No começo de julho desse ano, a Volkswagen lançou uma campanha publicitária que criava um encontro entre a cantora Maria Rita e sua mãe Elis Regina, falecida em 1982. A imagem, a voz e movimentos de Elis Regina foram criados a partir de um deepfake gerado por IA. O algoritmo tem o poder de manipular imagens de rostos e criar movimentos, simulando expressões e falas inéditos.
O deepfake é uma tecnologia usada para criar vídeos, e às vezes bem realistas, usando a imagem, voz e movimentos de pessoas que, na verdade, não participaram da filmagem ou nunca estiveram em determinadas situações representadas através da mídia disponibilizada.
No começo de agosto de 2021, o Mercado Livre, em parceria com a Soundthinkers surpreendeu em um outro episódio publicitário, que através de uma ferramenta de IA, também utilizou técnicas de reconstrução digital para recriar a imagem e a voz do já falecido pai do jogador Zico.
Artistas como Whoopi Goldberg, a cantora Madonna, e Robin Williams proibiram o uso de suas imagens após morrerem. Williams faleceu em 2014, mas deixou um testamento restringindo o uso da sua imagem por 25 anos após sua morte.
Aqui no Brasil, os cartórios já começaram a receber pedidos de registros de pessoas que querem estabelecer regras sobre os seus direitos digitais após a morte. Somente nos primeiros sete meses desse ano, foram protocoladas quase 500 escrituras declaratórias ou Diretivas Antecipadas de Vontade - DAVs.
A Diretiva Antecipada de Vontade diz respeito à manifestação de vontade de forma antecipada, em relação aos cuidados e tratamentos para momentos em que a pessoa está incapacitada de se manifestar ou após a sua morte. O interessado deve ir a um cartório de notas com os documentos pessoais. O ato também pode ser realizado de forma eletrônica, por meio da plataforma digital nacional www.e-notariado.org.br.
Esses atos vêm se tornando cada vez mais frequente nos tabelionatos brasileiros e tais declarações de vontade envolvem desde a herança digital com o acesso às senhas e códigos de redes sociais, muitas vezes de canais de influenciadores monetizados por plataformas digitais, até a preservação de direitos de imagem e voz.
A polêmica envolvendo o comercial da Volkswagen com a criação do deepfake da cantora Elis Regina, impulsionou ainda a proposição de um novo projeto de lei atualmente em andamento no Senado. O PL 3.592, de 2023, que estabelece diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de IA, com o intuito de preservar a dignidade, a privacidade e os direitos dos indivíduos mesmo após sua morte.
Os artigos 4º e 5º do PL 3.592/23 trazem claramente a necessidade do consentimento expresso para o uso da imagem e áudio da pessoa falecida para fins comerciais:
“Art. 4º O uso da imagem e áudio da pessoa falecida por meio de IA para fins comerciais precede de autorização expressa dos herdeiros legais ou da pessoa falecida em vida.”
Art. 5º Caso o falecido tenha expressado, em vida, sua vontade de não permitir o uso de sua imagem após seu falecimento, essa vontade deverá ser respeitada.”
O Código Civil Brasileiro traz legitimidade nos seus artigos 12 e 20, parágrafo único para que o cônjuge ou parentes de até quarto grau em linha reta ou colateral exerçam a defesa de diretos inerentes à personalidade da pessoa falecida.
Assim, a pessoa poderá deixar expressamente, o registro da sua autodeterminação, em um documento apto a proibir ou permitir, o uso da sua imagem e voz, após a morte. Esse instrumento de vontade tem o condão de preservar direitos inerentes à personalidade, como memórias, atributos, condutas e valores construídos ao longo de uma vida.