Migalhas de Peso

A geolocalização como fonte de prova no processo do trabalho

Uma análise sobre o uso de dados de geolocalização como auxiliar na solução das lides trabalhistas.

2/9/2022

A evolução das fontes probatórias é uma realidade indiscutível com a transformação do modelo de sociedade do analógico para o digital. As espécies probatórias evoluíram em conformidade com as modificações experimentadas pelas relações sociais pautadas pelo surgimento exponencial de novas tecnologias.

Neste contexto, a criação de instrumentos para geolocalização passou a permitir a definição da localização geográfica de usuários de determinados dispositivos eletrônicos, como os celulares e tablets, através de ferramentas tecnológicas.

São diversas tecnologias utilizadas para a geolocalização, tais como o GPS, que traça a localização do usuário através de posicionamento de satélites, o AGPS, que, além dos satélites, utiliza dados provenientes da angulação de antenas de celulares, o wi-fi, que estabelece a localização de acordo com a proximidade do sinal eletrônico, e a radiofrequência, que utiliza sinal de rádio.

Através de tais mecanismos é possível saber, de forma bastante fidedigna, em quais locais o usuário se encontrava ao longo de determinado período, desde que portando um dispositivo que permita tal rastreamento, como celular, computador, tablet e relógio inteligente.

Diversos aplicativos, inclusive aqueles destinados ao acesso de redes sociais, também possuem ferramentas de rastreamento de localização dos usuários, utilizando-se do acesso à geolocalização, desde que tais funcionalidades sejam autorizadas pelo titular dos dados em seus dispositivos eletrônicos.

Evidentemente, os dados gerados por tais dispositivos de localização são de titularidade da pessoa natural e parte integrante do seu direito à privacidade, tutelado pelo art. 5, inciso X, da Constituição Federal.

Por sua vez, a lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18), que possui como um dos seus fundamentos o respeito à privacidade (art. 2, inciso I), autoriza que a mitigação da proteção e acesso aos dados pessoais dos titulares para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral, nos moldes do seu art. 7, inciso VI.

Vê-se, pois, que a proteção aos dados pessoais, dentre os quais aqueles que são obtidos pela geolocalização, é mitigada quando em confronto com o exercício dos direitos de ação, do contraditório e da ampla defesa, que também possuem natureza constitucional (art. 5, incisos XXXV e LV).

Quando a utilização dos dados é requerida pelo próprio titular, não há maiores discussões, pois está renunciando à privacidade dos dados para fazer comprovação de suas alegações, o que é admitido pelo ordenamento jurídico.

No entanto, quando há requerimento da exposição de dados de geolocalização da parte contrária em litígio, maiores cuidados devem ser observados, devendo o uso de tais informações ser motivado pela inexistência de outros meios de prova hábeis a demonstrar os fatos sem adentrar na esfera privada do indivíduo. Há que se observar a proporcionalidade no deferimento da medida.

O Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) prevê que:

Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.

Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:

  1. fundados indícios da ocorrência do ilícito;
  2. justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e
  3. período ao qual se referem os registros.

Art. 23. Cabe ao juiz tomar as providências necessárias à garantia do sigilo das informações recebidas e à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário, podendo determinar segredo de justiça, inclusive quanto aos pedidos de guarda de registro.

A normativa estabelece, então, que a quebra do sigilo de dados referentes a registros de conexões ou acessos, no que podem ser enquadrados os oriundos da geolocalização, depende de decisão judicial fundamentada em indícios de ilícito, utilidade dos registros como elementos de prova e limitação do período de investigação dos dados.

No âmbito do Processo do Trabalho, o uso de dados de geolocalização pode ser muito proveitoso, tanto na fase de conhecimento quanto no procedimento executivo.

É possível, por exemplo, obter informações precisas acerca dos horários em que o empregado adentrou o estabelecimento do empregador, permitindo aferir a regularidade ou não de registros de jornada.

Da mesma forma, pode-se pensar no uso de dados de geolocalização para demonstração do cometimento de faltas pelo trabalhador. Imagine-se uma situação em que o empregado apresenta atestado médico informando estar acometido de moléstia grave, mas o empregador toma conhecimento de que o empregado estava viajando e em festas no período. A prova de que o trabalhador se encontrava nessas localidades pode ser obtida através de dados de geolocalização.

Ainda, é possível a utilização de tais dados na fase executiva. Na hipótese de ocultação do devedor, por exemplo, os dados de geolocalização poderiam auxiliar o ato de citação pessoal ou, até mesmo, a expedição mais segura de edital citatório pela confirmação de ocultação deliberada para não ser notificado.

Acerca da temática, ainda que em Processo Penal, o Supremo Tribunal Federal reputou a questão como constitucional, estando pendente de solução o RE 130125-0, que definirá os limites e alcance das decisões de quebra de sigilo de tais dados pessoais. Vejamos:

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PROCESSUAL PENAL. QUEBRA DE SIGILO DE DADOS PESSOAIS. REGISTROS DE ACESSO À INTERNET E FORNECIMENTO DE IP. DECISÃO GENÉRICA. NÃO INDICAÇÃO DE PARÂMETROS MÍNIMOS PARA IDENTIFICAÇÃO DOS USUÁRIOS. NÃO DELIMITAÇÃO, ADEMAIS, DO ESPAÇO TERRITORIAL EM QUE VEICULADA A ORDEM. PROTEÇÃO À INTIMIDADE E AO SIGILO DE DADOS (ART. 5, X e XII, CF). QUESTÃO CONSTITUCIONAL. POTENCIAL MULTIPLICADOR DA CONTROVÉRSIA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Possui índole constitucional e repercussão geral a controvérsia relativa aos limites e ao alcance de decisões judiciais de quebra de sigilo de dados pessoais, nas quais determinado o fornecimento de registros de acesso à internet e de IPs (internet protocol address), circunscritos a um lapso temporal demarcado, sem, contudo, a indicação de qualquer elemento concreto apto a identificar os usuários. 2. Repercussão geral reconhecida. (RE 1301250 RG, Relatora: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 27/5/21, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-108 DIVULG 7-6-21 PUBLIC 8-6-21)

Na seara laboral, os Tribunais Regionais têm se mostrado claudicantes no deferimento da utilização de tal ferramenta para instrução processual, mormente por considerar que se caracteriza como uma forte interferência na privacidade do trabalhador. Neste sentido, colaciona-se a jurisprudência dos Tribunais Regionais da 1ª, 2ª, 3ª e 4ª Regiões:

AUSÊNCIA DE NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DA PRODUÇÃO DE PROVAS DIGITAIS. GEOLOCALIZAÇÃO. LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD). O conjunto probatório constante dos autos já se demonstrou suficientemente apto ao deslinde do feito, inclusive no tocante à discussão relacionada à jornada de trabalho e às horas extras. Desse modo, o indeferimento da produção de provas digitais não cerceou o direito de defesa do réu. Ademais, a geolocalização do aparelho celular particular da reclamante apresentaria, quando muito, apenas um indício de seu paradeiro, sendo inviável presumir, de forma absoluta, que a obreira sempre estivesse com seu celular nos momentos em que se encontrava trabalhando em benefício do reclamado, sobretudo porque não se tratava de telefone móvel corporativo. Não se pode olvidar, por fim, do direito fundamental à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais (art. 5, LXXIX, da CF/88, recentemente acrescido pela Emenda Constitucional 115/22), bem como do respeito à privacidade e à intimidade como fundamento da proteção dos referidos dados (art. 2, I e IV, da lei 13.709/18 - LGPD). Preliminar rejeitada. (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região; Processo: 1000892-21.2020.5.02.0385; Órgão Julgador: 8ª Turma; Relator: Marcos Cesar Amador Alves; Data: 21-7-22)

DADOS DE GEOLOCALIZAÇÃO. REQUISIÇÃO. OFENSA AO DIREITO AO SIGILO TELEMÁTICO E À PRIVACIDADE. Embora a prova digital da geolocalização possa ser admitida em determinados casos, ofende direito líquido e certo ao sigilo telemático e à privacidade, a decisão que determina a requisição de dados sobre horários, lugares, posições da impetrante, durante largo período de tempo, vinte e quatro horas por dia, com o objetivo de suprir prova da jornada a qual deveria ser trazida aos autos pela empresa. Inteligência dos incisos X e XII do art. 5º da CR. (Tribunal Regional da 3ª Região; Processo: 0011155-59.2021.5.03.0000; Órgão Julgador: 1ª Seção de Dissídios Individuais; Relator: Marco Antonio Paulinelli Carvalho; DJ 4/11/21)   

MANDADO DE SEGURANÇA. DECRETAÇÃO DE QUEBRA DE SIGILOS TELEFÔNICO E TELEMÁTICO PARA FORNECIMENTO DE DADOS E DE REGISTROS DE GEOLOCALIZAÇÃO DO IMPETRANTE PARA FINS DE INSTRUÇÃO PROCESSUAL. ILEGALIDADE. Padece de ilegalidade a decisão judicial que decretou a quebra de sigilos do impetrante e determinou a requisição às operadoras de telefonia e aos provedores de "internet" o fornecimento de dados e de registros telefônicos e telemáticos, relativos a determinado período. Embora os direitos e as garantias fundamentais não possuam caráter absoluto, a decretação de quebra de sigilos, na amplitude com que foi determinada pela autoridade coatora, configurou violação do direito à intimidade e da garantia de inviolabilidade da comunicação, de patamar constitucional (CF, art. 5º, incisos X e XII). Constatado que a quebra de sigilos ocorreu após ter sido produzida prova documental e depois de terem sido colhidos depoimentos das partes e de quatro testemunhas, que tratam da matéria controvertida. Ponderado que, conquanto o magistrado detenha poderes instrutórios (CLT, art. 765), os quais também não possuem caráter definitivo, as diligências que, de ofício, foram determinadas não estão adequadas às circunstâncias fáticas do caso concreto, pois há substrato fático com base no qual a controvérsia pode ser solucionada, prevendo o ordenamento jurídico critérios de julgamento para casos em que a prova não esclarece suficientemente as alegações das partes (CLT, art. 818; CPC, art. 373). Reconhecido que o ato judicial atacado revela-se desproporcional, não tendo sido sopesados os bens jurídicos colidentes e protegidos pela norma constitucional. A possibilidade de dirimir a questão controvertida e de influenciar na formação do convencimento do magistrado são fatores que, frente ao conjunto probatório já coligido ao feito principal, não justificam o afastamento de direitos e garantias fundamentais do impetrante. Particularidades deste caso concreto a demonstrar que a decretação de quebra de sigilos telefônico e telemático do impetrante para obtenção de dados de geolocalização para fins de instrução processual não foi medida necessária, adequada nem proporcional. Presente, ainda, o comprometimento da garantia à razoável duração do processo (CF, art. 5, LXXVIII), sobretudo em razão da grande quantidade de informações requisitadas e da dificuldade no tratamento delas. Segurança concedida. (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região; Órgão Julgador: 1ª Seção de Dissídios Individuais; Processo: 0022381-34.2021.5.04.0000; Relatora: Desembargadora Angela Rosi Almeida Chapper; DJ 22/3/22)

RECURSO ORDINÁRIO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. GEOLOCALIZAÇÃO. INDEFERIMENTO DE OFÍCIOS REQUERIDOS PELO EMPREGADOR. Correta a decisão que indefere o requerimento empresarial de expedição de ofício às empresas Google, Facebook, Twitter e Apple a fim de comprovar a jornada contratual do reclamante. A prova a ser produzida no âmbito do processo do trabalho refere-se exclusivamente aos aspectos relacionados ao modo da prestação laboral e ocorrência do contrato de trabalho, em seus limites, não podendo extrapolar para investigação irrazoável e desproporcional sobre aspectos da vida da pessoa humana. O devido processo legal se amolda à preservação dos direitos de privacidade e à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, direitos fundamentais de todas as pessoas humanas, assegurados pelos incisos XX, XII e LXXIX do art. 5 da Constituição da República Federativa do Brasil, que asseguram a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da imagem das pessoas. Consoante Art. 74 da CLT é atribuição do empregador - facultativa em casos de estabelecimentos com menos de 20 empregados e obrigatória ultrapassado este limite - o controle da jornada, constituindo-se em prática abusiva a coleta de dados de pessoas humanas em meios digitais, que invadem a esfera de proteção pessoal dos dados individuais, para demonstrar os horários de trabalho que por vontade própria o empregador não controlou durante a execução contratual. Cerceio de defesa não configurado. Preliminar rejeitada. (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região; Processo  0100087-40.2017.5.01.0284; Relatora: Sayonara Grillo Coutinho; DJ 1/6/22)

Dos entendimentos jurisprudenciais colacionados, extrai-se que os Tribunais têm admitido o acesso a dados de geolocalização apenas em situações excepcionais e restritas.

Alguns dos fundamentos para as negativas de diligências para obtenção de geolocalização são a invasão excessiva da privacidade do trabalhador, a impossibilidade de aferir com exatidão quem estava portando o dispositivo eletrônico no horário indicado, a vastidão dos dados acessados e, ainda, a impossibilidade de transmitir ao obreiro o encargo de documentação de jornada, que, nos termos do art. 74 da CLT.

E não sem razão, já que o acesso a tais dados pode ocasionar inúmeros malefícios ao trabalhador. Imagine-se o caso de acesso integral de dados de localização de um trabalhador casado que acabam nas mãos do cônjuge e indicam a existência de um caso extraconjugal. Pode-se pensar em inúmeras situações em que o acesso de terceiros a estes dados seria constrangedor para o seu titular.

Evidentemente, não se nega a importância da geolocalização como fonte probatória no Direito Processual do Trabalho (assim como em outros ramos do Direito). No entanto, faz-se imperiosa a fixação de critérios na doutrina e na jurisprudência para permitir que os operadores do Direito materializem a quebra de sigilo de dados de geolocalização, evitando que a questão seja permeada pela insegurança jurídica.

Propõe-se, então, com base na leitura jurisprudencial, que se utilizem os seguintes critérios para análise dos requerimentos de quebra do sigilo destes dados: o uso excepcional de tal fonte probatória, atentando-se a proporcionalidade da medida; a limitação do acesso da geolocalização em período reduzido, utilizando-se a técnica da amostragem; a restrição do acesso a dados nos horários ou situações indicados pelas partes; e a imposição de sigilo em tais documentos.

Assim, parece ser possível o uso dessa nova tecnologia como fonte probatória, sem sacrifício do direito à privacidade do trabalhador.

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BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: Acesso em: 23/11/2020.

Lei 12965/14. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 28/07/2022.

Lei 13709/18. Disponível em: Acesso em: 28/06/2022.

Superior Tribunal Federal. RE 1301250 RG, Relatora: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-108 DIVULG 07-06-2021 PUBLIC 08-06-2021.

Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região; Processo nº 0100087-40.2017.5.01.0284; Relatora: Sayonara Grillo Coutinho; DJ 01/06/2022.

Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região; Processo: 1000892-21.2020.5.02.0385; Órgão Julgador: 8ª Turma; Relator: Marcos Cesar Amador Alves; Data: 21-07-2022

Tribunal Regional da 3ª Região; Processo: 0011155-59.2021.5.03.0000; Órgão Julgador: 1ª Seção de Dissídios Individuais; Relator: Marco Antonio Paulinelli Carvalho; DJ 04/11/2021.

Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região; Órgão Julgador: 1ª Seção de Dissídios Individuais; Processo: 0022381-34.2021.5.04.0000; Relatora: Desembargadora Angela Rosi Almeida Chapper; DJ 22/03/2022.

Quésia Falcão de Dutra
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Pós-graduada em Prevenção e Combate à Corrupção pelo CERS / Estácio de Sá. Analista Judiciária no TRT da 2ª Região.

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