O direito de voto do inquilino em assembleias condominiais é um tema controverso no direito condominial brasileiro. O Código Civil não trouxe qualquer abertura de direito de votos por parte dos inquilinos. No entanto, essa exclusão levanta discussões sobre os limites do poder dos condôminos proprietários e sobre a possibilidade de abuso de poder. Neste artigo, examinaremos o embasamento legal dessa questão e os diferentes posicionamentos doutrinários a respeito.
Embasamento legal e exclusão do direito de voto do inquilino:
O Código Civil trouxe do artigo 1314 até o 1356 diversas disposições regulações sobre o tema condomínio. Boa parte da doutrina alega que que o referido diploma revogou explicitamente os artigos 1º a 27 da lei 4.591/64, que incluíam o §4º do art. 24 permitindo a participação e voto do inquilino nas assembleias condominiais. O que se entende é que ao revogar a legislação anterior, o Código Civil não restabeleceu o direito de voto do inquilino, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não adota o instituto da repristinação2.
Portanto, atualmente o entendimento majoritário vem sendo de que não há disposição legal que obrigue o condomínio a permitir a participação do inquilino nas assembleias.
Possibilidade de participação e voto do inquilino:
Alguns doutrinadores argumentam que a lei do Inquilinato (lei 8.245/91) deve prevalecer sobre o Código Civil, considerando-a uma lei especial em relação ao assunto em análise. O artigo 83 da lei do Inquilinato estabelece a possibilidade de o locatário votar em assembleias que tratam de despesas ordinárias na ausência do condômino locador. Portanto, segundo esse entendimento, o inquilino teria o direito de votar nas assembleias condominiais em relação a assuntos relacionados a despesas ordinárias.3
Impossibilidade de participação e voto do inquilino:
Segunda corrente doutrinária defende que não é possível a participação e votação do inquilino nas assembleias condominiais, mesmo em casos que envolvam apenas despesas ordinárias. Argumenta-se que o Código Civil trouxe ampla ordenação sobre o tema revogando a lei de condomínios em relação a essa questão, não havendo mais previsão legal para o direito de voto do inquilino.
Além disso, deve-se frisar que o locatário não é condômino de acordo com o artigo 1334, §2º do Código Civil4. Portanto, esse posicionamento sustenta que o inquilino não possui o direito de voto, independentemente do assunto tratado em assembleia.
Uso de procuração e voz ativa do inquilino:
Embora o inquilino possa não possuir direito de voto, ele ainda deverá ter voz ativa em relação às despesas ordinárias do condomínio, conforme se verificou em decisão5 proferida pelo TJMG em sede de apelação, que confirmou os direitos dos locatários em questionar as despesas do condomínio, apesar de não ter sido reconhecido o direito de voto.
Tal decisão caminha em um bom rumo, uma vez que privilegiou o princípio da boa-fé, da sociabilidade e da eticidade ao reconhecer o direito do inquilino de questionar e discutir as despesas ordinárias do condomínio, temas que lhe atingem diretamente, especialmente quando estas despesas se dão de forma abusiva, desproporcional ou em desacordo com as normas legais.
O abuso de direito no âmbito condominial:
A questão do abuso do direito e da função social da propriedade são temas de grande relevância no âmbito jurídico, exigindo uma análise cuidadosa e equilibrada. Enquanto o abuso do direito envolve a conduta que ultrapassa os limites da boa-fé objetiva, prejudicando terceiros ou causando danos desproporcionais, a função social da propriedade busca garantir que o direito de propriedade seja exercido em consonância com o interesse coletivo e a preservação do meio ambiente.
Para identificar o abuso do direito, é necessário levar em consideração critérios estabelecidos pela doutrina e jurisprudência. O excesso de direito ocorre quando o titular de um direito o exerce de forma desproporcional, causando prejuízos injustificados a terceiros. É fundamental avaliar se a conduta ultrapassou os limites do razoável. O desvio de finalidade ocorre quando o titular de um direito o utiliza para fins contrários à sua finalidade legítima. Nesse caso, é necessário analisar se o exercício do direito visa atender interesses pessoais em detrimento do interesse coletivo. A conduta contraditória, por sua vez, ocorre quando o titular de um direito age de forma incoerente ou contraditória em relação ao exercício desse direito. A análise dessa conduta leva em consideração a confiança legítima das partes envolvidas.
A função social6 da propriedade, por sua vez, é embasada em princípios que orientam sua aplicação. O interesse coletivo determina que a propriedade seja exercida em consonância com o interesse da coletividade, buscando-se o equilíbrio entre os interesses individuais e o bem-estar social. A preservação ambiental estabelece que o direito de propriedade deve ser exercido de forma a respeitar e preservar o meio ambiente, garantindo o desenvolvimento sustentável das comunidades. A utilização adequada da propriedade também é um princípio importante, determinando que ela seja utilizada de maneira adequada e compatível com sua finalidade, evitando-se o desperdício e a subutilização dos recursos.
Nesse contexto, a legislação e a jurisprudência desempenham um papel fundamental na interpretação e efetivação dos conceitos de abuso do direito e função social da propriedade. Normas específicas e decisões judiciais consolidadas contribuem para estabelecer critérios e diretrizes que orientam a atuação dos operadores do direito, garantindo segurança jurídica e uniformidade nas decisões.
No direito brasileiro, esses critérios têm sido objeto de debates e reflexões no sentido de encontrar um equilíbrio entre o exercício dos direitos individuais e os interesses coletivos.
Um dos critérios adotados é o princípio da razoabilidade, que busca avaliar se a conduta do titular do direito é justificada e proporcional diante das circunstâncias. Esse critério leva em consideração o senso comum e busca evitar situações em que o exercício de um direito ultrapasse os limites do aceitável, causando prejuízos injustificados a terceiros.
Além disso, a finalidade social do direito é um aspecto importante a ser considerado. No caso específico dos condomínios, por exemplo, o direito de propriedade deve ser exercido de forma a promover a convivência harmoniosa entre os condôminos e o bem-estar coletivo. Nesse sentido, o abuso de direito pode ser identificado quando um condômino age de forma egoísta e individualista, prejudicando a coletividade.
A boa-fé objetiva também é um critério relevante na identificação do abuso de direito. Esse princípio impõe aos sujeitos de direito um padrão de conduta baseado na lealdade, honestidade e cooperação. Assim, o abuso de direito pode ser caracterizado quando uma parte age de forma contrária à boa-fé, aproveitando-se da vulnerabilidade ou confiança depositada pelo outro.
Por fim, a lesão a direitos de terceiros é um indicativo importante na identificação do abuso de direito. Quando uma conduta causa prejuízos desproporcionais e injustificados a terceiros, violando seus direitos, configura-se um abuso do direito.
Em síntese, a identificação do abuso de direito no direito brasileiro envolve uma análise complexa que leva em consideração critérios como a razoabilidade, a finalidade social do direito, a boa-fé objetiva e a lesão a direitos de terceiros. Esses critérios têm como objetivo garantir um equilíbrio entre os direitos individuais e os interesses coletivos, contribuindo para a construção de uma sociedade justa e harmoniosa.
Se faz imperioso equilibrar os direitos dos proprietários e inquilinos, evitando abusos de poder por ambas as partes. A jurisprudência mais inovadora tem buscado assegurar que o inquilino tenha o direito de questionar e discutir ao menos as despesas ordinárias do condomínio, protegendo assim seus interesses legítimos.
Há também que se destacar, de forma sintética, o caso das incorporações imobiliárias, em que a Incorporadora ao instituir o condomínio e a Convenção Coletiva deste, o faz concedendo a si o uso exclusivo de áreas comuns, bem como gerência de serviços internos. Nesse caso, é importante garantir que a convenção seja justa e considere os interesses de todos os envolvidos, evitando o uso abusivo do poder por parte da incorporadora, podendo este, caso verificado, ser questionado judicialmente.7
Em suma, o abuso do direito e a função social da propriedade são questões complexas e interligadas que requerem uma análise cuidadosa e equilibrada. A compreensão dos critérios, princípios e fundamentos que norteiam esses conceitos é fundamental para a adequada solução de conflitos e para o desenvolvimento sustentável da sociedade. A legislação e a jurisprudência desempenham um papel importante na definição de diretrizes e critérios que garantam a justiça, a harmonia social e a preservação dos direitos fundamentais.8
V. Considerações Finais
Após examinar o embasamento legal e os diferentes posicionamentos doutrinários acerca do direito de voto do inquilino em assembleias condominiais, é possível concluir que a questão é controversa e suscita debates no âmbito do direito condominial brasileiro.
No contexto normativo, o Código Civil brasileiro estabelece que apenas os proprietários têm o direito de voto nas assembleias, excluindo os inquilinos. Essa exclusão é reforçada pela revogação dos artigos 1º a 27 da lei 4.591/64, que anteriormente permitiam a participação e voto do inquilino nas assembleias condominiais.
No entanto, existem posicionamentos doutrinários divergentes sobre o tema, fundamentados, principalmente, no entendimento de que a lei do Inquilinato (lei 8.245/91) deve prevalecer sobre o Código Civil, considerando-a uma lei especial em relação ao assunto em análise, além de uma percepção mais constitucional e garantista sobre o assunto. Segundo esse posicionamento, o inquilino teria o direito de votar em assembleias condominiais que tratam de despesas ordinárias na ausência do condômino locador, sob pena de se adotar medidas incompatíveis ao interesse maior da coletividade e do equilíbrio das relações condominiais.
Entendemos que permitir o Inquilino de votar naquilo que lhe “dói” diretamente é privilegiar o bom senso, a razoabilidade e a coletividade ante ao solitário direito de propriedade. Trata-se de olhar para o bem daqueles que vivem no local, sem jamais, obviamente, comprometer os interesses de longo prazo daqueles que verdadeiramente são condôminos entre si.
No que diz respeito ao abuso de direito e à função social da propriedade, é fundamental considerar os princípios estabelecidos pela doutrina e jurisprudência. O abuso do direito ocorre quando seu exercício ultrapassa os limites da boa-fé objetiva, causando prejuízos injustificados a terceiros. Já a função social da propriedade busca conciliar o interesse individual do proprietário com o interesse coletivo e a preservação do meio ambiente.
Finalmente, ressalta-se a importância de uma convenção condominial justa, que considere os interesses de todos os envolvidos, principalmente em casos de incorporações imobiliárias. A participação ativa dos inquilinos, mesmo sem o direito de voto, contribui para a transparência e a discussão democrática das questões condominiais, fortalecendo a coletividade e privilegiando-se a harmonia social.
Dessa forma, a compreensão das normas e princípios que regem o direito de voto do inquilino em assembleias condominiais é essencial para a adequada solução de conflitos e para o desenvolvimento sustentável da sociedade. O respeito aos direitos fundamentais, a justiça e a harmonia entre os diversos atores envolvidos são pilares para a construção de um ambiente condominial equilibrado e justo.
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1 Artigo 24, §4º, da lei 4591/64: Nas decisões da Assembleia que não envolvam despesas extraordinárias do condomínio, o locatário poderá votar, caso o condômino-locador a ela não compareça. (Redação dada pela Lei nº 9.267, de 25.3.1996)
2 Instituto pelo qual se restabelece a vigência de uma lei revogada pela revogação da lei que a tinha revogado.
3 Esse é o entendimento expressado pelo Professor Luis Antônio Scavoni Junior em sua obra Direito Imobiliário, Teoria e Prática, ed. 16, pág. 989, em que ensina: Na ausência do condômino, o locatário, no nosso entendimento, pode votar (Lei 4.591/1964, artigo 24, §4º, com redação da Lei 9.267, de 25.03.1996), salvo nas decisões sobre despesas extraordinárias.
4 Superior Tribunal de Justiça STJ - REsp 1516360 MT 2015/0034927-0.
5 APELAÇÃO CÍVEL – CONDOMÍNIO – NULIDADE DE ASSEMBLÉIA-GERAL E COBRANÇA DE VALORES INDEVIDOS – ILEGITIMIDADE ATIVA – DESPESAS DE MANUTENÇÃO – DEVER DO CONDÔMINO – NULIDADE PARCIAL DE ASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA. Os locatários, como são responsáveis pelo pagamento das taxas condominiais, tem legitimidade para questionar a cobrança de certas verbas, bem como requerer a anulação de assembleia que afetou os valores correspondentes ao imóvel locado. Se os valores cobrados pelo Condomínio são condizentes aos previstos na Convenção, não há que se falar em restituição de valores. É ônus do réu a prova da existência de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor. Não se desincumbiu o condomínio de sua tarefa processual, não demonstrando que a questão sobre o rateio de despesas das unidades comerciais constava no edital de convocação ou foi objeto de deliberação dos condôminos, devendo a assembleia ser parcialmente anulada. (TJMG – Apelação Cível 1.0145.11.054365-2/001, Relator (a): Des.(a) Estevão Lucchesi , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/07/2013, publicação da sumula em 19/07/2013)
6 A função social consiste na utilização da propriedade, urbana ou rural, em consonância com os objetivos sociais de uma determinada cidade. A função social impõe limites ao direito de propriedade, para garantir que o exercício deste direito não seja prejudicial ao bem coletivo.
7 “Assim, se houver abuso de direito, com evidente ausência de interesse econômico ou social, afronta a boa-fé e aos bons costumes, a deliberação , ainda que tomada regularmente, poderá ser anulada. (Luis Antônio Scavoni Junior em sua Obra Direito Imobiliário, Teoria e Prática, ed. 16, pág. 988.)
8 Sobre o abuso de direito no âmbito condominial, vale refletir também as situações em que um único condômino representa por procurações diversos condôminos, possuindo assim maioria de votos e, portanto, decidindo sozinho sobre todas as questões. Vide página 321 e 325 do livro Condomínio Edilício e suas Instituições, 2º tiragem, Luis Arechavala, Lumem Juris Direito.