Muitas vezes relegada pelo empresário brasileiro em virtude da árdua rotina, obrigações tributárias, trabalhistas e da constante necessidade de aprimoramento e expansão dos negócios, a organização (ou reestruturação) societária é necessidade de primeira ordem para o salutar funcionamento da sociedade, sua continuidade e potencial sucesso. Costumeiramente, as soluções do Direito Societário são procuradas por empresários quando um conflito já é existente, efetivamente desperdiçando o potencial preventivo das boas práticas societárias enquanto há harmonia e interesse dos sócios de uma determinada sociedade.
O objetivo do presente texto é apresentar algumas das muitas estruturas, cláusulas e acordos possíveis, em especial, em atenção à realidade das sociedades médicas brasileiras. É comum que participantes de sociedades uniprofissionais (como contadores, advogados, engenheiros e médicos, por exemplo) não se reconheçam, a priori, como empresários, uma herança não só cultural, mas oriunda de uma má interpretação do parágrafo único do art. 966 do Código Civil que exclui do conceito de empresário “quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. Essa última ressalva, muitas vezes ignorada, causou reprováveis decisões tributárias que em muito prejudicaram a organização de clínicas e escritórios.
Como principais exemplos podem-se citar as regulações municipais de ISS e suas condicionantes à adoção das sociedades simples como tipo societário (art. 997 e ss. do Código Civil) para tributação sujeita à alíquota fixa por profissional em oposição à proporcionalidade do faturamento. A principal diferenciação entre as Sociedades Simples e aquelas adotadas pela esmagadora maioria dos empresários brasileiros, as Sociedades Limitadas, é, como já adianta o nome, a limitação da responsabilidade patrimonial (art. 1.023). Importante salientar que o adequado manejo da normatização municipal em atenção às recentes decisões dos tribunais superiores permitiria a transformação societária em tipo que garanta a responsabilidade limitada de seus sócios e a manutenção do significativo benefício tributário.
Em uma perspectiva prática, tal diferença significa uma insuperável afetação pessoal dos bens dos sócios em caso de dívidas da sociedade. Tal cenário em atividades como a médica, inerentemente dotada de riscos, tanto gerais como trabalhistas e tributários quanto específicos como a iatrogenia (“erro médico”) expõe excessivamente os bens acumulados durante toda uma vida.
Independentemente de regulação tributária ou tipo societário, contudo, as sociedades médicas podem se beneficiar de organização societária por meio de inclusão ou revisão de cláusulas no Contrato Social e pela elaboração de um Acordo de Sócios, um contrato privado e não registrado entre os sócios de uma determinada sociedade para definição de regras fundamentais para o bom funcionamento das atividades. Como alguns exemplos podemos citar a definição clara de remuneração e distribuição, os procedimentos para retirada ou exclusão de um dos sócios, a previsão de responsabilidade em caso de erro médico, as condições e restrições de venda ou cessão das quotas da sociedade, entre outros. Uma sociedade com regras bem definidas, deliberadas entre os sócios e reduzidas a termo em documento escrito mitiga consideravelmente os riscos de desavença entre seus sócios, contribuindo com a longevidade da organização. De todo modo, ainda que desavenças ocorram, tema fundamental de ambos os documentos é a definição de métodos de resolução de conflitos (sejam alternativos como negociação, mediação, conciliação e arbitragem ou jurisdicionais, previamente elegendo o foro competente para tal) ou, em último caso, o procedimento para precificação e pagamento de participação daquele que deseja se retirar.
Retomando o tópico da responsabilização pessoal em virtude de dívidas e litígios da sociedade, particularidade essencial que se faz ao caso de médicos e sociedades médicas é a afetação individual do médico por seus eventuais erros conforme disposto no Capítulo I, inciso XIX do Código Ética Médica, aprovado pelo Conselho Federal de Medicina. Tal exposição, aliada ao arranjo societário muitas vezes mediante Sociedades Simples acentua, ainda mais, a necessidade por um completo e responsável trabalho de organização patrimonial e planejamento sucessório do médico participante de sociedade profissional. O principal objetivo de uma organização patrimonial é o mapeamento e destinação de parcelas do patrimônio objetivando a segurança contra insucessos profissionais, medidas judiciais muitas vezes descabidas ou desproporcionais, incertezas tributárias e trazendo consigo os benefícios de uma análise voltada à sucessão planejando uma transmissão de propriedade mais harmônica e economicamente eficiente.
Para tal iniciativa é necessário um trabalho individual e especializado que permitirá um exame aprofundado de todo o patrimônio, sua desejada destinação e as diversas soluções jurídicas passivas de adoção. A comum ideia que a integralização de todo patrimônio em uma sociedade (equivocadamente chamada de “holding”) garantiria ao sócio uma proteção patrimonial e uma sucessão facilitada na maior parte dos casos acaba se apresentando como fonte de mais inseguranças e custos, dificultando, inclusive, o processo de sucessão. Dessa forma, além da já citada integralização de bens em sociedade (que pode sim ser adotada em alguns casos) exemplos de soluções diversas a serem adotadas são a realização de testamento e doações, criação de seguros de vida e planos de previdência, remessa de bens ao exterior e revisão de regime de bens no casamento. Tais medidas são de implementação individual (independendo dos sócios na sociedade médica) e de benefício imediato, resguardando aquele que se planeja de maior segurança e estabilidade. Aliadas às estratégias supramencionadas de organização societária tais medidas podem gerar significativa economia tributária e a mitigação de desavenças, contribuindo com os resultados da sociedade.