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Estratégias comerciais no combate à pirataria no futebol

Ao mesmo tempo que o problema da pirataria passa pelo assalariado que não tem oportunidade de adquirir uma legítima canarinha, há inúmeros indivíduos de má-fé aproveitando-se da oportunidade para vender produtos de baixa qualidade e por vezes perigosos, com aplicação de materiais impróprios para uso ou consumo humanos.

22/12/2022

Em 1950, a Seleção Brasileira de Futebol protagonizou uma das suas maiores frustrações: diante de um público de quase 200.000 torcedores que lotavam as arquibancadas do recém-inaugurado Maracanã, o Uruguai se consagrou campeão do mundo, derrotando o Brasil (que nunca havia vencido uma Copa até então). As imagens em preto e branco daquele traumático Maracanazo escondem uma curiosidade pouco conhecida – ao contrário do que muitos imaginam, Zizinho e cia vestiam um uniforme branco.

Três anos depois, o Jornal Correio da Manhã, em parceria com a Confederação Brasileira de Desportos, lançou um concurso para escolher um novo uniforme: “O branco nada traduz, principalmente quando possuímos uma bandeira nacional com cores mais expressivas”, lia-se na capa do jornal. A ideia era reanimar os decepcionados torcedores brasileiros para a Copa de 1954 com um novo uniforme que traduzisse as cores vivas da bandeira do país.

Aldyr Schlee venceu o concurso com a emblemática “Canarinha”, camisa em amarelo-ouro acompanhada de shorts em tom azul-cobalto. Era com essa combinação que o país se tornaria o único a participar de todas as Copas do Mundo, o maior vencedor da história das Copas do Mundo com cinco títulos, o maior vencedor da história da Copa das Confederações com quatro títulos, conquistou nove títulos de Copa América e, em jogos olímpicos, conquistou duas medalhas de ouro, três de prata e duas de bronze.

Era também vestindo esse uniforme que Pelé marcaria de vez seu nome na história como o melhor e maior jogador de todos os tempos, alçando o número 10 ao status que atingiu no futebol moderno. Foi na Copa de 1970, a primeira transmitida por televisão com cores, que o mundo testemunhava o Rei do Futebol (de amarelo) ganhar sua terceira Copa do Mundo (três a mais que Messi, que nunca venceu, duas a mais que Diego Maradona e uma a mais que o país Argentina, por exemplo).

Não há dúvidas: a Seleção Brasileira é a mais tradicional e vitoriosa de todos os tempos – os números não mentem. Não por acaso, a Amarelinha se tornou um ícone no futebol mundial, reconhecida, admirada e temida dentro e fora dos gramados. Mesmo envolvida em crises políticas nas polarizadas eleições presidenciais de 2018 e 2022, a camisa da Seleção nunca perdeu seu brilho. Os uniformes lançados pela Nike (fornecedora oficial de produtos esportivos para a Confederação Brasileira de Futebol – CBF) para a Copa de 2022, por exemplo, esgotaram em poucas horas.

Assim como todo produto de sucesso, a camisa da Seleção sofre com um número estarrecedor de pirataria. Menos de um mês após o lançamento oficial da camisa de 2022, versões contrafeitas com impressionante riqueza de detalhes já eram amplamente ofertadas pela internet e por camelôs ao redor do mundo. Em setembro deste ano, uma operação realizada pela Polícia Civil de São Paulo apreendeu mais de 50 mil produtos contrafeitos referentes à Seleção.

Ao mesmo tempo, não surpreende que a pirataria também atinja os grandes clubes. Afinal, o brilho do futebol brasileiro não reside apenas na Seleção. Um estudo da Brand Finance, por exemplo, apontou a marca do Flamengo, avaliada em 96 milhões de euros, como a 49ª mais valiosa do mundo do futebol (a única não europeia a figurar no top 50).

Um dos grandes desafios de gerir, manter e agregar valor a uma marca poderosa como essa, sem dúvidas, é lidar com a contrafação. Segundo estudo realizado pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), em 2020, foram vendidas 60 milhões de camisas de times de futebol no Brasil, das quais 22 milhões eram contrafeitas. Ou seja, no Brasil, 37% das camisas futebol são falsificadas. Em termos financeiros, o prejuízo foi de R$ 9 bilhões em 2021, segundo levantamento do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).

Nesse contexto, as empresas fornecedoras de material esportivo, os clubes e a própria CBF vêm atuando fortemente para proteger sua propriedade industrial. O Flamengo, por exemplo, possui registro como marca de Alto Renome, que garante ao clube exclusividade do nome em qualquer ramo de atuação. Além de diversos registros de marca, que comumente embasam ações judiciais, notificações extrajudiciais e operações policiais, estratégias comerciais também vêm sendo exploradas para lidar com o problema.

Há um motivo para isso. Por um lado, ações ostensivas para inibir contrafatores são essenciais para gerir ativos intangíveis. Por outro lado, a realidade financeira do consumidor brasileiro médio precisa ser considerada. Dados levantados pela Amsterdam University demonstram uma correlação significativa entre renda e consumo de produtos contrafeitos em geral, tendo ainda se constatado que a maior parte daqueles que consomem contrafação no Brasil justificam o ato em função dos altos preços praticados pelo mercado.

Especificamente em relação a produtos referentes ao futebol, segundo uma pesquisa realizada pelo SPC Brasil em parceria com a Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL), em 2016, 43,5% dos torcedores brasileiros admitiram comprar produtos piratas de seus times de futebol. Dentre os produtos falsificados mais comprados estavam canecas e copos (22,9%), chaveiros (22,3%) e camisetas (18,9%). Do total de entrevistados, 53% diziam sempre comprar produtos originais. As justificativas deles eram que se preocupavam com a qualidade do produto (47,6%) e queriam contribuir financeiramente com o clube (27%). O mais interessante é que apenas 3,4% dos entrevistados diziam só comprar produtos falsificados e 53% diziam comprar só produtos originais. Ou seja, 43,6% compram tanto produtos originais quanto falsificados. O motivo para comprar falsificações é, em grande parte, pelo preço alto dos produtos oficiais (42,8%).

Para além da complexidade que a realidade financeira do país impõe aos clubes, ainda é preciso se considerar o custo reputacional de aplicar medidas coercitivas contra seus próprios torcedores, podendo causar até mesmo um distanciamento que desvalorizaria a marca e esvaziaria os estádios. Esse é um problema particularmente grave para clubes com torcidas populares, associados tradicionalmente a todas as classes sociais.

Em uma tentativa comercial de lidar com essa complexidade, a Nike, por exemplo, realiza uma estratégia interessante. A empresa americana, que fornece materiais para a Seleção Brasileira, possui linhas diferentes de uniformes. Assim, é possível adquirir uma camisa exatamente igual àquela usada pelos jogadores, por R$ 449,90. Mas, também é possível adquirir a versão “torcedor”, que possui menos tecnologia e detalhes de acabamento. Essa versão custa R$ 249,90. Para combater de forma valente a pirataria, há, ainda, a versão “supporter”, que custa R$149,90.

Na Itália, também encontram-se campanhas criativas de combate à pirataria no futebol. Clubes como Milan e Internazionale de Milão realizam parcerias com vendedores ambulantes. Os ambulantes pagam taxas menores para vender produtos oficiais do que lojas físicas. A intenção dos italianos é capturar parte do mercado que vai ao estádio e, em seu entorno, encontra apenas mercadorias falsificadas à venda.

A mais criativa estratégia, contudo, vem do Nordeste brasileiro. O Fortaleza realizou uma campanha em dois passos. Primeiro, lançou uma camisa oficial que era vendida por vendedores ambulantes nos arredores do Castelão por R$ 60. Porém, em um segundo momento, ingressou-se em um segundo passo ainda mais interessante. Os torcedores poderiam trocar suas camisas falsificadas por um desconto de R$ 10 na compra da nova camisa oficial de preço popular. Como resultado, além de explorar um novo mercado, o clube retirou de circulação diversos produtos contrafeitos, ainda agradando sua torcida.

Não se pensa neste breve texto reflexivo de forma ingênua. Ao mesmo tempo que o problema da pirataria passa pelo assalariado que não tem oportunidade de adquirir uma legítima canarinha, há inúmeros indivíduos de má-fé aproveitando-se da oportunidade para vender produtos de baixa qualidade e por vezes perigosos, com aplicação de materiais impróprios para uso ou consumo humanos.

Desse modo, uma abordagem eficaz para gerir propriedade intelectual deve passar por uma visão ampla que, ao mesmo tempo, seja capaz de agir com a rigidez necessária para lidar com os malfeitores e abusadores da boa-fé de milhões de consumidores, e seja capaz de acolher e incluir os 220 milhões de brasileiros que torceram pelo hexacampeonato, agora deixado para 2026.

Pedro de Abreu M. Campos
Advogado especialista em Propriedade Intelectual, mestrando em Direito Civil Contemporâneo e membro do Comitê de Copyright da INTA.

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