Muito está sendo falado da decisão proferida pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou a suspensão, em todo o país, da tramitação das ações individuais ou coletivas que discutem a possibilidade de autorização para importação e cultivo de variedades de cannabis para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais.
Em uma leitura rápida, parecia que todos os processos que discutam o cultivo de cannabis deveriam ser suspensos, esta inclusive foi a primeira conclusão dos veículos de mídia.
Porém uma análise aprofundada da decisão revela que não seria esta a situação.
O Incidente de Assunção de Competência (IAC) é um instrumento criado para dar maior celeridade ao julgamento de processos no país. Ele é admissível quando o julgamento envolve relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos
O tema daquele IAC, no Recurso Especial 2.024.250 – PR foi delimitado nos seguintes termos: "Definir a possibilidade de concessão de autorização sanitária para importação e cultivo de variedades de cannabis que, embora produzam tetrahidrocanabinol (THC) em baixas concentrações, geram altos índices de canabidiol (CBD) ou de outros canabinoides, e podem ser utilizadas para a produção de medicamentos e demais subprodutos para usos exclusivamente medicinais, farmacêuticos ou industriais, à luz da lei 11.343/06, da Convenção Única sobre Entorpecentes (decreto 54.216/64), da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (decreto 79.388/77) e da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (decreto 154/91)."
Naqueles autos em que foi admitido o IAC discute-se o reconhecimento de que o plantio de determinada variedade de Cannabis nomeada de Hemp (cânhamo industrial), por produzir plantas com baixo teor de THC, é incapaz de ser utilizada na fabricação de drogas e não se enquadra na vedação legal estampada nos dispositivos acima destacados, revelando, portanto, escopo limitado à análise de matéria infraconstitucional, controvérsia cuja apreciação incumbe a esta Corte, nos limites da competência prevista no art. 105, III, da Constituição da República.
O fato do tema delimitado mencionar a possibilidade de concessão de Autorização Sanitária para cultivo e produção do cânhamo industrial revela que o debate está inserida no contexto da RDC 327/19 da Anvisa e não nas questões do auto cultivo.
Segundo o art. 3º, I da RDC 327/19 da Anvisa, a Autorização Sanitária (AS) trata-se de ato autorizador para o exercício das atividades definidas nesta Resolução, emitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e publicado no Diário Oficial da União (DOU), mediante deferimento de solicitação da empresa que pretende fabricar, importar e comercializar Produto de Cannabis para fins medicinais.
Ora, a Autorização Sanitária tem a finalidade de autorizar que pessoas jurídicas fabriquem e importem produtos de Cannabis para fins comerciais, que serão dispensados em farmácias pelo país.
Assim, a Autorização Sanitária está fora do contexto do debate proposto nas ações criminais de auto cultivo pois trata-se de instrumento jurídico voltado às empresas e à atividade fabril e comercial.
Além disso, conforme a delimitação do tema do IAC, discute-se a possibilidade de concessão de autorização sanitária para importação e cultivo de cannabis que produzam baixo teor de THC.
Esta é outra razão que comprova que o debate não envolve os habeas corpus de cultivo, que em sua maioria envolvem a necessidade de o paciente utilizar produtos com concentração maior de THC, conforme prescrição.
É relevante a colocação “baixo teor de THC” pois a RDC 327/19 autoriza apenas produtos de Cannabis contendo predominantemente, canabidiol (CBD) e não mais que 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC).
Necessário reiterar que a limitação de 0,2% de THC está voltada apenas aos produtos que serão vendidos nas farmácias do país. Para a importação por pessoa física de produtos à base de cannabis, por exemplo, a RDC 660/22 da Anvisa não impõe referida limitação do conteúdo de THC.
Ou seja, conclui-se que apenas para os produtos produzidos em solo brasileiro e ofertados em farmácias via RDC 327/19 é que referida limitação de 0,2% de THC. Outro ponto que revela a limitação do debate e a não abrangência do auto cultivo.
Desta forma, uma análise mais aprofundada da questão revela que caso procedente o IAC, este não resolveria os casos de Habeas Corpus de Cultivo pessoal e medicinal pois: (i) os paciente não são pessoas jurídicas que buscam Autorização Sanitária para produzir cannabis para fins comerciais; (ii) em sua maioria eles necessitam de produtos com alta concentração de THC (permitidos pela RDC 660/2020), tema não abrangido pelo IAC; e (iii) a decisão do IAC é clara ao determinar que devem ser suspensos apenas os feitos que versem exclusivamente sobre a possibilidade de concessão de autorização sanitária para importação e cultivo de cannabis que produzam baixo teor de THC.
Há ainda que destacar que o Habeas Corpus é um processo que tem a urgência em sua natureza e sequer pode ser paralisado por Incidentes como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, conforme o art. 980 do CPC.
Art. 980. O incidente será julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
Assim, como resultado prático de dito IAC, conclui-se que apenas deverão ser suspensas as ações cíveis que debatem o cultivo de cannabis para fins comerciais via Autorização Sanitária. E não as ações criminais (mormente Habeas Corpus) que debatem o autocultivo pessoal para fins medicinais, caso dos autos.
Ainda não se sabe como procederão os Tribunais e Tribunais Superiores, o debate ainda é muito novo.