O planejamento familiar, foi garantido na Constituição Federal de 1988 com status de direito fundamental, já que os direitos sexuais e reprodutivos estão vinculados ao exercício de direitos humanos indivisíveis, como o direito à liberdade, à igualdade, à autonomia, à autodeterminação e à dignidade da pessoa humana.
Por sua vez, a lei 9.263/96, embora tenha garantido grandes avanços ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, ensejou a desigualdade de gênero, em especial, a violação da autonomia reprodutiva da mulher.
Nesse sentido, destaca-se o disposto no art. 10:
“Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: (Artigo vetado e mantido pelo Congresso Nacional - Mensagem nº 928, de 19.8.1997)
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.
§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da lei”.
Nota-se que os dois incisos do art. 10, apresentam os requisitos mínimos para que seja autorizada a realização da esterilização, e os seus parágrafos §1° e §3° impuseram como condição a comprovação da sua ciência a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes, sendo necessário que não ocorra alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.
Já o §2° veda a laqueadura tubária durante o parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores. E o §5° estabelece que na sociedade conjugal, assim como em união estável, a realização do procedimento de esterilização depende do consentimento de ambos os cônjuges.
Consequentemente, o dispositivo em comento retrata a mulher como incapaz de fazer e assumir suas escolhas, anulando-a como sujeito de direitos e impossibilitando-a de se desenvolver com plena autonomia, em evidente afronta de sua liberdade.
Não por outra razão, foram ajuizadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI nº 5097 e 5911), defendendo que os dispositivos em comento violam o princípio da dignidade da pessoa humana, planejamento reprodutivo, liberdade e autonomia privada, restringindo, ainda, a liberdade das mulheres tomarem decisões sobre seu próprio corpo.
Paralelamente, em abril de 2014, foi proposto o projeto de lei 7.364/14, da deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), com o objetivo, dentre outros aspectos, de revogar o consentimento expresso do cônjuge para a esterilização voluntária da mulher.
Após pouco mais de 8 (oito) anos de tramitação, o projeto de lei foi aprovado, sendo sancionada a lei 14.443/22, trazendo grandes avanços, tanto do ponto de vista da autonomia da pessoa (leia-se mulher) sobre a sua vida reprodutiva, quanto em relação ao acesso aos procedimentos.
Para a relatora, senadora Nilda Gondim (MDB-PB) “a aprovação do projeto fará com que a legislação do Brasil esteja em consonância com a de países como Canadá, França, Alemanha, Argentina e Colômbia, que, no caso de pessoas capazes, vedam a esterilização apenas de menores de idade”1
Referida lei acaba com a obrigatoriedade do consentimento do cônjuge para a realização de laqueadura tubária, para mulheres, e de vasectomia, para homens. Também reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para esterilização voluntária, desde que a pessoa tenha dois filhos vivos.
Outra mudança importante da lei é a permissão para que as mulheres possam realizar a laqueadura logo após o parto, desde que manifestem a vontade de realizar o procedimento com ao menos 60 dias de antecedência.
Destaca-se que a lei mantém o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, de forma a possibilitar que nesse período a pessoa tenha acesso ao serviço de regulação da fecundidade, com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, para possibilitar ao paciente uma eventual desistência do procedimento.
Nesse aspecto, a senadora Nilda Gondim (MDB-PB) destacou a elevada efetividade da esterilização cirúrgica como método contraceptivo permanente. Quanto à redução de idade para o procedimento, ela avaliou que o Sistema Único de Saúde (SUS) está plenamente apto para fornecer informações adequadas para a tomada de decisões conscientes2.
Assim, a lei 14.443/22 permite seja revertido o quadro de inefetividade do direito da autonomia reprodutiva, rompendo alguns obstáculos na luta pela igualdade de gênero e garantindo maior liberdade à mulher em relação ao seu próprio corpo.
Por óbvio, a esterilização voluntária deveria ser uma decisão individual, já que diz respeito à própria capacidade de reprodução e escolha, no entanto, a promulgação da lei não deixa de ser um grande avanço, em especial para a mulher que não ficará mais sujeita ao consentimento do cônjuge.
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1 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/05/lei-reduz-idade-para-laqueadura-e-dispensa-consentimento-do-conjuge. Acesso em 15/09/2022.
2 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/05/lei-reduz-idade-para-laqueadura-e-dispensa-consentimento-do-conjuge. Acesso em 15/09/2022.
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Brasil. Lei nº 9.263/96. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Brasília, 1.996.
Brasil. Lei nº 14.443/22. Altera a Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, para determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas e disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar. Brasília, 2.022.
Lei reduz idade para laqueadura e dispensa consentimento do cônjuge. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/05/lei-reduz-idade-para-laqueadura-e-dispensa-consentimento-do-conjuge. Acesso em 15/09/2022
STF. ADI 5097. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4542708. Acesso 15/09/2022.
STF. ADI 5911. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5368307. Acesso em 15/09/2022.