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A nova lei 14.545/22: Visão crítica sobre a polêmica em torno do denominado “rol da ANS”

Esse entendimento comunga com os valores do Estado Democrático de Direito, em especial o princípio da segurança jurídica e previsibilidade das relações mercantis.

30/3/2023

O presente artigo tem por objetivo pontuar algumas considerações sobre a lei 14.545, de 2022, que alterou os critérios para o chamado “Rol da ANS”. Afinal, o que se alterou e o que permanece o mesmo diante da promulgação da novel legislação?

A citada lei 14.545/22, que alterou a lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), foi aprovada, a “toque de caixa”, no Congresso Nacional e sancionada, também em tempo recorde, pelo Poder Executivo Nacional, tendo sido publicada em 22 de setembro de 2022.

Entre os seus motivos, estaria o recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), em junho de 2022, que decidiu, por maioria de votos, interpretando a lei 9.656, que o rol de procedimentos em saúde publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar seria, sim, taxativo. Tratava-se, portanto, de listagem mínima de procedimentos de deveriam, necessariamente, ser cobertos por todos os Planos de Saúde ofertados no mercado Nacional.

Isto significava que somente estes procedimentos poderiam ser cobertos? Em absoluto. Isto somente determinava que, para que o produto de seguro fosse validamente ofertado no nosso mercado, estes procedimentos e serviços médicos deveriam ser, obrigatoriamente, garantidos. Por outro lado, não era vetado a realização de um Plano de Saúde, digamos, mais completo e que incluísse outros serviços, hospitais, profissionais e etc.

Nesse diapasão, se de um lado era garantido a todo e qualquer consumidor que todas as doenças básicas tivessem obrigatoriamente o seu tratamento coberto, assegurava-se, também, ao mercado segurador que somente aqueles procedimentos determinados pela Agência Reguladora seriam cobertos, definindo-se, assim, uma estimativa atuarial calculável para que o seguro fosse factível.

Esse entendimento jurídico, que já era a muito defendido pela doutrina e por decisões esparsas do Poder Judiciário, foi pacificado pela Segunda Seção do STJ, no julgamento conjunto dos EREsps 1.886.929 e 1.889.704, fixando a seguinte tese de direito: “o Rol de Procedimentos e Eventos em Sau'de Suplementar e', em regra, taxativo” (grifou-se).

Em agosto de 2022, no entanto, como dito acima, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de lei 2.033, que em seguida foi aprovado também pelo Senado Federal, e caminhado para sansão Presidencial. Assim, modificando a lei 9.686/98, a lei 14.545/22 determinou que “O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde” (grifou-se).

Com essa modificação substancial da redação do § 12, do art. 10, o que restou, então, efetivamente alterado?

A nosso ver, mesmo que se entenda pela constitucionalidade da nova Lei, que hoje é questionada via ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADIn 7.265), a verdade é que a lei 14.545 só poderá reger as novas relações de seguro de saúde, não podendo modificar os contratos já existentes na data de sua promulgação.

A Lei posterior, portanto, não pode ter o cunho de alterar – substancialmente neste caso – o contrato anterior, firmado entre as partes na vigência da Lei anterior, sob pena de grave violação à segurança jurídica.

Nessa linha, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto1 dissertam que se deve, sempre, “salvaguardar um dos valores mais caros ao Direito: a segurança jurídica. Afinal, se as normas pudessem incidir livremente sobre o passado, haveria incerteza e instabilidade social, que prejudicariam a capacidade das pessoas de planejarem e organizarem as suas vidas e atividades de acordo com o direito em vigor. Esta previsibilidade, tutelada pela irretroatividade normativa, é essencial à fruição da liberdade e pode ser associada à ideia de Estado de Direito e até mesmo ao princípio da dignidade da pessoa humana” (grifou-se).

Ora, por mais que se busque – como alguns alegam – a justiça no caso concreto, para que seja determinada a cobertura desse ou daquele procedimento a um paciente que o necessita, alterações legislativas supervenientes não podem, como é elementar, intervir e moldar relações privadas pretéritas entre particulares.

Não se aplica lei nova a contrato velho (princípio do ato jurídico perfeito/tempus regit actumart. 5º, XXXVI, da CF/88). Não se altera a economia de um contrato ex post facto (princípio da irretroatividade da lei ou da intepretação da lei).

Sobre o tema, o Ministro Gilmar Mendes2 esclarece que “É possível que a aplicação da lei no tempo continue a ser um dos temas mais controvertidos do Direito hodierno. Não raro, a aplicação das novas leis às relações já estabelecidas suscita infindáveis polêmicas. De um lado, a ideia central de segurança jurídica, uma das expressões máximas do Estado de Direito; de outro, a possibilidade e a necessidade de mudança. Constitui grande desafio tentar conciliar essas duas pretensões, em aparente antagonismo. A discussão sobre direito intertemporal assume delicadeza ímpar, tendo em vista a disposição constante no art. 5º, XXXVI, da Constituição, que reproduz norma tradicional do Direito brasileiro. Desde 1934, e com exceção da Carta de 1937, todos os textos constitucionais brasileiros tem consagrado cláusula semelhante. O Direito, por natureza, deve existir para disciplinar o futuro, jamais o passado, não sendo razoável entender que normas construídas a posteriori possam dar definições e consequências novas a eventos já ocorridos no mundo fenomênico.” (grifou-se)

E exatamente nesse sentido é a jurisprudência pacífica do STJ também em relação à lei 9.656/98, na qualidade de Corte de interpretação das normas infraconstitucionais, ao defender que a lei nova não se aplica a contratos firmados anteriormente à sua promulgação. Neste sentido, ementa recente de julgado exemplificativo do eminente Ministro Luis Felipe Salomão:

“AGRAVO INTERNO. PLANO DE SAÚDE, DIREITO ADQUIRIDO E ATO JURÍDICO PERFEITO. CONCEITOS DE DIREITO ADQUIRIDO, ATO JURÍDICO PERFEITO E DE COISA JULGADA. FIXAÇÃO PELA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. PRECEDENTES DO STF E DA CORTE ESPECIAL. APLICAÇÃO DAS DISPOSIÇÕES DA LEI 9.656/98 A CONTRATOS FIRMADOS ANTES DO SEU ADVENTONÃO PODEM SER APLICADAS ÀS AVENÇAS ANTERIORES, CONFORME PRECEDENTE VINCULANTE DO STF.”

(AgInt no REsp 1.978.734/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 26/4/22, DJe de 29/4/22, grifou-se.)

Conclui-se, com base nas premissas expostas acima, que a lei 14.545 de 2022, somente poderá regular os contratos posteriores à sua entrada em vigor, ficando os demais contratos pretéritos regidos pela Lei da época (lei 9.686/98), a qual, conforme acertadamente interpretado pelo Superior Tribunal de Justiça, determinava o caráter taxativo do rol de procedimentos da ANS.

Esse entendimento comunga com os valores do Estado Democrático de Direito, em especial o princípio da segurança jurídica e previsibilidade das relações mercantis. E somente com base na estabilidade poderemos criar e garantir o nosso tão almejado País social e economicamente desenvolvido, fundado em garantias constitucionais e assegurando-se a todos os cidadãos a estabilidade das decisões estatais.

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1 SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. p. 489.

2 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 365

Paula Menna Barreto Marques
Doutoranda em Direito pelo IDP. Mestre em Direito Processual pela UERJ. Stage Internacional - Ecole de Formation Professionnelle des Barreaux de la Cour D'Appel de Paris (EFB). Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela PUC-Rio. Sócia do Basilio Advogados.

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