Os recursos ordinários ou extraordinários, quase que na totalidade das decisões por ele recorríveis, são utilizados pelos vencidos ou interessados.
O sistema recursal brasileiro é amplo, possuindo um leque grande a disposição.
Se por um lado é direito da parte vencida requerer a revisão de julgados que a prejudiquem, forçando um duplo grau na análise jurisdicional, por outro a infinidade de recursos e oportunidades de recorrer, tornam a prestação jurisdicional cara e morosa, muitas vezes sendo essa a intenção do recorrente.
Apesar de não ser o assunto central do presente escrito, não se defende aqui a mitigação ou a revogação de certa categoria recursal pela lei. Mas cabe uma maior reflexão no que diz respeito a amplitude desse direito, e se seriam necessárias tantas espécies de recursos.
Alguns tipos de decisões devem ser invariavelmente recorríveis, mas a recorribilidade de outras apenas atrasa o procedimento processual. Como é o caso, por exemplo, das sentenças e decisões interlocutórias e o pronunciamento do presidente de turma em sessão de julgamento nos tribunais, respectivamente.
Imagine-se se a cada decisão de presidente de turma em sessão de julgamento, fosse permitida a interposição de recurso, inviabilizaria, dessa maneira, a prestação jurisdicional.
Pois bem. Em razão da pormenorizada classificação das decisões judiciais pelo CPC, além do princípio da adequação recursal, o qual diz que para cada pronunciamento existe recurso correspondente, o ordenamento não permite, via de regra, o erro em sua interposição.
O princípio da fungibilidade surge para atenuar o rigorismo da lei. Em que pese a classificação pelo código das modalidades de decisões judiciais facilitar a identificação do recurso cabível, em alguns casos a dúvida é permitida, incidindo a sua aplicação.1
De outra borda, a fungibilidade não era admitida, e ainda não é, em caso de a interposição de recurso caracterizar erro grosseiro.
Em recente julgado, o desembargador do TJ/DFT James Eduardo Oliveira, esclarece a questão:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE ACOLHE PARCIALMENTE IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INADMISSIBILIDADE. RECURSO CABÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICABILIDADE. I. Pronunciamento judicial que acolhe parcialmente impugnação ao cumprimento de sentença, exatamente porque não põe fim à fase executória, não se qualifica como sentença, mas como decisão interlocutória, nos termos do artigo 203, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil. II. À vista da clara e inequívoca categorização legal do pronunciamento judicial que acolhe apenas em parte a impugnação ao cumprimento de sentença, avulta o descabimento do recurso de apelação, presente o disposto nos artigos 1.009, caput, e 1.015, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Constitui erro inescusável, inconciliável com o princípio da fungibilidade recursal, a interposição de apelação contra decisão interlocutória que acolhe parcialmente impugnação ao cumprimento de sentença. IV. Inexistindo hesitação doutrinária ou jurisprudencial a respeito da natureza jurídica do pronunciamento judicial que acolhe parcialmente a impugnação ao cumprimento de sentença e quanto ao recurso cabível, ressai patente a inaplicabilidade do princípio da fungibilidade. V. O princípio da fungibilidade tem aplicação restrita às hipóteses de controvérsia sobre a natureza jurídica de determinados pronunciamentos judiciais, exatamente porque excepciona o princípio da adequação recursal, motivo pelo qual não pode ser aplicado para contornar erros manifestos na interposição de recursos. VI. Apelação não conhecida.
(Acórdão 1436532, 00425364420168070018, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA , 4ª Turma Cível, data de julgamento: 13/7/22, publicado no DJE: 29/7/22.)
Merece relevo, o fato de que o simples erro na denominação do recurso cabível não é suficiente para obstar a análise do seu mérito (2). Podendo-se aplicar, por analogia, o artigo 283, do CPC, à questão.
Além disso, outro ponto interessante diz respeito ao prazo que a parte teria para interpor o recurso em caso de aplicação do princípio da fungibilidade. Seria correto o prazo do recurso correto a ser interposto ou aquele que de fato o foi?
Entendo que, caso haja a aplicação da fungibilidade e o conhecimento do recurso, o prazo da parte não seria o do recurso que deveria ter sido manejado, mas sim o daquele, de fato, manejado.
A meu ver, um único requisito é, ou deveria ser, suficiente para a aplicação do princípio, qual seja a dúvida objetiva e fundada acerca da espécie recursal a ser utilizada.
Esse requisito, por si só, atesta a ausência de má-fé, incidindo em erro escusável, diante da dificuldade no caso concreto, em se definir a espécie de recorribilidade aplicável.
O princípio da fungibilidade recursal tem o propósito de atenuar formalismos exacerbados, com vistas ao provimento final do mérito.
Em outros termos, é a incansável busca pela segurança jurídica advinda da coisa julgada.
Ora, se há razoável dúvida acerca de qual recurso deve ser interposto, e não houve prejuízo as partes, merece ser deixado de lado o respeito estrito ao procedimento e privilegiar a primazia do julgamento do mérito.
Nota-se, não se está aqui a defender a desobediência ao rito processual definido. Apenas a sua flexibilização em casos que a plausibilidade do julgador, além do caso concreto, o requeiram.
Pois bem. Diversas são as hipóteses existentes de fungibilidade recursal, vejamos: apelação e agravo de instrumento, embargos de declaração e agravo interno e recurso especial e recurso extraordinário.
Há a fungibilidade até mesmo em ações que tramitam em primeira instância, como é o caso das ações possessórias, sendo permitido ao juiz outorgar a proteção legal correspondente, cujos pressupostos estejam preenchidos, independentemente de erro na sua interposição.3
O princípio da fungibilidade é umbilicalmente ligado ao princípio processual da instrumentalidade das formas e o da primazia do julgamento do mérito.4
Além disso encontra-se estampado no enunciado 104 do FPPC: “O princípio da fungibilidade recursal é compatível com o NCPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício”.
O objetivo do processo, principalmente sob a sistemática do CPC 2015, é analisar o mérito, proferindo uma decisão final, seja ela positiva ou negativa. Na esfera recursal não é diferente.
Óbices de natureza processual e formalismos exagerados, tendem a serem afastados para que se alcance uma prestação jurisdicional definitiva, privilegiando a coisa julgada formal, e, por consequência, a formação da coisa julgada material.
Ao recorrente, foi relativizado o rigor formal, de caráter eminentemente processual, quando ocorrer a dúvida ou confusão sobre qual recurso interpor.
A título de exemplo, o CPC, nos artigos 1032 e 1033, materializa o princípio da fungibilidade quando permite ao relator de recurso dirigido ao STJ, se entender versar sobre questão constitucional, designar prazo para que o recorrente se manifeste a respeito e demonstre a existência de repercussão geral.
Outrossim, o relator de recurso extraordinário interposto perante o STF, se entender versar a matéria de fundo sobre questão reflexa a ordem constitucional, dependendo o julgamento do recurso de revisão do ordenamento infraconstitucional ou tratado, remeterá os autos ao STJ para adequada análise.
O parágrafo 3°, do artigo 1.024, do CPC, expressamente ressalta que o órgão julgador conhecerá dos embargos de declaração interpostos como agravo interno, caso assim entenda, facultando ao recorrente a complementação de suas razões.
Estes são exemplos da fungibilidade recursal, expressos pelo novo código em razão de ser uma situação corriqueira na prática forense.
O endurecimento dos tribunais, em alguns casos, em não conhecer do recurso em situações de dúvida, causava prejuízo rigoroso a parte, algo que foi em certa medida sanado pelo ordenamento.
Porém, a situação mais corriqueira e controversa diz respeito a fungibilidade entre o agravo de instrumento e a apelação.
Isso se dá em razão de as decisões interlocutórias e as sentenças serem recorrentes nos processos.
Toda sentença é passível de ser recorrida por meio do recurso de apelação, em razão da lei assim prever.
No que diz respeito as decisões interlocutórias, o legislador entendeu por bem tipificar aquelas que podem ser objeto de agravo, com vistas a limitar a interposição em larga escala dessa espécie recursal, desiderato que perdeu força em razão da taxatividade mitigada do rol do artigo 1.015, do CPC, declarada pela Corte Especial do STJ.
A aplicação da fungibilidade recursal entre a apelação e o agravo de instrumento costuma ocorrer, principalmente, pela dificuldade que se vislumbra, em determinados casos, em se classificar a decisão atacada.
Não são poucas as hipóteses concretas nas quais os advogados encontram essa dificuldade.
A título exemplificativo, podemos citas o procedimento especial da ação de exigir contas.
Por se tratar de um procedimento bifásico, primeiramente sendo decidido acerca da necessidade da prestação das contas, via decisão interlocutória de mérito, e na segunda fase acerca da regularidade das contas prestadas, via sentença, entende-se por razoável a dúvida acerca da interposição do recurso cabível contra a primeira decisão.5
Concluindo-se, a aplicação da fungibilidade recursal em hipóteses autorizadas, privilegia-se não só a vontade da parte, que equivocou-se por motivos escusáveis, mas também princípios processuais importantes, levando o recurso a uma análise de mérito que não seria possível em caso de observância de rigorismos formais.
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1 THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Vol. 3. Disponível em: Minha Biblioteca, (54ª edição). Grupo GEN, 2020, p. 814.
2 Recurso Especial n° 1822640.
3 Artigo 554 do CPC.
4 Artigo 6° do CPC.
5 Acórdão 1344006 (TJDFT), 07066595420208070020, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 26/5/2021, publicado no DJE: 14/6/2021