A proposta deste texto não é apresentar um trabalho acadêmico, com verticalidade científica, mas tão somente compartilhar as impressões que tenho sobre o tribunal do júri, depois de quase 27 anos de intensa atuação nessa área especializada da advocacia criminal.
Comecei a conviver com o tribunal do júri lá pelos idos de 1995, quando recebi uma convocação para atuar como jurado na Circunscrição Judiciária do Gama/DF, e logo me apaixonei pela atuação dos advogados e promotores que atuavam ali. Naquele momento decidi que seria advogado e, certamente, atuaria no júri, convencido de que o julgamento pelos integrantes da sociedade representava mesmo a forma mais democrática de se fazer justiça. Os anos se passaram e já se vão quase trezentos plenários no currículo – confesso que este número pode ser maior ou menor – o que me permitiu acumular uma certa experiência e perceber a necessidade de algumas mudanças para que a instituição do júri seja mantida e aprimorada, seguindo a ideia de racionalização do processo.
Na minha percepção o júri deve se ater aos fatos, de modo que não seja obrigado a dirimir questões complexas, como distinguir dolo eventual de culpa consciente e outras tantas que comumente estão presentes em processos levados ao exame do conselho de sentença. Não faz sentido algum exigir de pessoas leigas, notadamente nas pequenas cidades do interior, que elas resolvam temas jurídicos que são complexos até mesmo para a comunidade forense.
Talvez por isso o júri tenha sofrido tantas críticas ao longo da sua existência, muitas delas alicerçadas no argumento de que os jurados não possuem formação para decidir casos complexos, o que levaria a julgamentos injustos. Nesse contexto, é preciso notar que a característica do conselho de sentença é o senso de justiça, que não está exatamente fundado no direito positivo, o que sempre deu ao júri o aspecto humanizado nos julgamentos, na medida em que o acusado tinha em seus julgadores pessoas que viviam as mesmas experiências da vida.
Os tempos mudaram. O aumento da violência urbana, aliado a outras mudanças comportamentais da nossa sociedade moderna, tem transformado o tribunal do júri, que vem perdendo cada dia mais a capacidade de ser solidário à tragédia pessoal do réu, aderindo ao discurso de combate à violência em defesa do interesse coletivo.
Autores famosos, como Nelson Hungria e Frederico Marques, para ficar apenas nesses dois exemplos, defendiam a própria extinção do júri, mas o argumento era de que o tribunal popular era condescendente com os acusados, acolhendo teses exóticas, como a famosa legítima defesa da honra, que acaba de ser sepultada pelo Supremo Tribunal Federal. Diante desse cenário, tenho refletido sobre a instituição do tribunal do júri e penso que há algumas possibilidades de mudança que podem contribuir com a racionalização do procedimento, sem que seja necessária a sua extinção.
A primeira delas diz respeito exatamente à possibilidade de que o acusado, devidamente assistido por advogado, possa não exercer a garantia do julgamento pelo júri, notadamente quando o processo encerrar questões complexas, cuja solução demande mais do que sensibilidade típica do Conselho de Sentença, ou quando houver demonstrada interferência da mídia opressiva. Poder-se-ia dizer que em se tratando de uma garantia fundamental, residente no art. 5º, da Constituição Federal, o acusado não poderia renunciá-la, mas penso que ele pode não exercê-la, tudo em homenagem à liberdade, que representa o valor continente da carta política.
Nesse particular, é preciso observar que há vários textos tratando desse assunto, inclusive mostrando o cenário desse tema no direito comparado, dentre os quais quero destacar um artigo do Professor Vladmir Aras1 e outro do Professor Diaulas Costa Ribeiro2, com os quais quero concordar para defender a possibilidade de que o júri possa ser mais uma garantia, que o acusado por não exercer, do que uma regra absoluta de competência em razão da matéria.
Dessa forma, sempre que o processo estiver sob pressão da mídia, em ordem a interferir no sentimento das pessoas que vão integrar o conselho de sentença, ou quando o processo trouxer questões de alta complexidade, sempre na fase própria e sob orientação de advogado, seria dado ao réu o direito de pedir para ser julgado por um juiz de direito em detrimento do tribunal do júri. Digo isso porque já vi inúmeros casos em que o próprio juiz depois de colher os votos fica chocado com a decisão tomada pelos juízes leigos.
Outra questão que me parece adequada é a extinção da primeira fase do tribunal do júri, pois nesses anos de observação do tribunal popular não tenho dúvida em dizer que essa primeira etapa do procedimento bifásico serve muito mais à acusação do que à defesa, ainda que isso decorra de um desapreço da magistratura à função garantidora da pronúncia. O fato é que se considerarmos que umas das reclamações sobre o júri é a demora no julgamento, penso que racionalizaríamos o problema, criando uma defesa preliminar antes do recebimento da denúncia e, uma vez admitida a acusação, já seria possível realizar o plenário, até porque os elementos que alicerçam o recebimento da inicial são os mesmos que autorizam a pronúncia.
Alguém poderia dizer que não seria possível mandar o processo diretamente para o Júri logo depois de recebida a denúncia, pois pode haver perícias e outras diligências a serem cumpridas antes do plenário, mas a meu juízo isso pode ser resolvido sem problema algum, bastando que o Juiz mande fazer as perícias e espere a conclusão dos trabalhos a esse respeito e em seguida remeta os autos para julgamento.
Por fim, penso que outra questão a ser considerada diz com as qualificadoras, que representam um dos grandes problemas na instrumentalidade do tribunal do júri, pois, de regra, são inseridas na pronúncia em homenagem ao princípio da dúvida em favor da sociedade, deixando o juiz de talhar o excesso de acusação, postergando seu mister ao conselho de sentença.
Disso decorre um outro problema, que tenho chamado de uma verdadeira armadilha processual. Explico: o juiz da pronúncia chancela as qualificadoras, sem fazer uma análise crítica, louvando-se, repita-se, no surrado bocado do in dubio pro societate, sendo certo que os tribunais quando examinam recurso em sentido estrito usam a mesma fórmula para manter as qualificadoras, esmerando-se em dizer que o somente o juiz natural pode afastá-las. Pois bem. Mais adiante, quando o réu já se encontra condenado, vem o recurso de apelação e a resposta que os tribunais costumam dar é a de que não podem anular o julgamento, pois o conselho de sentença é soberano. Em uma palavra, o réu vai a júri pela dúvida e depois permanece condenado em razão da soberania do tribunal popular.
Minha ponderação é no sentido de que o julgamento deva se encerrar no terceiro quesito, ou seja, depois de examinar a materialidade e autoria e decidir se absolve ou condena, caberia ao juiz togado cumprir a vontade do júri, sendo certo que em caso de condenação o magistrado faria o exame de cada qualificadora, bem como das atenuantes e agravantes, para depois fixar a pena com a devida fundamentação.
Percebam que nesse cenário que proponho as qualificadoras e as circunstâncias atenuantes e agravantes estariam no âmbito de competência do magistrado e não do conselho de sentença, de modo que o tribunal poderia, ao examinar o recurso de apelação, afastá-las sem a necessidade de anular o julgamento pelo conselho de sentença, ou reinseri-las, caso o magistrado as tenha afastado sem a devida motivação.
Em resumo, penso que essas minhas ponderações poderiam evitar julgamentos injustos, com a possibilidade de o acusado fazer a opção pelo juiz togado, poderíamos ainda abreviar o tempo do processo com a extinção da primeira fase e, por fim, teríamos um ganho no julgamento das apelações, com a possibilidade de os tribunais decotarem as qualificadoras e as circunstâncias do crime, como também recolocá-las, sem a necessidade de anular um julgamento que no mérito não há erro algum.
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1 https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/criminal/artigos/processo_penal/renuncia_ao_julgamento_pelo_juri_no_processo_penal_-_v._aras.pdf
2 http://www.diaulas.com.br/artigos.asp?id=213&p_ch=