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Teoria da perda de uma chance na fórmula 1

Entenda a nova polêmica que reabre a discussão sobre o título da temporada de 2008.

17/4/2023

Em 2008, Felipe Massa e Lewis Hamilton disputavam ponto a ponto o título de campeão mundial de pilotos da F1.

Mas no Grande Prêmio de Singapura daquele ano, o piloto brasileiro Nelsinho Piquet trapaceou e provocou um acidente de forma dolosa para forçar a entrada do safety car que, naquela altura da prova, beneficiaria diretamente seu colega de equipe Fernando Alonso, da Renault.1

Não deu outra: em razão da fraude, o espanhol acabou ficando com a vitória em episódio que ficou conhecido como “Crashgate” ou “Singapuragate”.

Felipe Massa era pole position e seguia firme como líder da prova, mas ao entrar no box para uma parada forçada graças à entrada do safety car, a mangueira de combustível ficou presa ao carro, o que o retirou várias posições, não tendo pontuado no Grande Prêmio. Hamilton, por sua vez, somou pontos preciosos com a 3ª colocação obtida.

O grande enredo é que ao final da temporada, Hamilton faturou o título pela diferença de apenas 1 (um) ponto após épico GP do Brasil2, a revelar que se o Grande Prêmio de Singapura fosse anulado, Massa seria o campeão.

A fraude só foi revelada em 2009, quando o campeonato já havia sido finalizado, o que dificultou qualquer ação do brasileiro no sentido de anular a prova e, consequentemente, ser agraciado com o título da temporada de 2008, já que segundo o Código Internacional Esportivo, uma vez terminado o campeonato, não pode ser alterada a cerimônia da premiação. Dirigentes banidos, Nelsinho nunca mais correria na categoria, e o assunto com o tempo se arrefeceu.

Mas os holofotes sobre o assunto voltaram com força total nas últimas semanas com as recentes declarações do então chefão da F1, Bernie Ecclestone, no sentido de que já sabia do escândalo ainda em 2008, mas optou em não expor a informação. Ainda segundo Ecclestone, Felipe Massa deveria ser considerado o campeão daquela temporada.3

O fato de o maior dirigente da categoria ter omitido tal informação gerou a ira do piloto brasileiro, que garantiu não ter tomado providências judiciais à época justamente pela temporada já ter sido encerrada:

“O Bernie nunca tinha se posicionado como se posicionou recentemente, dizendo que sempre soube o que aconteceu e que eu sou, na opinião dele, o campeão de 2008. Eu consultei, na época, os advogados da Ferrari, fomos atrás também de outros advogados e a resposta foi que nada poderia ser feito. Eu, logicamente, acreditei nessa situação”4

E justamente por isso, e pelo engodo ter sido acobertado pelo maior dirigente da Federação Internacional de Automobilismo à época, o brasileiro quer discutir, agora na justiça, o seu direito em ser agraciado como Campeão Mundial de Pilotos de 2008.

“Uma situação inaceitável, que me deixou triste ao tomar conhecimento que o chefão da Fórmula 1 e o chefão da FIA souberam em 2008 e se calaram. Isso é muito grave e inadmissível para o esporte (...) Só quero justiça”

E aí surgem os questionamentos: se não tivesse acontecido a fraude, é possível garantir, com 100% de certeza, que Felipe Massa venceria o GP de Singapura? O que foi retirado do brasileiro: o título ou a chance de ficar com o título?

São perguntas retóricas, para dizer é impossível garantir que Felipe Massa venceria a prova e que ficaria com o título da temporada se eliminado o fator “Crashgate”.

E é justamente por isso que o Felipe Massa estuda anular judicialmente a prova, para que a pontuação obtida pelos demais pilotos seja desconsiderada, o que, por consequência, o levaria ao título.

Mas vamos pensar no caso hipoteticamente pela ótica do direito brasileiro. Caso não anulada a prova, poderia Felipe Massa se utilizar da Teoria da Perda de uma Chance para buscar uma indenização da Federação Internacional de Automobilismo condizente com a chance que lhe foi retirada?

A primeira verificação seria afeta à prescrição, já que se a fraude foi descoberta em 2009, desde então o brasileiro em tese já poderia lançar mão de sua pretensão indenizatória, o que poderia levar à uma ideia de prescrição nos termos do art. 206, §3º, V, do CPC5.

No entanto, o estudo do caso parece levar à uma conclusão distinta, já que só agora, em 2023, Felipe Massa teve acesso à informação de que o alto escalão da F1 já sabia da fraude durante o campeonato de 2008 e não tomou qualquer providência, o que tende a ser considerado o marco inicial para contagem da prescrição, nos termos da Teoria actio nata6, já que a postulação indenizatória contra a FIA era inviável enquanto a fraude estava adstrita à Renault, seus dirigentes e pilotos, não se cogitando, até então, ter havido tolerância e omissão dolosa da Federação Internacional de Automobilismo em relação ao ocorrido.

É até difícil mensurar o que o brasileiro deixou de faturar ao não ganhar aquele campeonato de pilotos. Fora o prêmio em dinheiro concedido pela própria categoria, o contrato do piloto com a scuderia Ferrari seguramente previa premiação pela conquista do título, fora os contratos de publicidade, a revisão de luvas, direitos de imagem, remuneração e muitos outros ganhos que necessariamente decorreriam da conquista.

A Teoria da Perda de uma Chance no Brasil não está prevista em lei, sendo uma construção doutrinária e jurisprudencial arrimada em um exercício de probabilidade calcado na chance perdida pela vítima. Afinal, eliminado o fator “crashgate”, de fato o piloto brasileiro tinha chances reais de ficar com o título da temporada?

Diante da dificuldade de estratificar o que  seria efetivamente uma “probabilidade real”, autores como Cavalieri Filho indicam que “A perda de uma chance, de acordo com a melhor doutrina, só será indenizável se houver a probabilidade de sucesso superior a cinquenta por cento, de onde se conclui que nem todos os casos de perda de uma chance serão indenizáveis.7

E não é necessário muito esforço cognitivo ou hermenêutico para se concluir que a fraude perpetrada pela Renault e tolerada pelos dirigentes da FIA retiraram do piloto brasileiro uma probabilidade relevante de vencer a prova e ficar com o título, que se dá por vários motivos:

  1. o circuito de Singapura é formado nas ruas da cidade, com histórico de poucas ultrapassagens (a exemplo de Mônaco), tendo o brasileiro afirmado ainda em 2008, antes do treino oficial da fatídica prova, que “uma boa posição no grid de largada será muito importante no GP de Cingapura, neste domingo. Além de ser um circuito de rua desconhecido, tempestades tropicais podem cair durante a prova”8.
  2. o piloto brasileiro fez a “pole position”, e liderava a prova até que a fraude se consolidou: Fernando Alonso parou nos boxes na volta 12, algo improvável para quem vinha do final do grid, e na volta 14 o piloto Nelsinho Piquet provocou o acidente de forma dolosa, para que o espanhol avançasse para a ponta do grid.
  3. Ao parar no box em razão da fraude, Felipe Massa teve problemas que o retiraram da zona de pontuação da prova.
  4. ao final do campeonato, apenas 1 (um) ponto separou o campeão Lewis Hamilton do vice-campeão Felipe Massa, mostrando que o resultado do GP de Singapura teve impacto decisivo da definição do campeonato mundial de pilotos.
  5. caso vencesse a prova, Felipe Massa assumiria isoladamente a liderança do campeonato na 15ª das 18 provas daquela edição.

Portanto, neste caso, é possível concluir que foi retirada do piloto brasileiro não o título, mas uma considerável chance de conquista-lo, abrindo espaço para que possa perquirir, em relação à FIA, a aplicação da Teoria da Perda de uma Chance.

Na ação, não poderá o piloto pedir exatamente o valor que deixou de conquistar, ante a inexistência de certeza de que venceria a prova e a temporada, mas valor financeiro que, dentro dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, encontrem correspondência com o dano causado pela direção da maior categoria de automobilismo do mundo. Se hipoteticamente o piloto ingressasse com a ação no Brasil, contaria com jurisprudências como as seguintes:            

Na perda de uma chance, indeniza-se a oportunidade perdida e não o prejuízo final, razão pela qual a indenização deve ser fixada seguindo os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, com equivalência entre o dano sofrido e as consequências advindas do ato lesivo.”  (TJDFT, Acórdão 1413492, 07309378420178070001, Relator: FÁTIMA RAFAEL, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 31/3/2022, publicado no PJe: 13/4/2022.

Note que não se trata de lucro cessante (já que não se pode cogitar de indenizar o valor integral decorrente do dano) ou ainda de mero dano moral (que pode ser pedido de forma autônoma pela frustação de ter perdido o título por uma fraude não revelada), mas uma indenização correspondente à relevante chance tolhida do piloto em se sagrar campeão mundial de pilotos de F1 daquela temporada.

O mais curioso desta discussão, é que Felipe Massa se beneficiaria de duas coincidências curiosas para que não deixe de exercer sua pretensão em juízo contra a Federação Internacional de Automobilismo, todos relacionados ao fator “França”.

Em primeiro lugar, pelo fato de a Teoria da Perda de Uma Chance ter sido “desenvolvida na França (la perte d'une chance)”, com “aplicação quando um evento danoso acarreta para alguém a frustração da chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda.”9

E quis o destino que a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) tenha sua sede na Praça da Concórdia, em Paris, a revelar que sendo a Teoria da Perda de Uma Chance uma construção doutrinária e jurisprudencial criada e consolidada nas terras napoleônicas, aumenta-se consideravelmente as chances de êxito do piloto brasileiro caso avance em seu pleito na jurisdição francesa, ante a improbabilidade de que a Teoria seja refutada por seus próprios criadores.

Então, do ponto de vista jurídico, e com os perdões aos relevantes juristas que não reconhecem a aplicação da Teoria da Perda de uma Chance, caso não consiga anular a prova de Singapura (e a respectiva pontuação atribuída aos pilotos), o caso do nosso “quase” campeão Felipe Massa (título que não vem desde 1991, dos memoráveis idos da lenda Ayrton Senna), passará,  no campo indenizatório, pela aplicação da Teoria.

A ação ideal a ser manejada seria uma Ação Anulatória da prova de Singapura e da pontuação obtida pelos pilotos, com pedido alternativo de aplicação da Teoria da Perda de uma Chance para as necessárias reparações indenizatórias decorrentes da chance retirada do piloto mediante uma fraude que, agora se sabe, já era de conhecimento da FIA. Felipe, não perca mais esta chance.

Gabriel Massote Pereira
Advogado. Mestrando em Direito Médico pela Unisa. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra. Docente em Pós-Graduação de Direito Médico e Saúde no IGD, PUC-PR, EBRADI e Damásio. Autor de obras jurídicas. Diretor-Adjunto do Grupo de Estudos Miguel Kfouri Neto.

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