Migalhas de Peso

Reflexões sobre o bem jurídico penal

Antes de se discutir o cumprimento da pena, torna-se indispensável reavaliar o universo das leis penais incriminadoras para ponderar, de modo realista, o grau de importância de cada bem jurídico tutelado.

7/12/2022

O princípio regente de todo o ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana, erguido em sólidas bases constitucionais, como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF). Em seu aspecto subjetivo representa a tutela da respeitabilidade e da individualidade do ser humano diante do Estado, não podendo ser menoscabado por qualquer força punitiva ilegal ou despótica. Sob esse prisma, deve-se analisar o bem jurídico penal. Em primeiro lugar, em sentido amplo, pode-se considerar como bem uma coisa ou um estado referente a um proveito, um ganho, uma benesse, propiciador do despertamento do positivo sentimento de felicidade e satisfação para a pessoa. Por isso, pode-se apontar o bem como um elemento componente do patrimônio, entendido como o conjunto de coisas e valores economicamente ponderáveis; pode-se, ainda, indicar como bem a imagem e a reputação do ser humano, típicos aspectos imateriais relevantes para compor a dignidade de qualquer pessoa. Em suma, o bem satisfaz o ser humano.

Nem todo bem é lícito (um montante de cocaína pode consistir em bem relevante para o traficante, mas não é abrigado pelo Direito). Devemos nos ater aos bens jurídicos, os que são tutelados e protegidos pelo ordenamento pátrio, alguns da órbita extrapenal e os mais importantes ingressam na esfera penal; caso sejam lesionados, podem acarretar a imposição de pena a quem os feriu. Há bens jurídicos individuais e coletivos, entendendo-se os primeiros como atinentes aos interesses de pessoas determinadas e os outros como pertinentes ao interesse da sociedade de um modo geral. Por certo, sob o manto do princípio da intervenção mínima, nem todo bem jurídico demanda a tutela penal, ou seja, há de se converter em bem jurídico penal, como ensina Mir Puig.1

Os bens jurídicos mais relevantes devem encontrar guarida no ordenamento penal, mensurando-se a sanção a ser aplicada aos infratores conforme o grau de relevo a eles atribuído. Considerando que o homicídio é um crime cujo bem jurídico penal tutelado é a vida humana, impõe-se a pena de reclusão de seis a vinte anos de reclusão, na forma simples, e de doze a trinta anos de reclusão, no formato qualificado. De outro lado, a violação de domicílio tem pena de detenção, de um a três anos ou multa. No entanto, no cenário da valoração de bens jurídicos penais em confronto com a dignidade humana, tem-se encontrado contradições entre leis penais, resultando na aplicação de penas injustas.

De um modo realista, é difícil avaliar os critérios legislativos para impor a pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, a um furto simples (art. 155, caput, CP) e uma penalidade de reclusão, de um a quatro anos, à lesão corporal praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, incluída no Código Penal pela edição da lei 14.188/21, menos rigorosa (não há aplicação de multa cumulativa). Alguém subtrai uma bicicleta deixada em um parque, enquanto o proprietário compra um sorvete e pode ser apenado com um ano de reclusão e multa; um sujeito misógino agride a sua companheira, menosprezando-a e concretizando uma forma de violência doméstica, causando-lhe lesão corporal; pode receber a pena de um ano de reclusão (sem multa). Ambos podem cumprir a pena em regime aberto, considerando-se a sua primariedade e a ausência de antecedentes, que, atualmente, representa prisão albergue domiciliar. Nem é preciso atingir uma avaliação aprofundada no tocante aos bens jurídicos penais envolvidos: o patrimônio (passível de plena recomposição) e a integridade física da pessoa humana, sem perder de vista que a violência contra a mulher é uma enfermidade social na atualidade, cada vez mais detectada, inspirando rigorosas políticas criminais não somente no Brasil como também em outros países. A lei 11.340/06 (conhecida como Maria da Penha) indica inúmeros bens jurídicos relevantes, além da integridade corporal, como a saúde, a honra, a autoestima, a intimidade, a autodeterminação, a dignidade sexual, a liberdade individual, o patrimônio e correlatos (art. 7º, lei 11.340/06). Na mesma lei, proíbe-se a vulgarização da pena, impedindo a aplicação dos preceitos despenalizadores da lei 9.099/95, evitando-se penas pecuniárias isoladas e até mesmo proibindo-se uma sanção inexiste no ordenamento penal (a pena de cesta básica).2 Diante dessas ponderações, como é possível valorar dois bens jurídicos tão díspares com, praticamente, a mesma sanção penal? Não se pode ver sentido nisso.3

Entretanto, há muito mais a ser analisado e parece-nos curial destacar alguns pontos que geram muitas reflexões em nossa atividade jurisdicional no Tribunal de Justiça de S. Paulo. Deparamo-nos com um roubo simples, praticado por um desempregado, em cidade do interior paulista, que ingressou em uma loja e, simulando portar arma (com o dedo por trás da jaqueta), levou R$ 200,00 e um short. Chegando em casa, sofreu censura da esposa e, arrependido, apresentou-se à delegacia no dia seguinte, devolvendo o valor em pecúnia e o short. As provas foram seguras: a vítima o reconheceu com certeza, a esposa do acusado confirmou o fato e houve confissão extrajudicial e judicial do réu. Foi condenado à pena mínima possível: quatro anos de reclusão e multa, a cumprir em regime aberto. O bem jurídico penal concentrou-se, primordialmente, no patrimônio da loja – plenamente reposto – mas, também, na liberdade e tranquilidade da funcionária da empresa, que foi ameaçada. Apesar de se poder apontar a gravidade objetiva do fato em abstrato, por se tipificar como roubo, na situação real, a pessoa ameaçada não sofreu perigo efetivo, o evento durou poucos minutos e o dono da loja nada perdeu. Pode-se lançar um conjunto de indagações: por que o legislador não permitiu a aplicação, pelo menos, do arrependimento posterior a todos os delitos patrimoniais, a depender do caso concreto?4 Por que a confissão espontânea, que levou à descoberta da autoria e a recomposição patrimonial não deveria funcionar como causa de diminuição de pena?5Por que não se poderia até mesmo prever uma causa de extinção da punibilidade pelo efetivo arrependimento do autor do delito?6 Por que não se poderia resolver com base no princípio da insignificância?7 Enfim, outras teses poderiam ser levantadas para amenizar a pena desse acusado ou mesmo não aplicá-la. No entanto, qualquer desvio da legalidade iria levantar o manto do denominado ativismo judicial, no sentido de criar solução jurídica onde não existe formalmente. Resta a pergunta: o Legislativo não poderia modernizar o Direito Penal?

Não se trata, apenas, de apontar um caso de roubo. Noutra oportunidade, houve o furto de 10 quilos de plástico de um supermercado, avaliados em R$ 35,00. O crime foi cometido por duas pessoas, o que o qualificou (art. 155, § 4º, IV, CP), com pena mínima de reclusão de dois anos e multa. O réu era reincidente específico (vários furtos anteriores sempre com subtração de valores reduzidos) e cometeu o delito quando se encontrava em regime aberto por um dos anteriores crimes praticados. A pena foi estabelecida acima do mínimo e o regime inicial de cumprimento foi o fechado. Dentro dos critérios legais, a decisão condenatória perfaz o modelo imposto pelo Código Penal. Surgem as questões: por que não aplicar a insignificância? Por que não insistir em aplicar o regime aberto? Por que não conceder sursis? Por que não aplicar pena alternativa? Todas as respostas se concentram na múltipla reincidência, no cometimento do crime em pleno cumprimento do regime aberto e na pena em abstrato cominada para o furto qualificado.8 Entretanto, por comparação, o furto qualificado, nesses moldes praticado, não poderia ter a mesma faixa de pena em abstrato de uma lesão corporal gravíssima: “Art. 129 (...) “§ 2° Se resulta:

I - Incapacidade permanente para o trabalho;

II - enfermidade incurável;

III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;

IV - deformidade permanente; 

V - aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos”. Nem é preciso comentar resultado por resultado da lesão gravíssima para se captar a disparidade entre os bens jurídicos penais (os R$ 35,00 do supermercado e a seríssima lesão corporal). A questão a lançar concerne a uma reflexão:

Qual das sanções penais deveria ser revista? Afinal, equiparar a subtração de uma coisa, sem violência ou ameaça a pessoa, a uma lesão gravíssima não nos parece justificável.

Sob outro aspecto, referente a caso concreto, deparamo-nos com um crime de ameaça praticado por um indivíduo contra a sua idosa genitora, atormentando-a e deixando-a psicologicamente abalada. O acusado é reincidente em violência doméstica, inclusive com infração a medida protetiva, além de ousado e agressivo – o que demonstrou frente aos policiais chamados para prendê-lo quando atuava contra a mãe. Lança-se, nesse cenário, o seguinte: por que se dá tão pouco valor ao crime de ameaça, especialmente quando se materializa no contexto da violência doméstica? Não deveria haver a figura da ameaça qualificada, justamente nesses casos? O magistrado decretou a prisão preventiva – autorizada por lei – mas se torna inviável mantê-la por um tempo razoável, afinal, a pena para o referido crime é de detenção, de um a seis meses, ou multa. Quanto vale a tranquilidade, a paz de espírito, a segurança individual daquela idosa mulher? O filho, useiro e vezeiro na violência doméstica, já tendo cumprido penas pífias por outros delitos similares, continua o seu propósito de torturar psicologicamente sua genitora, sem que haja instrumentos legais efetivos para impedi-lo. De que adianta lançar tantas leis programáticas, definindo a violência doméstica e contra a mulher, sem qualquer recurso prático para a punição do agressor? Como permanecer no limbo jurídico confrontando a lei processual penal, autorizando medidas rigorosas, incluindo a prisão preventiva, e a lei penal, com penas incompatíveis com a segregação cautelar na maioria das situações? Das duas, uma: se a lesão corporal em violência doméstica tem reduzidas penas (art. 129, §§ 9º e 13, CP), se a perseguição e a violência psicológica (arts. 147-A e 147-B, CP) possuem penas mínimas de seis meses de reclusão, se a ameaça, como já mencionado, tem a mais reduzida de todas as sanções (art. 147, CP) – são os delitos mais comuns contra a mulher e no cenário da violência doméstica e familiar – como manter aberta a possibilidade de decretação de prisão preventiva (art. 313, III, CPP)?9

Por certo, inúmeros outros exemplos poderiam ser citados, embora o objetivo destas linhas seja incitar o leitor a refletir sobre o bem jurídico penal dentro da realidade brasileira e do cenário da dignidade humana, tanto das vítimas de crimes quanto dos autores de infrações penais. Deixando à parte, por ora, para o fim de concentrar os esforços na medição da proporcionalidade entre as punições estabelecidas em abstrato pelo Poder Legislativo, no âmbito penal, não é propício debater a falência ou inoperância das penas e de sua aplicação ou execução. Antes mesmo de se discutir a etapa final do trajeto realizado pelo processo-crime (cumprimento da pena), torna-se indispensável reavaliar o universo das inúmeras leis penais incriminadoras para ponderar, de modo mais realista, o grau de importância de cada bem jurídico tutelado. Pretendendo evitar qualquer atuação despida de legalidade, considerada por vários operadores do direito como ativismo judicial, antes de se criticar o Poder Judiciário na realista avaliação dos crimes, parece-nos fundamental indagar: como modernizar a legislação penal senão pela atuação do Poder Legislativo? Que possam vir mudanças promissoras.

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1 Estado, pena y delito, Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de f, 2013, p. 85.

2 Essa mencionada pena de cesta básica resultou da realidade indevida dos Juizados Especiais Criminais, cujas transações terminavam premiando o agressor da mulher com a “entrega de cesta básica a uma entidade assistencial”. Em verdade, tal pena nunca existiu no ordenamento jurídico. A transação não poderia atingir essa “sanção”, visto que a única hipótese para tanto seria imaginar que a pena restritiva de direitos concernente à prestação pecuniária teria sido transformada em prestação de outra natureza (art. 45, § 2º, CP), logo, entrega de cesta básica a entidade social. No entanto, para isso, dependeria de concordância da vítima (situação humilhante para a mulher agredida) e ainda não tem essa entrega de cesta básica nenhuma outra natureza, pois essa cesta é adquirida com pecúnia. Noutros termos, entregar uma cesta básica a entidade assistencial é uma prestação pecuniária na essência. Logo, era apenas uma facilidade para terminar logo o caso criminal, sob o pretexto de fazer caridade, mas à custa do sofrimento da mulher agredida.

3 Sob o exclusivo prisma da proporcionalidade entre os bens jurídicos penalmente tutelados, observe-se o crime de maus-tratos contra cão ou gato, cuja pena é de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Há três sanções cumulativas, tornando estranha a tutela penal em relação à mulher agredida em dramática situação de violência doméstica.

4 “Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços” (grifamos). Inaplicável ao roubo.

5 Serve como atenuante, mas esta não permite a aplicação da pena abaixo do piso previsto no tipo penal.

6 Pode-se argumentar com a aplicabilidade da Justiça Restaurativa, mas não é prevista em lei e de raríssima aplicação no Brasil, embora o CNJ já a tenha aprovado por resolução. Mesmo assim, todo o procedimento restaurativo deve ser implementado em primeiro grau.

7 A maioria da doutrina e da jurisprudência não aceita o crime de bagatela no cenário do roubo, o que se compreende, pois há violência ou grave ameaça a pessoa. No entanto, o caso concreto poderia determinar solução diversa.

8Pode-se apontar a derrocada do sistema de cumprimento de penas, inapto a recuperar os condenados, mas, além disso, o furto qualificado não poderia ter a mesma sanção de uma lesão gravíssima.

9 O inciso III poderia ser interpretado de maneira restritiva (“se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, grifamos) no sentido de se impor a prisão cautelar apenas e tão somente para segregar o agressor enquanto se materializa, por exemplo, a separação de corpos, com a mudança da mulher do lar onde vivia com o agente. Mas não é assim que se dá na realidade, pois as prisões cautelares são decretadas e permanecem ativas durante todo o processo, representando, em muitas situações, a nítida antecipação de pena. E, pior, a ultrapassagem da pena fixada em concreto. 

Guilherme de Souza Nucci
Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP, atuando nos cursos de Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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