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A prescrição e o vencimento antecipado de parcelas: a necessidade de superação de entendimento pelo STJ

É preciso refletir e superar o entendimento prevalecente do STJ sobre a prescrição para cessar a criação de aberrações jurídicas e decisões contrárias à lei, caminhando assim em direção à segurança jurídica e a paz social.

28/7/2022

A prescrição é um dos mais importantes institutos do Direito, sendo matéria tão relevante que é aplicável a todas as áreas do ordenamento jurídico, seja cível, criminal, trabalhista, administrativo, previdenciário etc.

Não é sem motivos. A prescrição é o instituto do Direito que limita o poder do Estado, mais especificamente do Poder Judiciário, de exercer uma de suas funções primordiais: a jurisdição.

Por se tratar de uma limitação ao direito do Estado de jurisdicionar, a prescrição alcança o direito de ação, mas deixa intacto o direito material, e justamente por essa razão se trata de uma matéria que ordenamento jurídico tomou maiores cuidados para a definição de prazos, competências e preservação da segurança jurídica e da paz social.

No caso específico do Direito Civil, o cuidado para se gerar maior segurança jurídica ficou bem claro quando o legislador estabeleceu, no art. 192 do Código Civil, a seguinte previsão:

“Art. 192. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes.”

Naturalmente que, em um cenário onde as relações privadas corriqueiramente são reguladas por contratos, acordos e instrumentos particulares, o legislador quis manter o assunto da prescrição fora do alcance da autorregulação.

Ainda que seja um instituto do direito extremamente rico em fontes, seja por legislação, jurisprudências ou debates doutrinários, várias discussões surgem quando o assunto é aplicar a prescrição em situações menos óbvias.

Uma dessas situações é quando as partes de uma relação jurídica estabelecem obrigações sucessivas de pagamento. Nesse caso, surge-se uma discussão de quando se inicia o prazo prescricional, que é relevante para o debate que trataremos mais à frente.

O cenário pode ficar ainda mais complicado quando as partes de uma relação jurídica estabelecem por contrato o parcelamento de uma dívida e constam do instrumento uma cláusula de vencimento antecipado da dívida.

Com essa previsão, caso o devedor fique inadimplente com apenas uma das parcelas, nasce para o credor o direito de cobrar todas as demais parcelas previstas na relação jurídica, inclusive aquelas vincendas.

Novamente surge-se a dúvida: nessa situação, qual o marco de início da contagem do prazo prescricional? Na data originalmente prevista para cada parcela separadamente? Na data de assinatura do instrumento? Na data do vencimento da última parcela? Ou na data do inadimplemento?

O polêmico debate foi solucionado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que consolidou jurisprudência no sentido de o marco do início da prescrição em caso de existência de cláusula de vencimento antecipado das parcelas pela inadimplência ser o vencimento da última parcela originalmente prevista.

Pelo que se pode apurar, por exemplo, do julgamento do REsp 1523661/SE, julgado em 26/6/18 pela Terceira Turma da Corte Superior, o fundamento para se considerar o marco inicial do prazo prescricional como sendo o vencimento da última prestação é a proteção ao credor.

Segundo o entendimento predominante do STJ, o vencimento antecipado da dívida é uma faculdade do credor e não uma obrigação. Por essa razão, o credor pode renunciar ao direito que teria ao vencimento antecipado de todas as parcelas e continuar exigindo cada prestação pela data contratualmente estabelecida, com a finalidade de proteger a relação comercial, por exemplo.

Por ser uma opção do credor e não uma imposição, o entendimento que predominou no STJ é que deve se prevalecer o prazo prescricional originalmente estabelecido, protegendo assim o credor e o deixando livre para escolher se irá se valer ou não do benefício contratualmente estabelecido.

É com a devida venia que proponho uma reflexão sobre o entendimento, visto que ele contraria texto expresso de lei e cria ainda uma aberração jurídica que não deveria existir.

Isso porque o Brasil adotou a teoria fundamental da actio nata, prevista expressamente no art. 189 do Código Civil, que determina que o prazo prescricional se inicia com o direito de o credor exigir o cumprimento daquela obrigação, seja pela via judicial ou extrajudicial. Veja-se como dispôs o Código Civil:

“Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”

O ordenamento jurídico é claro, portanto, ao estabelecer que o prazo prescricional se inicia quando o direito é violado e passa a ser exigível, prazo este que, por força do art. 192 já mencionado acima, não pode ser alterado por acordo entre as partes.

O vencimento antecipado de todas as parcelas faz com que, no exato momento da inadimplência, a integralidade da dívida seja exigível, nascendo a pretensão para o titular.

Se o STJ entende que o prazo prescricional não está em tramite apesar de a dívida ser exigível, cria-se, consequentemente, uma prorrogação do prazo prescricional, uma vez que teria acrescido aos prazos previstos nos arts. 205 e 206 do Código Civil, um “limbo” existente entre o período em que a totalidade da dívida passou a ser exigível e o vencimento da última parcela do acordo.

Cria-se, dessa forma, uma aberração jurídica que peço aqui permissão para fazer uma curiosa analogia: o período compreendido entre a inadimplência e o vencimento da última parcela funciona como a teoria que foi denominada de “Gato de Schrödinger”.

O prazo prescricional, de forma semelhante ao nosso felino utilizado como metáfora pela Mecânica Quântica, está e não está em curso simultaneamente, o que dependeria de a vontade do credor exigir o direito que, por força de contrato, dispõe.

Por mais que seja louvável a intenção da maioria dos ministros do STJ de proteger o credor e sua faculdade contratual, não se pode permitir a criação de uma anomalia jurídica como a citada acima, em que não é possível justificar como o credor pode exigir o pagamento de um débito antes do início do prazo prescricional ou permitir uma dilatação do prazo prescricional por acordo entre as partes, violando frontalmente a lei federal.

O precedente do STJ anteriormente mencionado (REsp 1523661/SE), não sem razão, não foi um julgamento unânime.

Conforme bem detalhou o Ministro Relator do recurso, Dr. Paulo de Tarso Sanseverino, um dos votos vencidos no julgamento, a finalidade do instituto da prescrição é a pacificação social, sendo que as escolhas dos prazos estabelecidos pelo Código Civil não são à toa e não visam proteger a pessoa inadimplente, mas sim aquela que efetivamente cumpriu com suas obrigações e, em razão do transcurso do tempo, não tem mais como provar.

Ao se considerar o início do prazo prescricional com o vencimento da última prestação, surge a possibilidade de uma pessoa ter que se defender da cobrança de um pagamento que realizou há décadas.

Se uma pessoa adimplente é cobrada das primeiras parcelas de um financiamento parcelado ao longo de trinta anos, por exemplo, ela poderia precisar guardar os comprovantes de pagamento de todas as parcelas por mais de trinta e cinco anos, o que fica ainda mais grave quando percebemos as mudanças constantes nos meios de pagamento, ordinariamente evoluídos com o avanço da tecnologia.

O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir contra texto expresso de lei para proteger o direito à faculdade do credor se valer de um direito contratualmente assegurado, atua na contramão da pacificação social e da segurança jurídica.

Não devemos tratar o detentor de um direito como uma pessoa incapaz de tomar suas próprias escolhas e de arcar com os ônus e bônus de suas decisões, especialmente quando essa pessoa teve o prazo de pelo menos cinco anos para decidir entre buscar a tutela jurisdicional ou preservar sua relação comercial.

Por essas razões digo que se deve superar o entendimento do STJ a respeito da contagem do prazo prescricional com a ocorrência do vencimento antecipado das parcelas, que deve começar nos tribunais superiores e deve também ser aplicado nos tribunais regionais, que corriqueiramente aplicam o entendimento majoritário da Corte Superior sem maiores reflexões.

É seguindo as disposições expressas da lei federal e compreendendo melhor as evoluções da sociedade que alcançaremos a melhor segurança jurídica e a paz social.

Fernando da Cunha Pereira
Sócio e advogado cível do Cunha Pereira e Massara Advogados Associados.

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