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O estupro em ambiente virtual

A evolução da tecnologia vem trazendo grande discussão acerca da possibilidade de se qualificar certos atos como crimes - antigamente praticados e possíveis apenas no mundo físico - quando praticados no ambiente digital. Isso não é diferente no que diz respeito ao crime de estupro.

16/5/2023

Em razão de telenovela atualmente transmitida em grande rede de televisão, voltou à baila a possível capitulação do chamado “estupro virtual”, nos termos do artigo 2131, do Código Penal.

Nesse contexto, o primeiro ponto a ser observado é que o núcleo da conduta típica – crime - determina que o agente (independentemente do gênero) deve constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a: i) ter conjunção carnal; ou ii) a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Para o autor Rogério Grecco2,  o tipo penal se traduz em obrigar, forçar, subjulgar a vítima, a fim de obter uma vantagem sexual, mediante violência ou grave ameaça. Trata-se de crime doloso, onde o elemento subjetivo do tipo é a satisfação do agente.

Com efeito, foi incorporado ao núcleo do tipo do estupro a antiga conduta típica do atentado violento ao pudor, após alterações implementadas pela Lei Federal 12.015/09.

Nesse contexto, o meio utilizado para se consumar o primeiro elemento objetivo do tipo específico apresenta-se consolidado e é bastante claro, na medida em que impossível a sua realização em ambiente virtual, sendo indispensável que haja conjunção carnal entre dois indivíduos. Portanto, esse ato somente pode ser realizado, e ocorre, no mundo real e físico.

Assim, é no meio utilizado para consumação do segundo elemento objetivo do tipo específico - praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso - que existe grande debate.

Há o entendimento de que para a configuração do ato libidinoso, não seria necessária a presença física do agressor e da vítima no mesmo ambiente físico, uma vez que, ato libidinoso pode ser entendido como qualquer ato que vise a satisfação da lasciva de outrem, como bem pondera Guilherme Nucci:

“Ato libidinoso: é o ato voluptuoso, lascivo, que tem por finalidade satisfazer o prazer sexual, tais como sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou de outros objetos, dentre outros.”3

Julio Mirabete também proferiu o seguinte entendimento:

“Trata-se, portanto, de ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafago da concupiscência. Alguns são equivalente ou sucedâneo da conjunção da conjunção carnal (...)”4

Nesse sentido, para tal teoria, a configuração do núcleo do tipo penal não precisaria haver contato físico entre os agentes, pois referido tipo penal visa garantir a dignidade sexual do ofendido, como esclarece Guilherme de Souza Nucci:

“(...) para a configuração do estupro na forma do art. 213, ou do estupro de vulnerável, no modelo do art. 217-A, não há necessidade de contato físico. A dignidade sexual pressupõe o respeito à vontade de outrem quanto ao fomento da lascívia alheia”5

Julio e Renato Fabrini ainda argumentam que tal tipo penal visa resguardar a integridade do indivíduo, independentemente do gênero:

“Protege-se no crime de estupro não a simples integridade física, mas a liberdade sexual tanto do homem quanto da mulher, ou seja, o direito de cada indivíduo de dispor de seu corpo com relação aos atos de natureza sexual, com o aspecto essencial da dignidade da pessoa humana.”6

Nessa linha argumentam aqueles que defendem a possibilidade de que a grave ameaça à distância também configuraria o crime de estupro conquanto for realizado um ato libidinoso para satisfazer lascívia de outrem.

Por grave ameaça podemos entender como todo ato eficaz capaz de compelir a vítima a praticar o ato sexual ou ato libidinoso, causando-lhe um grave mal espiritual, como bem pondera Alberto Silva Franco:

“Já a grave ameaça (vis compulsiva ou violência moral, tem de se revestir das características de suficiência bastante par que venha a vencer a resistência do sujeito passivo – sem que precise ser irresistível ou absoluta, uma vez que a seriedade/gravidade da ameaça é medida por sua eficácia e não pela sua quantidade – e, necessita existir uma relação causa-efeito entre a grave ameaça e o ato sexual, de forma tal que seja possível dizer que o segundo não aconteceria se houvesse faltado a primeira.”7

Nesse contexto, a ameaça de divulgação de fotos íntimas da vítima, para que esta pratique ato que sacie apetite lascivo de outrem, pode ser considerada como grave ameaça, na medida em que tal fato modifica a liberalidade do ato da vítima, atingindo a sua psique, expondo-a de forma extrema perante a sociedade, como, inclusive, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou8:

Apelação da Justiça Pública – Estupro – Ocorrência de conjunção carnal entre réu e vítima – Consistente depoimento da vítima e da testemunha – Ameaça do réu em divulgar imagens íntimas da vítima – Circunstância suficiente a demonstrar a grave ameaça – Negativa da vítima quanto ao consentimento ao ato sexual – Condenação de rigor – Crime de Ameaça – vítima ameaçada por meses após a violência sexual – Tentativa de assegurar a impunidade do crime antecedente – Corrupção de menores – Delito de natureza formal, bastando à consumação que o menor participe da empreitada criminosa – Sumula 500 do Superior Tribunal de Justiça – Penas-base fixadas no mínimo legal – Circunstância agravante da reincidência – Exasperação das penas em 1/6 – Regime prisional fechado – Crime hediondo – Recurso provido.

O E. Desembargador Cesar Augusto Andrade, em seu v. voto, afirma que o ato de ameaça de divulgação de imagens pode acarretar desastroso resultado, obrigando a vítima a praticar atos contrárias à sua vontade:

“Ora, não é preciso muita pesquisa para que se encontrem casos de mulheres que, por terem imagens de seus corpos expostas na Internet, chegam até mesmo a ceifar a própria vida. Se tais fatos costumam ter consequências devastadoras para mulheres adultas e sexualmente ativas, com muito mais rigor ocorreriam com um adolescente (...) Aliás, parece plausível que a vítima, aterrorizada e envergonhada, sem que pudesse contar com o auxílio de seus familiares, tenha concordado em se encontrar com o acusado, na esperança de evitar um mal maior (...)”

Com efeito, o entendimento é no sentido de que embora, não se utilize de força física e, assim, não sejam cometidas lesões, o abalo psicológico deve ser levado em conta, tendo em vista que em alguns casos pode não vir a ser recuperado e, por isso, acabam entendendo que mesmo não havendo de fato o contato físico, o delito acaba por configurado.

A questão em análise é a finalidade buscada pelo autor no cometimento do crime, pois o objetivo principal é a satisfação de lascívia do mesmo, ou seja, o que importa ao agente é se satisfazer sexualmente. Logo, para o delito ser concretizado, é essencial que seja demonstrado a satisfação do autor com os atos cometidos, para que não restem dúvidas sobre os acontecimentos, nem sobre as reais intenções do criminoso ao praticar o delito, logo, a concretização da intenção é essencial.

Também na esteira do assunto levantado pela telenovela e em convergência a esta teoria delitiva, a BBC News Brasil publicou matéria intitulada “Como promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil”9, abordando situação na qual no início de 2020 a 8ª Câmara Criminal E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença condenatória proferida em face de estudante de medicina de 24 anos, estipulando a pena em 12 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão pela prática dos crimes de aquisição, posse ou armazenamento de material pornográfico, de aliciamento/assédio para levar criança a se exibir de forma pornográfica, ambos previstos no ECA, e de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, praticado por meio virtual (artigo 217-A do Código Penal).

No referido caso, o predador sexual que mantinha armazenado em seu computador milhares de imagens pornográficas e de pedofilia, fazia solicitações sexuais para um menino de apenas 10 anos por meio da câmera.

Após a situação ser descoberta pelo pai da criança e com o avanço das investigações, à época buscou o Ministério Público embasar sua acusação em precedente do E. Superior Tribunal de Justiça entendendo que o contato físico não era mandatório para sentença condenatória, bastando que ambos estivessem no mesmo ambiente e que a ação de um satisfaça o desejo sexual de outro.

Ao julgar o recurso de apelação, a Desembargadora Relatora rejeitou o pedido da defesa para desclassificar o crime de estupro de vulnerável para importunação sexual: "Assim, o que se vê é que, o comportamento ilícito do denunciado, tendo a lascívia como seu elemento propulsor, de cunho evidentemente sexual, portanto, chegando à efetiva prática dos atos libidinosos, ainda que sem contato físico com a vítima, foi muito além do mero assédio, encontrando enquadramento típico no crime do estupro de vulnerável, na modalidade atentado violento ao pudor."

Portanto, esse entendimento hoje é acompanhado por parte da doutrina e jurisprudência que sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pelo ofendido10.

Em contraponto a essa teoria, muitos autores entendem pela necessidade de contato físico com a vítima, afirmando que seria equivocada a condenação por um crime sem o toque na vítima. Isso porque, condenar alguém por estupro sem ao menos estar perto da vítima seria um atentado contra vários princípios do ordenamento jurídico e um enfraquecimento para o Direito Penal.

Nessa linha, alguns entendimentos firmaram-se no sentido de que quando não for possível verificar a ocorrência de grave ameaça, que fosse capaz de solidificar a coação moral irresistível, não estaria ocorrendo o crime de estupro, mas sim o tipo penal de constrangimento ilegal - por exemplo - fazendo com que, em alguns casos, o autor do delito seja condenado a uma pena que não esteja de acordo com a gravidade do ato praticado, pois não se pode equiparar uma pena de estupro com a de constrangimento ilegal.

Percebe-se, assim, os diferentes posicionamentos acerca do assunto e revela como as decisões devem ser tomadas com cautela, buscando sempre preservar a dignidade sexual da vítima, mas também a proporcionalidade em relação ao fato praticado e a sanção que será aplicada ao autor do crime, sob pena de ferir gravemente os princípios constitucionais da legalidade, taxatividade e proporcionalidade.

Sobre esse último, vale lembrar que, nos termos da Constituição Federal, deve haver proporção entre os delitos e as penas, de modo a ficar adequada à intensidade da lesão ao bem jurídico, pois o princípio da proporcionalidade não deve vigorar apenas no sentido de prevenção, mas também de senso de justiça.

Sob essa ótima, poderíamos dizer que na chamada modalidade de estupro virtual, a dignidade e liberdade sexual da vítima é violada, entretanto, a punição pode acabar sendo desproporcional. É em observância a estes fatos que se faz necessária a criação de uma tipificação muito específica, que seja capaz de contemplar a taxatividade e a proporcionalidade no momento da punição das condutas praticadas.

Assim, em conclusão, acredita-se que a dignidade sexual das pessoas deve ser protegida de maneira expressa e categórica na legislação, sendo baseada em leis que sejam proporcionais em cada modalidade que o estupro vier a assumir, assim, sendo possível trazer justiça para a vítima e ponderação entre a conduta praticada pelo acusado e a sanção a ele imposta. Não se deve analisar de maneira cautelosa apenas a situação da vítima, mas também a do acusado.

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1 Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

2 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017. v 3.p. 54

3 Op.cit.p.1175.

4 Op.cit.p.408.

5 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado.

6 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito penal. Vol. 2: parte Especial, arts 121 a 234-B do CP/Julio Fabbrini Mirabete, Renato N. Fabbrini. 32ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015.p.404.

7 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos.7ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.p.470.

8 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº0006196-54.2012.8.26.0587. Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo. Recorrido: Guilherme Felipe Naumann. 8ª Câmara de Direito Criminal. Desembargador Relator César Augusto Andrade de Castro. Jul. 09.02.2017.publ. 13.02.2017.

9 GRANCHI, Giulia. Como Promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxpw613pd4o. Acesso em 13.04.2023.

10 STJ. Recurso em Habeas Corpus 478.310/PA. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, Julgado em 09/02/2021, Data de Publicação: 18/02/2021.

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BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm . Acesso em 13.04.2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº0006196-54.2012.8.26.0587. Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo. Recorrido: Guilherme Felipe Naumann. 8ª Câmara de Direito Criminal. Desembargador Relator César Augusto Andrade de Castro. Jul. 09.02.2017.publ. 13.02.2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus 478.310/PA. Impetrante: Anamaria Prates Barroso. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Sexta Turma.Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Jul. 09.02.2021.publ. 18.02.2021.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos.7ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

GRANCHI, Giulia. Como Promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxpw613pd4o. Acesso em 13.04.2023.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017. v 3.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito penal. Vol. 2: parte Especial, arts 121 a 234-B do CP/Julio Fabbrini Mirabete, Renato N. Fabbrini. 32ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado.

Thiago Fernandes Conrado
Sócio do escritório Cruz & Fernandes Sociedade de Advogados, especialista em Direito e Tecnologia da Informação e Proteção de Dados, com ampla atuação em processos nas áreas cível e tecnologia.

Lara Mayara da Cruz
Sócia do escritório Cruz & Fernandes Sociedade de Advogados, especialista em Direito Penal Econômico, Direito Penal e Segurança Pública, com ampla atuação em consultivo e contencioso.

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