.
- Violência psicológica: Caracteriza-se por insultos constantes, humilhação, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, ridicularização, rejeição, manipulação afetiva, exploração, negligência (atos de omissão em cuidados e proteção contra agravos evitáveis, como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros), e ameaças.
- Violência sexual: Engloba situações como estupro, coerção sexual no casamento, abuso sexual na infância e/ou adolescência, abuso incestuoso, assédio sexual, carícias não desejadas, penetração oral, anal ou genital mediante força, utilização de pênis ou objetos de maneira forçada, exposição obrigatória a material pornográfico, exibicionismo e masturbação forçados, bem como o uso de linguagem erotizada.
- Violência econômica ou financeira: Inclui a prática de roubo, destruição de bens pessoais como roupas, objetos, documentos, animais de estimação e outros, assim como de bens da sociedade conjugal, como residência, móveis e utensílios domésticos, terras e outros. Além disso, abrange a recusa em pagar a pensão alimentícia ou em participar nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar, bem como o uso indevido dos recursos econômicos de pessoa idosa, tutelada ou incapaz.
- Violência institucional: Envolvendo a peregrinação por diversos serviços até receber atendimento, a violência institucional manifesta-se pela falta de escuta e tempo para a clientela, pela frieza, rispidez, falta de atenção, negligência e maus-tratos por parte dos profissionais em relação aos usuários, motivados por discriminação que abrange questões de raça, idade, orientação sexual, gênero, deficiência física, doença mental, violação dos direitos reprodutivos e desqualificação do saber prático e da experiência de vida diante do saber científico, incluindo também a violência física, como por exemplo, negar acesso à anestesia como forma de punição.
Dessa forma, torna-se evidente a importância da família na formação da personalidade de qualquer indivíduo. Através dos ensinamentos familiares, a criança absorve valores morais, culturais e sociológicos essenciais para viver harmoniosamente na sociedade. Com base nessas premissas, a Constituição Federal de 1988 incorporou a família à ordem jurídica, consagrando seus princípios com o propósito de proteger a criança e o adolescente, orientando as condutas aceitáveis nas relações familiares.
Diante desse contexto, evidencia-se a responsabilidade dos pais em zelar pela criação e educação de seus filhos, assegurando a integridade de seu desenvolvimento físico, moral e psíquico, conforme estabelecido pelo artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, essa análise revelou uma realidade distinta daquela prescrita pela lei e pela moral, evidenciando uma formação de valores invertidos, profundamente impactada pela violência intrafamiliar, que se manifesta de diversas maneiras (física, sexual, psicológica) e por variados motivos (alcoolismo, tabagismo, uso de drogas ilícitas). Independentemente dos diferentes motivos ou formas de violência, observamos que essas situações abalam toda a estrutura da família e, em particular, o desenvolvimento psicológico das crianças e dos adolescentes.
Conclui-se que a desestruturação familiar está diretamente vinculada à criminalidade juvenil. Embora essa teoria não seja absoluta, tanto os doutrinadores quanto os sociólogos concordam que uma criança que cresce em um ambiente violento tende, muito provavelmente, a reproduzir essa mesma forma de tratamento na sociedade. Por esse motivo, é imperativo que haja uma mobilização por parte do Poder Público e da sociedade para alinhar projetos de políticas públicas, visando auxiliar psicologicamente e economicamente essas crianças e suas famílias. Essa abordagem não apenas como uma resposta para remediar as dificuldades causadoras de violência, mas sobretudo como uma medida preventiva para evitar futuros casos de delinquência juvenil.
--------------------------
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dosSantos.3. Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan,2002.
COSTA, Sarah Batista Resende. Violência no âmbito familiar e a efetividade da Lei 11.340/2006. Revista Jus Navigandi, ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51496/violencia-no-ambitofamiliar-e-a-efetividade-da-lei- 11-340-2006
DIAS, Debora. A Violência Intrafamiliar Infantil e suas Consequências. Artigo. 2013. Disponível em: https://comportese.com/2020/06/30/a-violencia-entre-parceiros-intimos-esta-aumentando-na-pandemia/
Organização Mundial da Saúde. Relatório Mundial sobre violência e saúde. Genebra (SWZ): OMS; 2002.
DE SOUZA, Adriana Aparecida.; GERMANO, José Willington. Violência intrafamiliar e suas consequências no desenvolvimento da aprendizagem das crianças: notas prévias de pesquisa. Revista Inter-Legere, n. 6, 3 dez. 2013.
VENOSA. S. S. Direito Civil. Direito de família. 5ª edição. Editora Atlas, 2006.
FIGUEIREDO, Sabrina Oliveira de. Desestruturação familiar e criminalidade juvenil: reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518- 4862, Teresina, ano 25, n. 6099, 13 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79709.