A boa-fé objetiva ganha singular relevo no Direito contemporâneo e exige dos contratantes um comportamento que condiga com um padrão ético de confiança e lealdade. Ela é indutora deveres acessórios de conduta, impondo às partes comportamentos obrigatórios contidos implicitamente em todos os contratos, deveres estes a serem observados e seguidos para que se concretizem as justas expectativas oriundas da própria celebração e execução da avença, mantendo-se, assim, o necessário equilíbrio da relação.
Importante destacar que, essas normas de conduta não se orientam exclusivamente visando ao cumprimento da obrigação, mas permeiam toda a relação contratual, de modo a viabilizar à satisfação dos interesses amplos envolvidos no negócio.
O princípio da boa-fé exerce três funções principais. Refere-se a um instrumento hermenêutico, à fonte de direitos e deveres jurídicos e também à limite ao exercício de direitos subjetivos. A esta última feição aplica-se à teoria do adimplemento substancial das obrigações e à teoria dos atos próprios, como forma de rever, não só a amplitude, mas também o alcance dos deveres contratuais, e, daí se deriva os institutos do tu quoque, da venire contra factum proprium, da surrectio e da supressio.
Para o desate do tema posto à reflexão, interessa apenas a supressio, que tem como essência a tutela da estabilidade do comportamento. Ela viabiliza o reconhecimento da “perda do direito subjetivo como consequência de uma inatividade do titular, quando essa inatividade, tendo perdurado por um período de tempo não determinado a priori, apresenta-se em face de circunstâncias idôneas a determinar, na contraparte, um investimento de confiança merecedor de proteção com base no princípio da boa-fé” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 710).
O instituto da supressio, assim, dispõe que o não exercício de certo direito, por parte de seu titular, em considerável lapso temporal, gera a crença real e efetiva de que esse direito não mais será perseguido, criando na outra parte da relação contratual um puro sentimento de confiança de que não há sequer interesse daquele em pleiteá-lo.
Segundo o autor alemão WERNER FLUME, o conceito de supressio pode ser sintetizado por meio da ideia de que “ninguém pode fazer valer um direito ou uma posição jurídica quando, em razão da sua conduta anterior, o exercício deles se mostra contrário à boa-fé e, com isso, contrário ao Direito” (El Negocio Jurídico – Parte general del Derecho Civil, Tomo II, 4ª edição, Tradução espanhola de José Maria Miquel Gonzaléz e Esther Gómez Calle, Fundacion Cultural del notariado, Madrid, 1998, p. 158 e 160).
E, como bem ensina JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES, remetendo-se a SHAKESPEARE, em sua obra “O Mercador de Veneza”: “Ao ver que a garantia não presta, Shylock deseja retroceder em sua escolha, no que é impedido por Pórcia. Aqui, Pórcia aplicou um conceito conhecido no Direito inglês: o “Estoppel”. Tendo previamente recusado um direito, manifestando-se de determinada forma, Shylock fica impedido de reclamar esse mesmo direito, impedindo-se uma conduta contraditória” (Medida por Medida – O Direito em Shakespeare, Rio de Janeiro: 2013, ed. GZ, 2ª edição, p. 132).
A supressio, em apertada síntese, é a supressão de um direito, mediante a inércia da outra parte em exercer o direito, criando a expectativa de ter ocorrido renúncia dele. Não se caracteriza simplesmente por um "não fazer", mas sim evidencia a renúncia ao direito pretendido.
Nesse sentido, a configuração da supressio indica a observância de três requisitos basilares. São eles, a inércia do titular do direito subjetivo, o transcurso de tempo capaz de gerar a expectativa de que esse direito não mais seria exercido e a deslealdade fruto de seu exercício posterior, com reflexos no equilíbrio da relação jurídica existente.
É enobrecedor magistério de Flávio Tartuce quanto ao tema:
“Inicialmente, quanto à supressio (Verwirkung), significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos. O seu sentido pode ser notado pela leitura do art. 330 do CC/2002, que adota o conceito, eis que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato. Assim, caso tenha sido previsto no instrumento obrigacional o benefício da obrigação portável (cujo pagamento deve ser efetuado no domicílio do credor), e tendo o devedor o costume de pagar no seu próprio domicílio de forma reiterada, sem qualquer manifestação do credor, a obrigação passará a ser considerada quesível (aquela cujo pagamento deve ocorrer no domicílio do devedor). Ao mesmo tempo em que o credor perde um direito por essa supressão, surge um direito a favor do devedor, por meio da surrectio (Erwirkung), direito este que não existia juridicamente até então, mas que decorre da efetividade social, de acordo com os costumes. Em outras palavras, enquanto a supressio constitui a perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu não exercício no tempo; a surrectio é o surgimento de um direito diante de práticas, usos e costumes. Ambos os conceitos podem ser retirados do art. 330 do CC” (Tartuce, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie – v. 3. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 170).
A lição doutrinária de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, mostra-se não menos enriquecedora:
“A expressão supressio também é um importante desdobramento da boa-fé objetiva. Decorrente da expressão alemã Verwirkunguz, consiste na perda (supressão) de um direito pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal. Trata-se de instituto distinto da prescrição, que se refere à perda da própria pretensão. Na figura da supressio, o que há é, metaforicamente, um "silêncio ensurdecedor" ou seja: um comportamento omissivo tal, para o exercício de um direito, que o movimentar-se posterior soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas. Assim: na tutela da confiança, um direito não exercido durante determinado período, por conta desta inatividade, perderia sua eficácia, não podendo mais ser exercitado. Nessa linha, à luz do princípio da boa-fé, o comportamento de um dos sujeitos geraria no outro a convicção de que o direito não seria mais exigido”. (GAGLIANO, P. S.; FILHO, R. P. Novo curso de direito civil, volume 4: Contratos. 2. ed. unificada [livro eletrônico]. São Paulo: Saraiva Educação, 2019 cap. III, item 6.2).
Como se verifica, trata-se de instituto bem diverso da prescrição, e, através dele haverá redução ou até extinção do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de qualquer das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito, de forma a criar para a outra a sensação razoável e plausível, a ser apurada de forma casuística, de ter havido renúncia àquela prerrogativa.
Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva adquire enorme expressividade no sentido de ser o demarcador de eventual pretensão do locador exigir retroativamente valores, a título de reajustes, após o recebimento por determinado período do valor locativo sem tais acréscimos, frustrando uma expectativa construída na psique do locatário de que não mais seria cobrado por tais diferenças.
O recebimento, sem ressalvas, do valor mensal locativo sem o reajuste previsto contratualmente, por um período de até 03 anos, não gera a perda do direito de cobrança dos reajustes de forma retroativa.
Porém, havendo silêncio para além desse tempo e inexistindo qualquer ressalva, já haveria a configuração do transcurso de tempo suficiente para gerar a perda do direito quanto à cobrança dos retroativos.
De todo modo, em quaisquer hipóteses, não há entendimento do STJ no sentido de considerar perdido o direito à cobrança do reajuste, desde o momento da notificação do locatário para cumprimento do contrato, em diante. Vejamos:
“Durante cinco anos a autora/locatária procedeu ao pagamento dos alugueres sem a incidência dos reajustes anuais previstos nas normas gerais regedoras das locações no aludido shopping e, ao que consta dos autos, a ré/recorrente os recebeu sem qualquer ressalva (...) a solução que mais se coaduna com a boa-fé objetiva é permitir a atualização do valor do aluguel a partir da notificação extrajudicial encaminhada ao locatário e afastar a cobrança de valores pretéritos”. (REsp n. 1.803.278/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 22/10/2019, DJe de 5/11/19).
“Se a fornecedora deixou de executar, durante toda a vigência contratual, cláusula que permitia alterar o consumo mínimo originalmente estipulado, não pode, após a rescisão contratual, requerer a sua aplicação, para cobrar as diferenças não faturadas durante todo o período (...) Em maio de 2012, ou seja, quase 6 anos após o início do fornecimento do nitrogênio, a contratada notificou a Peróxidos, sobre o aumento do consumo mínimo para 242.544 m³ por mês (...) Durante todo o período, a White deixou de aplicar a cláusula 3.3, a qual possibilitava a alteração do consumo mínimo, não podendo, após a rescisão contratual, requerer a sua alteração e consequente cobrança, como forma de punir a contratante pela ruptura motivada do contrato. (...) Logo, diante da ocorrência do instituto da supressio, sem razão a recorrente”. Acórdão de origem (TJ-PR), junto ao REsp 1990538 que foi conhecido e teve o seu provimento negado, RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO, DATA DA PUBLICAÇÃO 20/09/22.
“a locadora, de se ver, não se opusera ao recebimento desatualizado da obrigação dentro em o curso da relação “ex locato” (...) Calha demais anotar que, por três anos, os pagamentos dos alugueres acabaram realizados sem insurgência qualquer da locadora; e a sua inércia abriga a aplicação do instituto “supressio”, fulminando o sustentado crédito, reclame do princípio da boa-fé objetiva (art. 422, CC), e assim porque, repise-se, anuíra a locadora, tacitamente, à forma de pagamento, fazendo-o para, em tempo outro, desqualificar o que à toda evidência autorizara”. Acórdão de origem (TJ-SP), junto ao AREsp 2115674 que foi conhecido para não conhecer do recurso especial, RELATOR(A) Ministro HUMBERTO MARTINS, DATA DA PUBLICAÇÃO 14/07/22.
“o lapso temporal decorrido – aproximadamente de 1 ano e seis meses, a contar do mês em que deveria ter ocorrido o reajuste e a data da propositura da Ação - não se prolongou suficientemente ao ponto de ser considerado “longo período de tempo”, requisito necessário para a aplicação do instituto da “supressio”. Veja -se que o Código Civil de 2002 possui previsão específica de prazo prescricional para a cobrança de débitos desta natureza: Art. 206. Prescreve: (...) § 3º Em três anos: I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos. Portanto, sendo de três anos o prazo prescricional para o exercício do direito de cobrança em relação aos aluguéis, torna-se operosa a aplicação da Teoria da “Supressio” em relações jurídicas de natureza locatícia, haja vista que esta se caracteriza, dentre outros requisitos, pelo não exercício de um direito durante longo lapso temporal”. Acórdão de origem (TJ-PR), junto ao AREsp 1701783 que teve o seu provimento negado, RELATOR(A) Ministro MARCO BUZZI, DATA DA PUBLICAÇÃO 02/10/20.
“durante todo o período da relação contratual, cobrou os valores sem reajuste e sem qualquer objeção ou ressalva ao recebimento dos valores supostamente a menor (...) pela livre e espontânea vontade de seus representantes legais e sua única e exclusiva conveniência, embora houvesse previsão expressa de reajuste anual de preço, não aplicou o reajuste pela variação do INCC (...) Tribunal Estadual recorrido se manifestado em conformidade com o entendimento desta Corte Superior, não merece reforma o acórdão recorrido, ante o teor da Súmula 83 do STJ” (AREsp 815583, RELATOR(A) Ministro RAUL ARAÚJO, DATA DA PUBLICAÇÃO 02/06/20).
“ao longo de anos o locatário pagou aluguel de valor inferior ao que seria devido pela aplicação dos reajustes autorizados pelo contrato, tendo o locador só agora vindo a reclamar as diferenças do período não atingido pela prescrição. Ora, a particularidade de ao longo daquele expressivo tempo o locador ter recebido o valor ofertado sem lhe opor ressalva fazia concluir que ele aceitara a obrigação da forma em que fora satisfeita, o que o impedia de cobrar diferenças de valor só agora detectadas. Tal situação retratava o fenômeno que a doutrina rotula como "supressio" (...) A Corte estadual, dessa forma, aplicou o entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça” (AREsp 524997, RELATOR(A) Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, DATA DA PUBLICAÇÃO 01/02/19).
“Depósitos realizados na conta corrente do locador sem o reajuste contratualmente previsto Diferenças devidas - Conta elaborada pelo contador judicial que indica a correção dos cálculos indicados pelo locador - Mora demonstrada Aplicação da supressio Impossibilidade, uma vez que o período inferior a um ano não pode ser compreendido como apto a tanto”. Acórdão de origem (TJ-SP), junto ao AREsp 1396182, que foi conhecido para não conhecer do recurso especial, RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO, DATA DA PUBLICAÇÃO 19/12/18.
Desta forma, o lapso de tempo superior a 3 anos, configurador do expressivo tempo e do longo período decorrido, conjugado com a ausência de ressalva, reclamação, insurgência, são fatores decisivos para a aplicação da supressio quanto à cobrança retroativa dos reajustes objeto das relações locatícias. O brocardo dos mais tradicionais do mundo jurídico é o que menciona que “o Direito não socorre aos que dormem”, e, na matéria sob análise, o Direito até socorre aos que sonolentos, porém não convém que sono seja prologando por mais de 03 anos, sob pena do pesadelo da supressio ser aniquilador.