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Parte II: A ausência de óbices após a entrada em vigor da nova parte geral do Código Penal

O argumento fundamental que sustentava a impossibilidade de redução é simplesmente eliminado do ordenamento jurídico, eis que a vedação legal, pela interpretação sistemática do Código Penal, não pode mais incidir diretamente às circunstâncias legais.

19/7/2023

Introdução

Na primeira parte dessa série de artigos, vimos que a origem da vedação da redução da pena em patamar inferior a pena mínima tem como origem a redação da Parte Geral do Código Penal de 1940.

Em razão da não delimitação das duas primeiras fases de aplicação da pena – que suscitava o debate doutrinário entre os métodos bifásico e trifásico – a interpretação unânime que que se dava à época era a de que a expressão “circunstâncias” do art. 42, da antiga Parte Geral, englobava tanto as judiciais como as legais. E que ambas deveriam ser fixadas “dentro dos limites legais”, nos termos do inciso II, do mesmo artigo.

A reforma da Parte Geral de 1984, por seu turno, positiva o método trifásico e dá tratamento distinto às circunstâncias legais e judiciais, com impactos significativos para o problema enfrentado nessa série de artigos, como veremos a seguir.

O advento da Parte Geral de 1984 e a inexistência de vedação expressa

Sem dúvida nenhuma, a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984 é o marco inicial da tese sobre a possibilidade redução da pena em razão do reconhecimento de circunstâncias atenuantes por um motivo simples e altamente relevante: adotou definitivamente o critério trifásico de aplicação da pena.1

Destarte, o atual art. 68, do Código Penal preceitua que:

Art. 68 - a pena base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e aumento.

Houve, portanto, a delimitação das três fases de aplicação da pena. Fixou-se de uma vez por todas a diferenciação legal entre as circunstâncias legais e judiciais; diferenciação essa que era rechaçada por alguns autores partidários do método bifásico da aplicação da pena.

O regime aplicado às circunstâncias judiciais passa a ser diferente do aplicado às circunstâncias legais, que serão examinadas em fase posterior no momento da aplicação da pena. Assim, ao contrário do que fazia o antigo art. 42, distinguiu-se com precisão as circunstâncias judiciais das circunstâncias legais.

É a partir desse ponto que alguns autores passam a afirmar que a vedação que existia no regime anterior caiu por terra com a entrada em vigor da nova Parte Geral do Código, inexistindo dessa forma, qualquer vedação legal.2

De fato, a partir da entrada em vigor da nova Parte Geral fica claro que quando o artigo 59 impõe que o juiz fixará a pena atendendo às “circunstâncias e consequências” do crime, “dentro dos limites previstos” (inciso II), está se referindo tão somente às circunstâncias judiciais e não às circunstâncias legais, que serão apreciadas em momento posterior.

Assim, pode-se perceber que a limitação ao máximo e mínimo da pena, a que se refere o inciso II, do art. 59 do Código Penal, remete à primeira fase da aplicação da pena, qual seja, a das circunstâncias judiciais. As circunstâncias legais não mais estariam encampadas nesse dispositivo.

É a partir desse fundamento que se desenvolve a tese de que não haveria qualquer ilicitude na diminuição da pena aquém do mínimo legal e, ao contrário, sua vedação se colocaria contra princípios fundamentais do ordenamento jurídico nacional, como o princípio da individualização da pena e o princípio da legalidade.

Com efeito, quando se invoca o princípio da individualização da pena para sustentar a diminuição da pena aquém do mínimo legal, está a se falar da individualização judicial da pena, atendo-se às circunstâncias do caso concreto.

E longe de qualquer dúvida, se na aplicação da pena, não se observar sua diminuição, ainda que reconhecida uma circunstância atenuante, nos depararemos com violação ao princípio da individualização da pena. E isso porque, a atenuante será simplesmente ignorada, o que vale dizer que uma parte das circunstâncias do crime, benéfica ao agente, não será levada em conta no cômputo da pena.3 E, se se ignora uma circunstância do crime, obviamente, não se aplicará a pena justa, proporcional e individualizada ao caso concreto.

É perceptível a injustiça que a proibição acarreta quando nos deparamos com situação em que dois agentes cometem o crime em concurso e um dos agentes possui uma circunstância pessoal que atenua sua conduta. No cômputo da pena, uma vez aplicada a pena-base no mínimo, essa circunstância será simplesmente ignorada e, tanto o beneficiado pela atenuante, como o outro agente, terão penas iguais.

Outro argumento que surge com a reforma de 1984 é o de que a proibição da redução infringiria o princípio da legalidade, na medida em que o artigo 65, do Código Penal, quando elenca as circunstâncias atenuantes é expresso em exaltá-las como circunstâncias que sempre atenuam a pena.

A presença do termo “sempre” é o fundamento para se afirmar que o juiz não pode deixar de aplicar a circunstância, ainda que a pena-base tenha sido fixada no mínimo.4 A expressa previsão no texto normativo sustenta a tese da infração ao princípio da legalidade decorrente da proibição da diminuição da pena.

A lei é impositiva e nenhum de seus termos é aplicado em vão, não podendo ser meramente suprimidos. Se o legislador entendeu que deveria usar a expressão “sempre”, com absoluta certeza, não intentou que qualquer situação pudesse flexibilizar a regra que imprimiu. Caso contrário, tal qual se vê no Código Penal Militar, teria adicionado ao texto normativo a expressão guardado os limites da pena comida ao crime”.

De tal forma, se há infração ao princípio da legalidade, ele decorre antes da proibição da diminuição pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstância atenuante, e não de sua permissão.

Conclusão

Com o advento da nova Parte Geral, de 1984, consolida-se o método trifásico de dosimetria da pena, cindindo-se claramente o regime aplicável às circunstâncias judiciais do art. 59 – que por imposição legal deveria encontrar seus limites nos marcos do preceito secundário – do regime que deveria ser aplicável às circunstâncias legais, em especial às circunstâncias atenuantes, que nos termos do art. 65, sempre devem atenuar a pena.

Portanto, a partir de 1984, o argumento fundamental que sustentava a impossibilidade de redução é simplesmente eliminado do ordenamento jurídico, eis que a vedação legal, pela interpretação sistemática do Código Penal, não pode mais incidir diretamente às circunstâncias legais.

Na terceira parte dessa série de artigos, mostraremos como a jurisprudência se comportou após a alteração legislativa, levando a cristalização da impossibilidade de redução até os dias de hoje, quando, felizmente, mas não sem atraso, a 3ª seção do Superior Tribunal de Justiça prevê a revisitação do tema, por iniciativa do Min. Rogério Schietti, a quem desde já congratulamos.

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1 Paulo José da Costa Júnior (Op. Cit. P. 357) assevera que “O legislador de 1884 decidiu-se a tomar posição, adotando o tresdobramento do processo de fixação da pena. Na primeira fase, o magistrado levará em conta as circunstâncias judiciais. Na segunda, considerará as agravantes e atenuantes legais. Na derradeira etapa, atenderá às causas de aumento ou de diminuição de pena”.

2 “Já não existe nenhum impedimento legal ou constitucional para que o juiz, diante de uma circunstância atenuante, fixe a pena de prisão aquém do mínimo legal. Todo discurso deôntico, como bem sublinhou Lauro José Ballock (em recente dissertação de Mestrado, sustentada na Unisul-Tubarão-SC), conduz a essa conclusão. Logo, se refutação ainda existe, é puramente ideológica”. (GOMES, Luiz Flávio. Circunstâncias atenuantes e pena aquém do mínimo: é possível. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.10, n.119 Esp., p. 12-13, out. 2002).“Na realidade, nos deparamos frente a uma interpretação e aplicação da pena com no mínimo 55 (cinqüenta e cinco) anos de atraso, em relação ao novo Código Penal, não nos referindo à atualização ocorrida com o advento da Lei 7.209, de 1984, e sim ao Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, já que desde a prolação do referido Decreto-Lei, o sistema de aplicação da pena passou a ser trifásico, sistema este adotado pelo saudoso Ministro Nélson Hungria. Antes da promulgação do Decreto-Lei nº 2.848, a aplicação da pena era feita no Brasil pelo sistema bifásico, que consistia na aplicação da pena subdividida em duas fases distintas. A primeira consistia na fixação da pena-base, na qual o Juiz, atentado-se às circunstâncias judiciais (ou legais) e às agravantes e atenuantes, deveria fixá-la, dentre as penas previstas ao crime, razão pela qual a presença de uma atenuante ou agravante não poderia ultrapassar o patamar máximo e mínimo previsto ao crime; já na segunda fase, incidiam as causas gerais ou especiais de aumento e diminuição de pena, que podiam ultrapassar os limites da pena cominada. Repete-se, as circunstâncias atenuantes e agravantes incidiam na 1ª fase da aplicação da pena, na qual o aplicador da lei está restrito, pela própria lei, aos limites da pena in abstrato, já que constavam os seguintes dizeres "as penas aplicáveis dentre as cominadas". Nesta época sim, existia regramento legal que previa a aplicação das agravantes e atenuantes, com os parâmetros da pena cominada; contudo, com o advento do referido Decreto-Lei, passou a ser adotado em nosso País a aplicação trifásica da pena, na qual se separou a apreciação das circunstâncias legais das circunstâncias agravantes ou atenuantes, que passaram a ser aplicadas em fase distinta (mais precisamente na segunda fase) e como já explicitado acima, foi retirado seu impedimento legal de redução e aumento aquém e além dos patamares estabelecidos abstratamente ao crime”.(LEITE, Antonio Candido Reis de Toledo. Agravantes e atenuantes. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.32, p. 04, ago. 1995).

3 Confira-se sobre o tema o que aduz Luis Flávio Gomes (Op. Cit): A tarefa do juiz, na sentença, é a de individualizar a pena. Mas se a pena mínima não puder ser ultrapassada (em virtude de um posicionamento doutrinário e jurisprudencial equivocado, claramente presunçoso e inconstitucional), colocar-se-á numa vala comum incontáveis condenados que contam com situações diferentes. Isso implica séria violação ao princípio da igualdade (assim como profundo desrespeito ao valor justiça, que é o valor meta do Estado Constitucional e Democrático de Direito).

Com esse posicionamento, Antonio Candido Reis de Toledo Leite (Op. Cit.): “Em um segundo plano, encontram-se no artigo 65 do Código Penal as chamadas circunstâncias atenuantes, estipulando-se no caput que quando da ocorrência de uma das circunstâncias abaixo elencadas, a pena deve obrigatoriamente ser atenuada, dizendo que: "São circunstâncias que sempre atenuam a pena:" (grifo nosso). Ora, a lei prevê expressamente que quando da ocorrência de uma das circunstância acima citadas, deve obrigatoriamente ocorrer uma mudança da pena a ser aplicada, por se expressar uma diminuição de culpabilidade, ou mesmo uma maior culpabilidade, não havendo nenhuma vinculação com a fixação da pena base, que é fixada seguindo-se os critérios estabelecidos no artigo 59 do CP”. Na mesma toada, Luis Flávio Gomes (Op. Cit.): Aliás, considerando-se o teor literal do art. 65 do CP (são circunstâncias que sempre atenuam a pena...), se uma atenuante (devidamente comprovada) não tiver incidência concreta, o que se faz é uma analogia contra o réu in malam partem (leia-se: usa-se contra o réu na segunda fase da aplicação da pena os mesmos critérios da primeira)”.

Bruno Salles Ribeiro
Advogado criminalista, 1º Secretário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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