O debate sobre o monitoramento por meio de câmeras já se tornou usual na sociedade e no meio acadêmico, inclusive, tendo trazido possíveis conflitos ao discutido no Judiciário1. Embora a maior parte da população seja a favor das filmagens2, quando se trata de menores de idade, o assunto ganha contornos que provocam divergências doutrinárias entre pais e responsáveis.
Um dos pontos mais suscetíveis de controvérsias é o monitoramento de crianças em escolas. Enquanto para alguns, a medida garante a segurança dos vulneráveis e ameniza preocupações dos pais; para outros configura invasão de privacidade e intimidação dos profissionais da educação.
No âmbito internacional, a National Education Union3, um dos maiores sindicatos de professores e profissionais de educação do Reino Unido, elaborou uma política voltada para regular o uso do sistema de vigilância por meio de câmeras denominado CCTV Systems (Closed Circuit Television) em escolas. O objetivo é estabelecer diretrizes de forma que as escolas consigam implementar esse sistema para trazer segurança, mas, ao mesmo tempo, garantindo que esse uso seja responsável e seguro, em especial no que tange à proteção de dados pessoais.
A vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)4 no Brasil aumenta ainda mais as discordâncias, motivo pelo qual tem sido necessário ponderar sobre a aplicação conjunta das normas que abrangem a temática.
No ano passado, foi noticiada a utilização de câmeras escondidas para monitorar alunos em locais proibidos5. No caso em questão, a escola posicionou câmeras entre os azulejos dos banheiros femininos e masculinos, contrariando a Constituição Federal de 1988, que garante a inviolabilidade da intimidade no art. 5º, inciso X e o art. 227, que garante a proteção de crianças e adolescentes pela família, sociedade e Estado. Tal conduta fere tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”), pelo constrangimento causado aos alunos, quanto a LGPD, pela falta de transparência e do cumprimento das exigências da legislação para proteção dos dados pessoais de crianças.
Inicialmente, o ECA6 atribui às crianças e aos adolescentes o direito à liberdade e à dignidade, deixando evidente que, apesar do poder pátrio, a garantia dos direitos individuais desse grupo não depende apenas da vontade dos pais, à luz dos arts. 3º e 4º. Exemplo disso é a necessária consideração do princípio do melhor interesse da criança7 e/ou adolescente, implicitamente previsto na normativa e na Constituição Federal8, ligado à doutrina da proteção integral.
Considerando o cenário de insegurança e violência no país, é compreensível a angústia dos responsáveis. Porém, a vigilância em excesso pode interferir no desenvolvimento social e acadêmico dos menores.
Os que defendem a utilização de câmeras em escolas sustentam que esse uso visa prevenir condutas violentas, ajudam educadores a identificar e coibir práticas de bullying, auxiliam no monitoramento de áreas das escolas como corredores, espaços de recreação e portarias, inclusive, ajudando a prevenir a entrada ou permanência de pessoas não autorizadas. Apesar de existirem vantagens na adoção de câmeras no ambiente escolar, é preciso ter muita cautela e ponderar os riscos envolvidos na realização dessa vigilância e monitoramento.
Além do princípio do melhor interesse da criança, o contraponto dos prós e contras precisa atentar para o previsto no art. 232 do ECA, pois a norma determina que constitui crime submeter qualquer criança ou adolescente à vexame. Desse modo, ao instalar monitoramento por câmeras, mesmo com intenções legítimas, é necessário ter em mente que captar imagens capazes de constranger ou expor um menor está em desconformidade com o texto legal.
Por exemplo, filmar uma criança praticante de bullying, é uma atitude que inicialmente poderia ser vista como aceitável. No entanto, existem riscos também à violação da privacidade da criança que praticou a conduta reprovável. Além disso, nessa situação, na qual a escola poderia responder judicialmente, o teor da filmagem possui potencial para impactar a vida da criança ao longo de seu crescimento, especialmente considerando a cultura de cancelamento presente na sociedade atual.
Como enfatizado, é ainda de extrema importância considerar as questões ligadas à privacidade e proteção de dados pessoais. O monitoramento implementado nas escolas deve observar os princípios e as regras previstos na LGPD, especialmente tendo em vista o potencial de uso abusivo de dados de indivíduos menores de idade, invadindo a privacidade dos alunos. Exemplificando, tal abuso pode se dar pela coleta excessiva de dados pessoais e/ou pela falta de transparência sobre diferentes operações de tratamento. Ademais, a coleta de dados de crianças e adolescentes, por regra geral, só pode ser realizada com o consentimento específico de pelo menos um de seus responsáveis legais e em destaque9.
Referente ao tema do tratamento de dados pessoais, é certo que a escola, ao coletar e tratar essas informações dos alunos, se torna controladora dos dados pessoais, e, consequentemente, a responsável pelas informações que coleta. Dessa forma, responde por eventuais danos causados aos titulares. Isso significa que a escola deve cumprir, sobretudo, os princípios estabelecidos na LGPD, incluindo - mas não se limitando - ao princípio da necessidade, adequação e finalidade, que aplicado às instituições de ensino determinará que não estão autorizadas a coletar dados pessoais e tomar medidas mais invasivas do que o necessário para a finalidade de tratamento.
Outro ponto relevante para as escolas é o estabelecimento de estruturas de governança e de segurança de informação relacionadas ao acesso aos dados pessoais de seus alunos. Quem terá acesso às imagens capturadas pelas câmeras? De que modo o acesso será feito? A preocupação com eventuais vazamentos deve levar os controladores de dados pessoais a repensar suas estratégias de tratamento e métodos de mitigação dos riscos de irregularidades.
Nesse sentido, as escolas devem ainda adotar medidas como a nomeação de um encarregado (ou Data Protection Officer) para garantir a conformidade com a LGPD. Além disso, adotar políticas para regular e dar transparência a esse tratamento de dados pessoais, como a Política de Privacidade, Política de Segurança da Informação, garantida a acessibilidade da transmissão da informação e possíveis novas orientações sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes pela ANPD. Em acréscimo, o Regulamento Interno na Instituição é uma medida igualmente essencial. Outro elemento importante é instituir canal de comunicação efetivo para o exercício de direitos pelos titulares, treinando colaboradores para que desempenhem suas atividades com base nessa nova cultura de privacidade e proteção de dados que está sendo construída.
Portanto, a tomada de decisão sobre a adoção ou não de câmeras no ambiente escolar envolve diversos aspectos. Assim, exige-se ser cuidadosamente analisada e pensada de modo a estar em conformidade com as normativas acima referidas e, ao mesmo tempo, atingir a finalidade de proteger crianças e adolescentes, sob pena de ser caracterizada como vigilância excessiva.
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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 878.911 Rio de Janeiro. Recorrente: Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Recorrido: Prefeito Municipal do Riode Janeiro. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgado em 19 de setembro de 2016. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=310486098&ext=.pdf Acesso em: 09 jan. 2023.
2 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA (CNI). Retratos da Sociedade Brasileira - Segurança Pública. Indicadores CNI. ano 6. nº 38,2017. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2017/03/retratosdasociedadebrasileira.pdf. Acesso em: 16 ago 2022.
3 O referido documento detalha os parâmetros que devem ser adotados pelas escolas para utilização do sistema CCTV, e reconhece que as imagens capturadas são dados pessoais e, por essa razão, o tratamento desses dados deve estar em conformidade com o General Data Protection Regulation (GDPR). Disponível em: NATIONAL EDUCATION UNION. CCTV Model Policy for schools. 28 de setembro de 2021. Disponível em: https://neu.org.uk/media/17481/view#:~:text=When%20CCTV%20recordings%20are%20being,need%2Dto%2Dknow%20basis.&text=Individuals%20have%20the%20right%20to,to%20the%20Data%20Protection%20Officer. Acesso em: 09 jan. 2023.
4 BRASIL. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14020.htm. Acesso em: 16 ago 2022.
5 Alunos acham câmeras instaladas em banheiros de escola estadual na Mooca, Zona Leste de SP. G1, junho de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/27/alunos-acham-cameras-instaladas-em-banheiros-de-escola-estadual-na-mooca-zona-leste-de-sp.ghtml Acesso em 16 ago 2022.
6 BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 16 ago. 2022.
7 É importante registrar que o melhor interesse da criança também está determinado na Convenção Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças, e em outras normativas internacionais. O Código Civil também abrange o princípio nos arts. 1.583 e 1.584, refletindo a própria disposição do art. 227 da Constituição Federal que dispõe sobre os deveres com o menor e adolescente.
8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 ago 2022. Acesso em: 16 ago 2022.
9 Sobre este assunto, a IX Jornada de Direito Digital e Novos Direitos registrou orientações nos enunciados 682, 684 e 692 Além disso, há a discussão presente no Estudo Técnico da ANPD 3615243. Ambas as orientações apresentam panoramas, ainda que o tema persista divergente. BRASIL. Enunciados da IX Jornada de Direito Civil: comemoração dos 20 anos da Lei n. 10.406/2022 e da instituição da Jornada de Direito Civil: Enunciados aprovados (Direito Digital e Novos Direitos). Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários. https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/. Disponível em: jornadas-cej/enunciados-aprovados-2022-vf.pdf. Acesso em: 29 dez. 2022. AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Estudo Preliminar: Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/estudo-preliminar-tratamento-de-dados-crianca-e-adolescente.pdf. Acesso em: 2 dez. 2022.