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Recuperação de empresas. A dura realidade

O tema recuperação de empresas, atualmente aguardando aprovação no Senado Federal, após tramitação pela Câmara Federal do Projeto de Lei n. 4.376/93, tem como escopo principal, divulgado à saciedade, além de alterar a vetusta legislação em vigor, isto é, o Dec. Lei 7.661, de 21 de junho de 1945, com o objetivo primordial focado na preservação da empresa em estado de crise, daí a sua importância para o nosso país, quer sob o ponto de vista econômico, mas principalmente do social, com a preservação de empregos, geração de impostos e principalmente do desaparecimento de uma empresa, que sem dúvida representou o trabalho e o esforço de um universo de pessoas ao longo do tempo, o que não deveria ser desperdiçado.

3/3/2004

Recuperação de empresas. A dura realidade.

 

Luiz Augusto de Souza Queiroz Ferraz*

 

O tema recuperação de empresas, atualmente aguardando aprovação no Senado Federal, após tramitação pela Câmara Federal do Projeto de Lei n. 4.376/93, tem como escopo principal, divulgado à saciedade, além de alterar a vetusta legislação em vigor, isto é, o  Dec. Lei  7.661, de 21 de junho de 1945, com o objetivo primordial focado na preservação da empresa em estado de crise, daí a sua importância para o nosso país, quer sob o ponto de vista econômico, mas principalmente do social, com a preservação de empregos, geração de impostos e principalmente do desaparecimento de uma empresa, que sem dúvida representou o trabalho e o esforço de um universo de pessoas ao longo do tempo, o que não deveria ser desperdiçado.

 

Isto é o que vem sendo propalado por todo o país, em todos os foros, salvo algumas observações em contrário, quase sempre daqueles que como o subscritor destas considerações, advogado já curtido pelos longos anos de profissão, que teve a honra de representar empresas de renome nacional e internacional, em processos de concordata ou de falência, estão absolutamente apreensivos e desiludidos, com aquilo que se convencionou  nacionalmente denominar-se recuperação de empresas em estado de crise, que traria a solução ideal para enfrentar estas situações com êxito.

 

Para tanto está previsto que as empresas, em rápidas pinceladas, deveriam ao requererem em Juízo a sua recuperação judicial, apresentar um plano de recuperação, suficientemente abrangente para diagnosticar  a situação econômico financeira que a impediria cumprir nos prazos pactuados, as obrigações com seus credores de toda ordem, ao mesmo tempo demonstrando a própria viabilidade do seu negócio em si mesmo, e ainda, submetendo uma proposta de pagamento de suas dívidas aos credores, segundo a capacidade da empresa, demonstrada pelo referido plano de recuperação, no prazo fixado como correto, o que de resto estaria sujeito a aprovação dos credores e homologação judicial.

 

Prevê ainda a novel legislação projetada, que os credores terão uma participação ativa no desenrolar do processo judicial, através de um Comite de Credores, formado por representantes, tanto dos credores quirografários, quanto dos privilegiados e dos trabalhistas, com a prerrogativa de não só acompanharem e manifestarem-se no processo, mas e principalmente, de aprovarem o plano de recuperação, obedecendo a qualidade de cada classe de credores, mas privilegiando corretamente os trabalhistas e o fisco, sujeitando-se daí por diante ao que fosse definido no plano de recuperação.

 

Além disto, como inovação sem dúvida importante, estão previstas várias e variadas formas para viabilizar a recuperação, o que sem excluir nenhuma das mencionadas especificamente, como por exemplo, emissão de debêntures representativas dos créditos, transformação de créditos em capital, substituição total ou parcial de administradores, inovação nos contratos coletivos de trabalho, cisão, incorporação, mas deixando claro que a empresa e os credores, poderão ainda criar alternativas não previstas especificamente, mas que também alcancem a reorganização da empresa, preservando sempre a manutenção da sua atividade.

 

Como se vê, alterações radicais na filosofia que hoje norteia a concordata, dentre as quais se destaca, o prazo para seu cumprimento, no máximo, como se sabe em dois anos, e tudo isto abrangendo apenas os créditos quirografários. Sem dúvida um avanço meritório.

 

Comparando-se, ainda que a “vol d'oiseau” as duas legislações a conclui-se que as inovações mais benéficas do Projeto de Lei n. 4.376/93, que se apresenta como uma realização daqueles que sempre imaginaram que a recuperação completa só seria possível, sujeitando-se todos os credores, indistintamente dos seus privilégios, ao abrigo da recuperação judicial, com uma exceção, as dos credores trabalhistas, e no bojo da recuperação, os pagamentos previstos no plano de recuperação, far-se-iam de acordo com os privilégios de cada credor, “de per si”, adotando-se o critério de proporcionalidade, entre os credores de cada categoria, quando o rateio previsto, não fosse suficiente para contemplar, ao mesmo tempo, todos os credores da mesma classe.

 

Entretanto com tristeza, desânimo e mesmo de jurídica revolta, ao examinar-se o Projeto, vê-se que a situação é outra, completamente diferente, valendo o adágio: “ Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”.

 

Estas considerações, depois de tudo o que se tem lido e escrito à respeito do tema, pode parecer ousada e sem fundamento, mas talvez pela sua própria rudesa, possa servir para um debate, mais esclarecido e sobretudo benéfico para as empresas em estado de crise, para os próprios credores, para os empregados, para o fisco e sobretudo para a sociedade como um todo.

 

Isto tudo porque os mais fortes, representados por aqueles capazes  de influenciarem as votações no próprio Congresso, conseguiram excluir da sonhada recuperação judicial, por assim dizer, quase todos os credores privilegiados, o próprio o fisco, e também de cambulhada os credores trabalhistas, como a seguir se demonstrará, através do exame, específico e cansativo, de alguns dos diversos dispositivos legais, que criaram sortilégios de toda ordem para determinada classe de credores privilegiados, sobrando como hoje, aos credores quirografários de um modo geral, suportarem quase que sozinhos, a sonhada recuperação das empresas em estado de crise,  pois estes sim estarão subordinados ao plano de recuperação.

 

Aqueles outros, mais iguais que outros, já por assim dizer, saltaram do barco, pagos e satisfeitos os seus créditos, como se disse, providos de sortilégio, mas sem qualquer responsabilidade ou obrigação quanto a recuperação das empresas.

 

Senão vejamos:

 

“Art. 28 – Pode,  ainda, ser objeto de pedido de restituição a importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei  nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que não tenha sido alterada a data de vencimento prevista no momento da contratação.”

 

O presente artigo simplesmente exclui do processo de recuperação todos os créditos conhecidos como provenientes de “ACC”, ou sejam, todo o numerário adiantado pelos bancos, visando uma exportação futura, serão objeto de pedido de restituição, do valor contratado. E todos aqueles que já tiveram a oportunidade de distribuir uma Concordata, sabem o que isto pode representar, sempre quantias expressivas, exigíveis desde logo, através do procedimento processual próprio, não se sujeitando assim ao mencionado plano de recuperação, que deveria prever isto sim, numerário suficiente para o cumprimento destes contratos, na forma do plano de recuperação.

 

Este benefício bancário, é um verdadeiro paradoxo na possibilidade da recuperação da empresa, e pode-se afirmar, por óbvio que atropela a primazia do pagamento aos credores trabalhistas e do próprio fisco. Porque o privilégio? É inaceitável.

 

“Art. 40 – Parágrafo único. Não integram as classes de credores, na recuperação judicial:

a – aqueles cujos créditos são referidos no art. 52, VI, in fine; 

b – aqueles que tiveram seus créditos excetuados na forma do art. 48. § 3º.”

 

Prevê expressamente a legislação projetada que também não se sujeitam à recuperação judicial, os créditos abrangidos pela letra “a” supra, ou sejam aqueles decorrentes de “direitos creditórios, títulos de crédito, valores mobiliários e aplicações financeiras” garantidos por penhor, o que afasta da recuperação justamente aqueles  credores, que detém em seu poder valores ou créditos efetivos e que, se aplicados corretamente na recuperação, seriam muito benéficos para a própria recuperação da empresa. É lógico!

 

Da mesma forma, e sempre fechando o garrote em torno das empresas em estado de crise, embora enganadoramente no caput do art. 48, esteja previsto, que estariam sujeitos a recuperação judicial, todos os credores anteriores ao pedido da recuperação, mas infelizmente § 3º, do art. 48, articula a seguinte exceção-garrote: “Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva.”

 

Mas o que isto significa ? Pura e simplesmente a exclusão de mais credores, que assim também se afastam legalmente, do longo processo da recuperação, mas que pelos próprios privilégios que lhes foram concedidos, trarão como conseqüência lógica percebida pelo simples bom senso, a irrecuperabilidade da empresa. Será que esta é alma da nova legislação, ainda em processo de aprovação? E mais uma vez, qual a situação dos credores trabalhistas e do fisco? Simplesmente também tiveram seus direitos como sempre atropelados. Então o que se pode esperar da efetiva recuperação da empresa? Quem sabe a boa vontade destes credores? Mas a prática ensina que isto não existe!

 

Note-se que contraditoriamente, da definição legal da recuperação judicial, estampada no art. 45, pode-se ingenuamente concluir que: “A recuperação judicial é a ação judicial destinada a sanear a situação de crise econômico-financeira do devedor, salvaguardando a manutenção da fonte produtora, do emprego de seus trabalhadores e dos interesses dos credores, e viabilizando, dessa forma, a realização da função social de empresa”, mas o que não é correto.

 

Pode-se afirmar que a recuperação judicial se aprovada a legislação projetada sem profundas e radicais modificações, ante a exclusão maciça de credores privilegiados, será custeada, como hoje ocorre, pelos credores quirografários, pelos créditos trabalhistas, que não são passíveis de excussão imediata, e pelo fisco que serão simplesmente abandonados à própria sorte, pelos credores dotados de sortilégios legais, isto sem deixar de ressaltar que falar-se em recuperação de empresa nestas circunstâncias, é para se dizer o menos, completamente inapropriado.

 

Daí porque a definição do artigo 45, é mera quimera ! Basta refletir-se um pouco, sobre as exclusões para avaliar, com honestidade de propósitos o que até agora já foi aprovado, sem nenhuma oposição correta e mais esclarecida, não atende sequer aos fins sociais que se alardeia defender.

 

Isto ainda não é tudo. Assim no intuito de apenas melhor situar o tema, não se pode deixar de mencionar o item, VIII, do art. 118, da lei projetada, neste tópico situada nos efeitos da decretação da falência, que tem a seguinte redação, onde mais uma vez, nota-se a influência dos poderosos no seu espírito e redação: “Caso haja acordo para compensação e liquidação de obrigações no âmbito do sistema financeiro nacional, nos termos da legislação vigente, a parte não falida poderá considerar o contrato vencido antecipadamente, devendo, para tanto, notificar o administrador judicial, hipótese em que o contrato será liquidado na forma estabelecida nos regulamentos, admitindo-se a compensação de eventual crédito que venha a ser apurado em favor do falido com créditos detidos pelo contratante”.

 

Mas de verdade o que isto significa: A simples leitura do projetado dispositivo legal, demonstra que o privilégio da compensação é mais uma alternativa, concedida ao sistema financeiro nacional, além das demais já apontadas, ao prever que “a compensação de eventual crédito que venha a ser apurado em favor do falido com créditos detidos pelo contratante”, instituiu verdadeira benesse em favor dos bancos, em detrimento, mais uma vez dos credores trabalhistas, tornando letra morta o previsto nos seus Arts. 10 e 11, I, além dos créditos fiscais pelo disposto no Art. 11, II, como de resto já apontado nestas considerações.

 

Observe-se e, aí está o sortilégio, que o referido inciso VIII, é conseqüência da medida provisória 2.192/70 de 24 08 01, que apesar de no seu art. 1º, mencionar que ela tinha como escopo apenas a redução do setor público estadual na atividade financeira bancária incentivada pela mencionada medida provisória, acrescentou no seu art. 30, como sempre coincidentemente, numa ultima previsão legal, verdadeiro enxerto, que nada tem a ver com o objetivo da mencionada medida provisória o seguinte: 

 

“É admitida a realização de acordo para a compensação e a liquidação de obrigações no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, nas hipóteses e segundo as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional”, e para não deixar qualquer dúvida quanto ao benefício espúrio, o seu § 1º já determinava e portanto, na regência da atual Lei de Falências, o seguinte:

 

 

“A realização da compensação e de liquidação nos termos e condições acordados, não será afetada pela decretação de insolvência civil, concordata, intervenção, falência ou liquidação extrajudicial da parte no acordo, não se aplicando o disposto na parte final do caput do art. 43 e inciso I, do art. 52, ambos do Decreto Lei n. 7661, de 21 de junho de 1945”, completando o escudo de proteção, pois bem sabiam os melhores informados, que para fechar o garrote, era necessário excluir-se a possibilidade de ação revocatória, pondo a nu, como mais uma vez, se contraria a Constituição, que ingenuamente prevê que todos são iguais perante a Lei, mas ...nem sempre !

 

Para finalizar este perfunctório exame, de modo a escoimar todas e quaisquer dúvidas quanto a veracidade destas considerações, o item VI, do art. 52 do Projeto, prevê a suspensão de todas as ações contra o devedor em recuperação judicial, exceto as relativas a créditos decorrentes de financiamento de valores a receber, garantidos por penhor sobre: direitos creditórios, títulos de crédito, valores mobiliários e aplicações financeiras, sendo correta a indagação, que credores “sobraram” para participarem de uma “soit disant” recuperação judicial? Como sempre os credores quirografários, os trabalhistas e fiscais (privilegiados só no nome), pois são titulares de créditos não sujeitos a excussão imediata.

 

Esta é a dura realidade. Sempre conhecida daqueles que sabem ver nas entrelinhas, como por exemplo, Adam Smith quando cunhou a expresão "invisible hand", ou seja  “a mão invisível”, entendida como :”that mysterious force that leads merchants in  free market to promote collective interests while intending only to satisfy self-interest”, mencionada em 1776, em sua conhecida obra: “The Wealth of Nations”, e como se viu, em vigor, vigoroso, até os nossos dias.

 

Pode-se afirmar que se esta situação perdurar como está, sem que os nossos legisladores se apercebam destes vários sortilégios, a recuperação judicial, mesmo com as sensíveis melhorias previstas no Projeto, quando comparado com a legislação vigente, na realidade se fará, como hoje se faz nas concordatas, isto é, serão duas negociações ao mesmo tempo, uma para a aprovação do plano de recuperação, com a anuência dos credores quirografários de uma forma geral e outra, mais dura e difícil, com todos os demais credores excluídos da recuperação, mas munidos da instrumentação legal para excutirem desde logo os seus créditos, sem a ela se sujeitarem, apesar do estado de crise da empresa.

 

Certamente, se tudo permanecer como está, é cristalino o prejuízo na recuperação judicial das empresas, aproveitando-se a oportunidade para mencionar que há também vários outros aspectos positivos ou negativos, que serão oportunamente abordados, sempre na expectativa das correções necessárias que reconduzam o Projeto de Lei ao seu objetivo inicial e atualmente perdido, a recuperação judicial das empresas em estado de crise.

 

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* Advogado do escritório Souza Queiroz Ferraz e Pícolo, Advogados Associados

 

 

 

 

 

 

 

 

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