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Caso das Lojas Americanas: incentivos desalinhados?

Um incentivo para que acionistas fiscalizem o trabalho dos gestores pode ser um caminho para reduzir o risco de casos semelhantes no futuro.

20/1/2023

O mercado ficou atordoado com o caso das Lojas Americanas. De fato, é assustador uma companhia aberta, com ações negociadas em bolsa, ter um rombo superior a 20 bilhões que, do dia para a noite, corrói valor dos acionistas e impacta os demais stakeholders. A grita geral, diante da situação, é por mais regulação ou criticar o risco-sacado. Mas isso resolve?

Quanto ao risco-sacado, trata-se de prática rotineira que permite a antecipação dos recebíveis. Não é, portanto, algo intrinsecamente ruim. No caso das Americanas, parece que as dívidas com os bancos não estariam informadas corretamente ao mercado, criando a percepção de que a empresa estava saudável. A dívida financeira e os juros não foram registrados corretamente, impactando resultado, EBITDA, dívida financeira e nível de alavancagem, bem como contas a pagar a fornecedor. O problema, portanto, não é a operação em si, mas a falta de transparência e governança corporativa.

Pois bem. Já houve outros casos semelhantes tanto no Brasil como no exterior. Por aqui, vimos o Banco Nacional que jogava todo o prejuízo em uma conta que não aparecia no balanço, escondendo um rombo monstruoso. Nos EUA, houve o escândalo da Enron inflando seu resultado ao jogar dívidas para as subsidiárias – o que, novamente, não aparecia nos balanços. Esse caso, inclusive, foi o propulsor do Sarbanes-Oxley (SOX) – editado em 2002 – que aumentou brutalmente o custo das empresas americanas de capital aberto. Houve, também, a crise do subprime de 2008, escondendo uma massiva inadimplência dos compradores de imóveis, que estava ocultada em hipotecas sucessivas, mesmo com o SOX em vigor. Em todos os casos, assim como nas Lojas Americanas, houve uma falha geral de falta de controles nas linhas de defesa da governança que não identificaram os problemas.

O regulador (SEC nos EUA e CVM no Brasil) não foi capaz de evitar esses casos. Da mesma forma, os gatekeepers (Comitês de Auditoria, Auditores independentes, Analistas de Ações, Advogados Externos, B3 e Agências de Rating) também não funcionaram a contento. Por isso, mais regulação não é a solução. Ela aumenta os custos de transação para as empresas que estão agindo corretamente e não apresenta resultados eficientes ao mercado, no sentido de tentar prevenir novos casos.

Uma das causas raiz para a questão está na remuneração dos executivos e o tempo que eles permanecem no cargo. Quanto menor o tempo, maior o incentivo econômico em deixar os problemas para a gestão futura. Faz todo o sentido que a alta direção de uma companhia premie regiamente os seus executivos (C-Level) por performance. Esse modelo, em tese, deveria gerar incentivo econômico para maximizar o resultado dos acionistas, desde que os targets de performance/KPIs estejam corretamente alinhados. Todavia, se o tempo na gestão se reduz, e o executivo está buscando oportunidades na dança das cadeiras do mercado, há um incentivo econômico para maximizar os próprios resultados, deixando o problema para a próxima gestão e os acionistas.

Há, portanto, um potencial desbalanceamento na relação Agente-Principal (Executivo e Acionista). Esse problema é incrementado pela falta de supervisão dos acionistas. No caso dos minoritários, pessoas físicas, os indivíduos compram ações das empresas como investimentos, mas não têm a menor noção dos seus direitos, nem sabem como exercê-los. Por sua vez, os fundos que investem em ações não costumam agir com vistas a fiscalizar ativamente a gestão das companhias em que investem e o comportamento dos controladores, que pode estar desalinhado dos demais acionistas.

Uma solução seria mais educação dos investidores com relação aos seus direitos e uma postura mais ativista dos fundos na defesa dos direitos dos seus cotistas. É necessário fiscalizar a ação dos administradores, controladores e demais gatekeepers, de modo a minimizar os riscos de uma atuação que privilegie os interesses pessoais em detrimento da empresa e dos acionistas (especialmente minoritários) e demais stakeholders. Até porque, buscar os interesses individuais é da essência de qualquer indivíduo. É a natureza humana. Por isso, dentre outras questões, há necessidade de uma governança corporativa firme e atuante. A solução para os problemas nunca estará em negar a natureza humana, mas em buscar formas de alinhar corretamente os incentivos.

A Lei 6.404/76, aliás, tem um incentivo para os minoritários exercerem uma fiscalização ativa. Ele está no artigo 246, que trata da ação a ser movida pelo minoritário, garantindo-lhe um prêmio de 25% do resultado, considerando os honorários de advogado. Todavia, nas ações contra os administradores (artigo 159), há incerteza quanto aos honorários e inexistência de prêmio específico para o autor. Talvez fosse o caso de se pensar em replicar o incentivo do artigo 246 para a hipótese do artigo 159, como forma de autorregulação do mercado.

Os críticos podem dizer que isso levaria a menos pessoas dispostas a exercer esses cargos. Bom, isso parece ser uma avaliação prematura, afinal de contas, os administradores têm a proteção da Business Judgment Rule (“BJR”), contando com proteções legais à tomada de risco quando agindo de boa-fé. Trocando em miúdos, se os gestores respeitarem os deveres fiduciários, eles não podem ser responsabilizados pessoalmente por decisões que se revelam equivocadas. Logo, se agirem com lisura e respeito à governança corporativa, eles não são impactados.

No Ofício-Circular da CVM n.º 1 de 2016, o regulador já tratava da questão e alertava para que a administração seguisse a orientação do item 38 da CPC 07. Confira-se o teor do documento:

“Tomou-se conhecimento de que algumas companhias no Brasil realizaram as denominadas operações de “forfait”, “confirming” ou “risco sacado”, ou ainda denominadas “securitização de contas a pagar”, por meio das quais a empresa compradora, denominada “empresa-âncora”, contrata um banco e monta com ele um esquema de antecipação de pagamento aos seus fornecedores cadastrados.

Formalmente, a companhia vendedora (fornecedor) emite uma fatura que contempla o prazo a ser financiado pelo banco, porém não reconhece em sua contabilidade a venda pelo valor presente. E com isso apresenta um EBITDA maior. A companhia compradora, por sua vez, não reconhece um passivo oneroso junto ao Banco, mas o passivo de funcionamento “fornecedores”; seu estoque fica inflado e a margem bruta com vendas distorcida. Com esse expediente, a companhia compradora consegue distorcer sua real situação financeira. Deixa de reconhecer despesas financeiras em resultado, pois além de não reconhecer o passivo oneroso “financiamento”, não ajusta a valor presente o passivo “fornecedores”, sem a devida segregação de juros embutido na operação a ser apropriado em resultado, nos termos do Pronunciamento Técnico CPC n. 12. Balanço Patrimonial - BP, Demonstração do Resultado do Exercício - DRE e Demonstração dos Fluxos de Caixa - DFC deixam de atender à condição de representação fidedigna.

Dependendo da transação efetuada, que pode incluir prazos mais longos que os usuais para aquisição de estoques, a companhia compradora pode ser incentivada a assim proceder porque conseguiria escapar a “covenants” contratuais (índice de cobertura de juros ou de endividamento oneroso, por exemplo). Pode ser comum em muitas transações, a utilização de linhas e limites de créditos com bancos das companhias compradoras (“empresas-âncora”) para suportar a referida operação, uma vez que o limite de crédito poderá ser pré-aprovado pelo banco para assim viabilizar a transação e, após o pagamento à vista ao fornecedor por parte do banco indicado pela companhia compradora, todo o relacionamento financeiro será entre companhia compradora e o banco.

(...) 

Os efeitos positivos da aplicação da Orientação CPC 07 - Evidenciação na Divulgação dos Relatórios Contábil-Financeiros de Propósito Geral, aprovada pela Deliberação CVM nº 727/14, ainda que incipientes, já puderam ser percebidos quando da elaboração das demonstrações contábeis do exercício social encerrado em 31.12.2014. Por certo, há ainda muito a avançar na sua aplicação e na consequente melhoria da qualidade e do volume das notas explicativas.

No entanto, um ponto identificado como ausente em grande parte daquelas demonstrações diz respeito à aplicação mandatória prevista no item 38 da referida orientação:

“38. A administração da entidade deve, na nota de declaração de conformidade, afirmar que todas as informações relevantes próprias das demonstrações contábeis, e somente elas, estão sendo evidenciadas, e que correspondem às utilizadas por ela na sua gestão.” (grifamos)

Assim, releva lembrar essa obrigatoriedade de a administração da companhia aberta subscrever declaração de conformidade, nos termos do item 38 da OCPC 07 acima reproduzido, declaração esta a ser submetida ao escrutínio dos Auditores Independentes.” 

As Americanas, ao que tudo indica, não seguiram as melhores práticas de governança corporativa, deixando de agir com a transparência devida. Os sistemas de monitoramento, pelo que foi noticiado até o momento, também falharam fragorosamente. Os órgãos de governança e os gatekeepers não funcionaram de forma adequada. Aliás, como forma de otimizar, o CPC devia exigir maior transparência com relação às operações de risco-sacado e orientar a contabilização adequada.

Um incentivo para que acionistas fiscalizem o trabalho dos gestores pode ser um caminho para reduzir o risco de casos semelhantes no futuro. A perspectiva de consequências é um desestímulo para agir sob o prisma dos interesses puramente individuais. Além disso, seria importante gerar mecanismos que permitam uma aproximação dos minoritários, de modo que eles possam licitamente se articular na defesa dos seus interesses e dos interesses das companhias. Aliás, vale sempre lembrar, poder de controle é poder de fato, não é poder jurídico. É fluido e vem carregado de inúmeros deveres fiduciários. Por fim, algum incentivo para a ação dos whistleblowers também poderia ser eficiente para que a CVM atuasse antes da catástrofe. Para agir, muitas vezes o xerife precisa ser provocado.

Leonardo Correa
Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, LL.M pela University of Pennsylvania

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