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Lesão corporal culposa contra a mulher: deve ser aplicado o instituto do consentimento?

Em casos da Lei Maria da Penha, a ideia de que a mulher não pode escolher se o crime deve ser apreciado pelo poder público é questionada. O artigo 100 do Código Penal aborda a ação penal nos crimes em geral.

31/1/2024

É muito comum que as pessoas digam que quando o crime se dá no âmbito da lei Maria da Penha a mulher não tem o direito a escolher se o crime deve ou não ser apreciado pelo poder público, mas será que isso é o que realmente deve ocorrer?

Bem, primeiramente vamos verificar o que diz o artigo 100 do Código Penal ao falar da ação penal nos crimes em geral:

“Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.”

De tal forma, como regra para qualquer crime, independentemente da Lei Maria da Penha, a ação penal é pública incondicionada a representação, ou seja, não depende da vontade da vítima, o poder público necessariamente deverá fazer com que o acusado responda criminalmente pelos atos cometidos.

Porém, como dito, isso ocorre em regra. O próprio artigo 100 do Código Penal traz como exceção quando a lei expressamente declarar que a ação é penal condicionada, nesse caso caberá o instituto do consentimento, pois a lei dirá que o crime é de ação penal condicionada.

Para melhor compreensão trago dois crimes: um de ação penal pública incondicionada e outro de ação penal condicionada.

O primeiro que é de ação penal pública é o de fraude processual, vejamos o que diz o artigo 347 do Código Penal:

“Fraude processual

Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”

Percebe-se que em momento algum a lei diz se a ação é penal pública incondicionada ou ação penal condicionada, logo o crime de fraude processual é de ação penal pública incondicionada pelo fato de esta ser a regra.

Agora vejamos o contrário, um crime de ação penal condicionada:

“Ameaça

Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Como previsto no artigo 100 do Código Penal, o crime de ameaça é de ação penal condicionada pelo fato de o parágrafo único do artigo 147 do Código Penal informar que o crime somente se procede mediante representação.

Apesar de a maioria dos crimes ser de ação penal pública incondicionada, pelo fato de esta ser a regra, encontramos outros crimes de ação penal condicionada no Código Penal, como no já citado crime de ameaça, além do crime de perseguição, crimes contra a honra, dentre muitos outros.

Talvez você esteja se perguntando: “Tá, mas esse é o Código Penal, a lei Maria da Penha é outra lei, logo esse artigo 100 do Código Penal não será cabível em termos de Lei Maria da Penha”. Na verdade, as regras do Código Penal são sim aplicadas em leis especiais quando não haja conflito, diante do artigo 12 do Código Penal:

“Art. 12 - As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso.”

Não há na Lei Maria da Penha qualquer regra que não admita que haja crimes de ação penal condicionada, ao contrário, o artigo 16 da lei Maria da Penha diz que há a possibilidade de a mulher renunciar à representação em casos de ações penais condicionadas, ou seja, crimes de ação penal condicionada.

“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”

Uma observação ao termo renúncia é que o legislador escolheu mal a palavra, pelo fato de que a renúncia significa a abdicação do exercício de um direito e não se pode renunciar a direito já exercido, logo o legislador deveria utilizar o termo “retratação”, assim como no artigo 25 do Código de Processo Penal e artigo 102 do Código Penal.

Diante de todo o exposto, o título desse artigo será finalmente explicado. O artigo 41 da Lei Maria da Penha proíbe para a interpretação da própria lei a aplicabilidade da lei 9.099/95 – Crimes de menor potencial ofensivo – com o objetivo óbvio de evitar que o agressor de mulheres tenha a sensação de impunidade. Vejamos o que diz o artigo 41 da Lei Maria da Penha:

“Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.”

Isso se dá, em especial, diante do artigo 88 da lei 9.099/95:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.”

Como não se aplica a lei 9.099/95, por força do artigo 41 da Lei Maria da Penha, hoje graças a Deus a lesão corporal leve contra a mulher independe de representação da ação penal, ou seja, é de ação penal pública incondicionada. Um tapa na cara, ou qualquer outro tipo de lesão corporal que não esteja no contexto dos parágrafos 1º ao 3º do artigo 129 do Código Penal, também será obrigatoriamente apreciado pelo poder público. O STF através da ADIn 4.424/DF e da ADC 19/19, além do STJ pela súmula 542 entendem que é incabível a lei 9.099/95 no contexto da violência doméstica contra a mulher, logo a lesão corporal, mesmo que leve, é de interesse do poder público.

Pode parecer estranha a pergunta, mas e a lesão corporal culposa? Ora, se o artigo 41 da Lei Maria da Penha proíbe a utilização da lei 9.099/95, logo o que fala no artigo 88 da lei 9.099/95 não tem validade para a lesão corporal culposa também, sendo de ação penal pública incondicionada... bem, depende.

Antes de tudo, o que direi não é a aplicabilidade da lei 9.099/95 na Lei Maria da Penha, mas sim a interpretação da própria Lei Maria da Penha. Imaginemos duas pessoas recém-casadas, felizes, viajando em lua de mel, o homem dirige o carro enquanto no banco do carona está a esposa, quando em uma infelicidade o homem erra o pedal do freio e bate em um poste, ocorrendo um acidente de trânsito, ficando a esposa viva, entretanto ferida, mas o homem não se fere. O poder público representado por policiais e bombeiros deverá, ao mesmo tempo em que estiver socorrendo a mulher, dar voz de prisão ao esposo, motorista que errou o momento em que deveria pisar no freio? 

Para a Lei Maria da Penha ser aplicada, é necessário estar ocorrendo um dos tipos de violência exemplificativas do artigo 7º, que nesse caso seria a violência física, ser contra a mulher conforme o artigo 1º, ser doméstica, familiar ou íntima de afeto conforme os incisos I, II e III do artigo 5º. Mas isso não basta, faz-se ainda necessário que a violência tenha ocorrido devido ao gênero feminino conforme o caput do artigo 5º da Lei Maria da Penha, logo o exemplo dado de lesão corporal culposa – diante de um acidente de trânsito – não é cabível na Lei Maria da Penha por não ser uma violência motivada pelo fato de a vítima ser mulher, sendo cabível o instituto do consentimento do artigo 88 da lei 9.099/95 por não caber a Lei Maria da Penha.

Mas a lesão corporal leve pode, em outros momentos, sim, ser apreciada pelo poder público de forma incondicionada, tal como um homem que, movido por ciúmes, ameaça a esposa com uma faca, estando tal arma branca encostada no corpo da vítima, e em um momento de distração o acusado tropeça e, endossando sem ter a intenção, faz um pequeno corte na pele da vítima. Esta lesão corporal, na modalidade de culpa consciente, ocorreu diante do fato de a vítima ser mulher, sendo uma violência por conta do gênero feminino, logo interpretada à luz da Lei Maria da Penha e afastando a lei 9.099/95.

No parágrafo acima não caberá o crime de violência psicológica, apesar de ser a intenção do acusado causar dano à saúde mental da vítima, pois o crime de lesão corporal é mais “gravoso” do que o crime de violência psicológica, sendo o crime de lesão corporal punido com detenção, já o crime de violência psicológica, que não pode ser aplicado quando houver crime mais grave segundo o artigo 147-A do Código Penal, ser a pena de reclusão.

O limite da aplicabilidade da lei penal pelo poder público deve sempre ser objeto de estudo, não só para haver segurança jurídica, mas em especial para que a mulher deixe de estar em situação de violência e passe a gozar do maior dos direitos tutelados: o de ser feliz.

Wagner Luís da Fonseca e Silva
Bacharel em Direito, aprovado no XXIII exame de habilitação da OAB. Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo. Pós-graduado em Gênero e Direito pela EMERJ.

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