I – O princípio in dubio pro reo e a presunção de inocência.
Nossa Constituição Federal, em seu artigo 1º, afirma que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Como tal, na função de Estado-Acusador, não tem imunidade à filtragem constitucional1, devendo a persecução penal limitar-se à hierarquia constitucional a fim de possuir um mínimo de legitimidade.
O legislador constituinte decidiu que a República Federativa do Brasil assume o risco de absolver culpados para não condenar inocentes, inserindo a presunção de inocência no núcleo duro das cláusulas pétreas de nossa Carta Magna.
Não existe presunção de culpa em nosso ordenamento jurídico. O que existe é a presunção de inocência, de não culpabilidade. O princípio in dubio pro reo é inerente a qualquer tentativa de se pensar em justiça criminal.
Como consignou de forma memorável Souza Neto: “Não há um princípio de filosofia, um dogma moral, um cânone de religião, um postulado de bom senso, uma regra jurídica que autorize um pronunciamento condenatório na dúvida”.2
Nós, operadores do direito penal, em nossa militância diária podemos observar que existem duas consequências processuais básicas da garantia da presunção de inocência: colocar o ônus da prova na acusação e exigir um alto padrão de prova de que o acusado á autor e culpável pelo fato a ele imputado.
Essa reflexão acerca da impossibilidade de condenação de uma pessoa diante de dúvida razoável existe desde os tempos de Aristóteles (384/322 antes de Cristo). No estudo titulado de “Problemas relacionados à Justiça e à Injustiça”, o princípio da inocência e reafirmado por Aristóteles, como claramente expressado nesse trecho:
“(...) Além disso, qualquer um de nós preferiria proferir uma sentença absolvendo um malfeitor em vez de condenar um culpado inocente, no caso, por exemplo, de um homem sendo acusado de escravização ou assassinato. Pois deveríamos preferir absolver qualquer uma dessas pessoas, embora as acusações feitas contra elas por seu acusador fossem verdadeiras, em vez de condená-las se fossem falsas; pois quando qualquer dúvida é mantida, o erro menos grave deve ser preferido; é um assunto sério decidir que um escravo é livre, mas é muito mais sério condenar um homem livre de ser um escravo”.3
Avançando no tempo alguns séculos, verificamos que na jurisprudência da antiga Roma, a presunção de inocência transfere o ônus da prova para a acusação e, portanto, é responsabilidade do acusador provar a culpa e refutar a presunção de inocência do réu: ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat – o ônus da prova é de quem declara, não de quem nega.
Seguindo adiante em nossa jornada pelos séculos, já no ano de 1631, o padre jesuíta e professor Friedrich Spee von Langenfeld (1591 – 1635), autor do estudo Cautio Criminalis,4 quando fez grande crítica aos julgamentos inquisitórios das “bruxas” que levou à sua abolição de forma generalizada. Spee argumentou que a tortura (que era amplamente utilizada para obter confissões das “bruxas”) não produzia a verdade. Ele afirmou que “se um procedimento inadequado resultar em injustiça, tal procedimento não pode ser justificado”.
Neste mesmo sentido, avançando milhares de anos na história e chegando aos dias atuais, também afirma o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH): “Em qualquer processo, a presunção de inocência coloca o ônus da prova na acusação e isso significa que um acusado não pode ser obrigado a se incriminar e que deve haver provas para fundamentar uma condenação.”
Nós, juristas e advogados criminalistas, somos estudiosos da ciência jurídica e sabemos que um princípio, como em toda ciência, deve prevalecer sobre o senso comum, a superstição e a religião. A ciência jurídica penal possui princípios dentre os quais aqueles que se consubstanciam em garantias que todo ser humano possui e são inalienáveis desde sua existência intrauterina até após a sua morte, como parte de sua herança.
O princípio que impõe o ônus da prova ao acusador, na realidade, nada mais é do que a dimensão probatória do princípio constitucional da presunção de inocência.
Partindo dessa premissa, podemos afirmar que a subordinação do processo penal a esses princípios é essencial para tornar legítimo o título executivo condenatório: “mais claramente, a exigência de que um ônus penal deva ser provado pela acusação e que deva ser provado mais além de toda dúvida razoável descansa na ideia de que é muito pior condenar alguém por um crime que não cometeu do que absolver alguém por um crime que efetivamente cometeu.”5
Neste viés, reportando-se aos princípios que regem a prova no direito alemão, assim se pronunciou o mestre Claus Roxin: “Enquanto no processo civil, apenas os fatos controversos necessitam ser provados, vale no processo penal, como emanação da máxima instrutória, o princípio segundo o qual todos os fatos, de alguma forma relevantes para a decisão judicial, devem ser provados.”6
II – Da valoração do standard da prova:
Um conceituado advogado e professor emérito da Harvard Law School: Alan Dershowitz: “os cientistas buscam a verdade, filósofos buscam a moral, um processo penal busca somente a prova mais além de toda a dúvida razoável”.
O conceito de standard de prova além da dúvida razoável (beyond a reasonable doubt) é originário do Direito Anglo-Saxão e é, atualmente, o critério de valoração de prova penal mais aceito em todo o mundo para se proferir uma sentença justa.
A quantidade de prova acusatória precisa ultrapassar a dúvida razoável para que se concretize o princípio in dubio pro reo.
A abordagem utilizada pelo Tribunal Penal Internacional por ocasião do julgamento de crimes praticados durante a guerra civil na ex Yugoslavia colocou a prova circunstancial na condição de ser a única disponível para demonstrar uma única versão apresentada. Ou seja, faz-se necessário a ausência de qualquer outra versão apresentada para os fatos e também de qualquer outro elemento de prova que legitime a versão da defesa.
Neste ponto, torna-se imprescindível que analisemos os limites dos elementos indiciários. Tais elementos de prova não comprovam diretamente o fato alegado, mas apenas tem o potencial de comprovar um fato associado ao alegado.
Assim as provas indiciárias são frágeis porque não se relacionam diretamente com o fato alegado e também porque demandam sua valoração pelo julgador, que se utiliza de senso comum e generalizações da em sociedade (background knowledge), sem relação com a ciência jurídica, mas sim com estereótipos, preconceitos e conjecturas.
Diferente da prova direta (que permite cognição do fato a ser comprovado mediante única inferência), a prova indiciária é indireta e exige inferências sucessivas - ligadas por regras de senso comum – para se chegar uma comprovação do fato.
Por outro viés, diferente da prova plena (que permite inferência segura quanto ao fato), a prova indiciária é semiplena, não permitindo inferência segura sobre a comprovação do fato imputado ao réu. O título executivo penal, precisa de fundamentação erigida sobre prova robusta, produzida sob um standard rigoroso e invariável.
Ora, se falamos de concretizar princípios e garantias, é facilmente constatável que a prova indiciária, circunstancial, não supre o elevado grau de probabilidade fática na hipótese demonstrada pelo órgão acusador e também não serve para comprovar inexistência de plausibilidade na hipótese apresentada pela defesa do acusado.
A prova indiciária se afasta totalmente do standard de prova acima de dúvida razoável, e me arrisco a dizer, com a máxima vênia, que é a sua antítese.
Ao contrário, em função de tais características, os indícios devem ser valorados com redobrada cautela, exigindo-se para a sentença penal condenatória a sua multiplicidade, precisão e convergência no sentido de provar a mesma hipótese fática incriminadora, como descreveu brilhantemente a Ministra Maria Thereza de Assis Moura em voto emblemático.7
Havendo fundada dúvida, a absolvição se faz imperativa.
III – Conclusão:
Por todo o exposto, com as vênias necessárias, entendo que a interpretação dos comandos da lei penal adjetiva positivados no Código de Processo Penal deve obedecer aos princípios e garantias constitucionais que existem com escopo de preservar o indivíduo acusado em face da falibilidade humana na gestão probatória penal.
Em que pese a autonomia do Direito Processual Penal, seu caráter instrumental está em sua essência, não podendo jamais o conteúdo axiológico da norma processual mitigar garantias e direitos fundamentais do acusado.
A definição do standard da prova tem função de aferir se determinado fato imputado foi comprovado pelo acusador, devendo ser compatível com a garantia da presunção de inocência.
Por essa razão, o rebaixamento do critério probatório em processo penal é inaceitável. Referido standard precisa ser claro, controlável, objetivo, racional, invariável, previsível.
Mesmo em casos difíceis de interpretar (hard cases), mesmo diante do conflito aparente de normas, mesmo com jurisprudência não uniforme, ainda que diante de um déficit cognitivo do julgador pela complexidade e natureza técnica dos fatos, etc... nada disso pode ser obstáculo à concretização da garantia do in dubio pro reo e do princípio da inocência.
A suposta complexidade do crime imputado ao acusado, bem como suposta dificuldade probatória, não podem em nenhuma hipótese afastar ou mitigar a necessidade de prova cabal para uma sentença condenatória, sob pena de deslegitimação do julgamento, decorrendo em incerteza, em insegurança jurídica que afetarão a estabilidade do tecido social.
Penso que a advocacia criminal, ao enfrentar as teses acusatórias, não deveria precisar destacar que o sistema jurídico brasileiro está fundamentado na concepção do Direito Penal como ultima ratio, no princípio in dubio pro reo e na garantia da presunção de inocência.
Na dúvida, absolve-se sempre!
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1 Tabajara Novazzi Pinto, Direito Penal Econômico. Ed. Quartier latin, pág.55.
2 Joaquim de Souza Neto, A Tragédia da Lei, pág.5.
3 Aristotle, Problemata, Bk. XXIX (emphasis added); translated in E.S. Forster, The Works of Aristotle Vol. VII Problemata 951b (J.A. Smith and W.D. Ross eds., Clarendon Press 1927).
4 Friedrich Spee von Langenfeld, Cautio Criminalis Seu De Processibus Contra Sagas Liber (Petrus Lucius Typog. Acad. 1631) (hereinafter “Spee”).
5 HAACK, Susan. El probabilismo jurídico. Una disensión epistemológica, in Estándares de prueba y prueba científica, 2013, p. 69.
6 ROXIN, Claus. Strafverfahrensrecht, 26ª edição, München, 2009, p. 150.
7 Moura, maria Thereza Rocha de Assis, A prova por indícios no processo penal. São Paulo: Saraiva, 1994, pag.91.