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A guerra das cervejas e a "proteção" das idéias publicitárias

Um dos assuntos mais comentados desta semana foi mais um capítulo da disputa comercial conhecida como “guerra das cervejas”, onde em disputa um mercado de 8,4 bilhões de litros que registra um consumo médio de 48 litros anuais per capita de cerveja.

16/3/2004

A guerra das cervejas e a “proteção” das idéias publicitárias

Dirceu Pereira de Santa Rosa*

Um dos assuntos mais comentados desta semana foi mais um capítulo da disputa comercial conhecida como “guerra das cervejas”, onde em disputa está um mercado de 8,4 bilhões de litros que registra um consumo médio de 48 litros anuais per capita de cerveja. Desde sexta-feira, a Brahma tem veiculado na TV comercial onde o cantor Zeca Pagodinho, encarnação oficial do bebedor – e entendedor – de cerveja no Brasil, interpreta um samba em que dá a entender que sua participação na popular campanha "Experimenta", da Nova Schin, foi um amor de verão, mas que sua verdadeira paixão sempre foi a Brahma1. Literalmente, foi um soco no fígado da concorrente.

 

Em nota à imprensa, A AmBev, empresa proprietária da marca Brahma, e sua agência de publicidade África, admitiram que a peça publicitária foi criada como uma provocação à Schincariol, proprietária da Nova Schin, e que o popular sambista haveria deliberadamente quebrado seu contrato, válido até setembro, para assinar novo compromisso de 3 anos, envolvendo R$ 1 milhão anuais, comissões a cada filme veiculado e muitas caixas de cerveja Brahma, a verdadeira preferida de Zeca Pagodinho.

 

A Schincariol contra-atacou de imediato, publicando nos principais jornais do país uma resposta, intitulada "Sugestão da brasileira Nova Schin para a belga Brahma"2, onde ironiza o fato de que a Ambev sempre contrata seus “garotos-propaganda” e acusando-a de utilizar de modo indevido idéias, estratégias e personagens da Schincariol. Ademais, a mídia noticiou que a Schincariol já tomou atitudes perante o CONAR - Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária – e promete processar tanto a AmBev por danos morais e “plágio de idéias” como Zeca Pagodinho pela quebra do contrato.

 

Alguns comentários interessantes podem ser feitos sobre este novo capítulo da “guerra das cervejas”: Em primeiro lugar, é necessária uma ressalva técnica sobre o noticiado “roubo” de idéias publicitárias: As criações publicitárias são protegidas pelo direito autoral, e a principal legislação pertinente à matéria (Lei 9610/98), em seu artigo 8º, incisos I e VIII, proíbe claramente qualquer proteção autoral para idéias e conceitos abstratos, bem como para o aproveitamento industrial ou comercial de idéias contidas nas obras intelectuais. Pelo contrário, o que a lei permite proteger é a expressão destas idéias por qualquer meio ou fixação, e em qualquer suporte tangível ou intangível.

 

Tornar uma idéia apropriável autoralmente poderia gerar situações indesejáveis, tornando o mercado publicitário parco de novidades criativas e sujeitando as agências a disputas sobre conceitos e idéias abstratas, tais como, por exemplo, a de utilizar como “garoto-propaganda” um reconhecido sambista expert em cerveja. E é neste nível que nos deparamos com questionamentos que vão além de qualquer aspecto ético que envolva o caso Zeca Pagodinho (os quais não iremos nem podemos abordar), para discutirmos o que pode ser protegido em uma obra publicitária.

 

Uma alegação pura e simples de “plágio de idéias” provavelmente não receberia acolhida em nenhum tribunal brasileiro. Ainda que os publicitários considerem que a “idéia” seja obra coletiva e apropriável, não faltam decisões anteriores dos tribunais pátrios corroborando o entendimento do legislador autoral que as idéias “per se” e conceitos abstratos não são objeto de proteção.

 

Porém, existem alguns argumentos que, numa disputa semelhante, poderiam ser úteis para a defesa do criador de uma peça publicitária. Talvez o caminho inicial, e o mais seguro, seria o da concorrência desleal, pois permite à parte lesada provar, por fatos, que a outra parte utilizou práticas comerciais desleais para desviar clientela. Outro caminho válido pode ser o do dano moral à imagem, pois a empresa lesada pode provar que sua reputação foi danificada em vista das circunstâncias envolvidas.

 

Mas talvez o instrumento mais eficiente nos dias de hoje para a proteção do trabalho criativo das agências publicitárias seja o próprio CONAR, que é um bom exemplo de auto-regulamentação ética em um mercado altamente competitivo e predatório. O CONAR tem poderes para suspender a exibição de uma peça publicitária não apenas por argumentos éticos, mas também caso seu conteúdo possa ser interpretado como desleal ou nocivo. Tanto é assim que o CONAR determinou recentemente a retirada do famoso slogan “Ex-pe-ri-men-ta”, que tornou a Nova Schin um dos maiores sucessos da história da publicidade, não devendo o mesmo ser mais utilizado a partir de 2004 por seu caráter impositivo ao consumidor.

 

Mais uma vez a falta de um registro legal para proteger os investimentos de agências e seus clientes nas obras publicitárias deixa as empresas publicitárias em situação desconfortável. A Associação Brasileira de Propaganda –ABP criou recentemente seu registrador informal, mas, na falta de uma proteção mais efetiva no ordenamento jurídico brasileiro, as lacunas geram dúvidas e não se deve falar em “plágio de idéias”, mas sim em concorrência desleal ou práticas comerciais nocivas ou antiéticas em defesa da criação publicitária. Não se deve tratar uma campanha apenas como uma obra autoral, mas compreender que a mesma é um ativo importante, que merece a devida proteção.

 

Quanto a discutirmos outros aspectos práticos deste capítulo da guerra das cervejas, inclusive a possível violação do contrato firmado com o famoso sambista, a ética e a falta de dados não nos permitem opinar. Melhor deixar para as discussões entre amigos, com a cerveja, ou o vinho, de sua preferência. Afinal, as opiniões e preferências etílicas, assim como as idéias, devem ser livres.
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1 No comercial, Zeca Pagodinho canta uma música com os versos: "Quem já não viveu um amor de verão/ Até tentou e descobriu que era ilusão/ Coisa de momento que balança o coração/ Mas meu amor não tem comparação". No final, ele completa "Cair em tentação pode ocorrer com qualquer um/ Mas grande amor só existe um/ Fui procurar outro sabor, eu sei”. Em outro momento, o músico ainda faz um gesto em que aponta o dedo indicador, em alusão ao antigo mote da Brahma, ''a número 1''.
 

2 Numa alusão à recente associação da Ambev com a belga Interbrew.

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* Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais









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