A todo instante consumidores do Brasil inteiro são submetidos a tentativas de golpes financeiros que ocorrem das mais variadas formas. Neste artigo, trataremos sobre o “golpe do cartão trocado”, fornecendo diretrizes concretas que podem ser adotadas pelos consumidores que foram vítimas desta fraude. Em suma, trata-se de artifício astucioso empregado por estelionatários que se camuflam como vendedores ambulantes à espera de uma oportunidade para fraudar suas vítimas.
Na hora de pagar pela mercadoria adquirida, quando o cliente está distraído, o fraudador observa a senha que foi digitada na maquineta e sorrateiramente troca o cartão do consumidor por cartão de terceiro, muitas vezes da mesma bandeira e banco. Há relatos de que integrantes da quadrilha criam uma distração na rua para desviar a atenção da vítima enquanto o golpe é perpetrado (p. ex., inicia-se uma discussão, uma briga, alguém tropeça e cai no meio da multidão etc.). Tais expedientes dificultam ou impossibilitam que a vítima se dê conta do golpe imediatamente.
Em posse do cartão e senha, rapidamente os estelionatários realizam diversas transações financeiras para extrair o máximo de dinheiro possível da conta bancária do consumidor, antes que ocorra o bloqueio do plástico ou que a vítima tenha chance de perceber o ocorrido e ligue para o banco para cancelar o cartão.
Obviamente, o modus operandi dos estelionatários não é único e golpe pode variar caso a caso. Aliás, quando o cliente tem habilitada a função de “pagar por aproximação”, os fraudadores sequer precisam descobrir a senha para implementar o golpe, bastando trocar os cartões das vítimas, em um momento de desatenção.
Frequentemente, quando os clientes descobrem que tiveram seus cartões trocados, já é tarde demais, pois houve concretização de uma série de transações fraudulentas, resultando em prejuízo astronômico. Em situações como estas, as instituições financeiras possuem alguma responsabilidade? E é possível ao consumidor recuperar o que foi perdido? Ambas as indagações serão respondidas abaixo, como base em elementos jurídicos.
Pois bem. É certo que os bancos não podem ser responsabilizados pela guarda do cartão e senha, atribuição que compete exclusivamente ao consumidor. Todavia, se isto é verdade, também é inegável que as instituições financeiras têm o dever de zelar pela segurança da conta bancária dos clientes e dos fundos lá depositados1.
Neste panorama, quando as transações fraudulentas são destoantes do perfil de consumo habitual do correntista, é dever do banco bloquear preventivamente as operações, até que se possa verificar mais detidamente a autenticidade das mesmas diretamente com o cliente, seja por telefone, e-mail, SMS, biometria, autenticação via aplicativo etc.
Ademais, é fato que neste tipo de golpe, as transações ilegítimas costumam ocorrer de maneira sequencial, no mesmo estabelecimento (provavelmente se trata de empresa fantasma cuja conta bancária é destinada a receptar o produto do crime), em intervalo de poucos minutos e movimentando elevadas quantias. Tal padrão deveria ser imediatamente identificado pelo sistema de segurança dos bancos, pois a experiência demonstra que o homem médio não costuma gastar altas quantias no mesmo estabelecimento, com intervalo de poucos minutos ou segundos entre cada transação.
E se os bancos não têm um sistema de segurança capaz de detectar este tipo de anomalia na conta do cliente, caracteriza-se aí um defeito do serviço bancário. Nos dizeres de VENOSA, “o serviço é defeituoso quando não fornece segurança para o consumidor”2.
O defeito se configura quando o banco não detecta e bloqueia transações de perfil fraudulento (p. ex., operações, sequenciais, de valor elevado, em curto lapso temporal e geralmente no mesmo estabelecimento). Certamente não se pode transferir aos consumidores os prejuízos da não implementação de um sistema de segurança eficaz3.
Ora, se as casas bancárias – que auferem lucros bilionários anualmente – não compartilham com os consumidores tais ganhos, é patente que também não podem a eles transferir os riscos inerentes à sua atividade empresarial (p. ex., fraudes).
Na hipótese aqui tratada, a responsabilidade do fornecedor de serviços bancários incide na modalidade objetiva, isto é, independe de culpa4. Com efeito, o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) prescreve:
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - O modo de seu fornecimento;
II - O resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - A época em que foi fornecido.”
Registre-se que o Superior Tribunal de Justiça pacificou que “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras” (Súmula 297) e que “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.” (Súmula 479).
Nesta linha de raciocínio, as fraudes bancárias consistem em risco inerente à atividade empresarial exercida pelos bancos, cuja responsabilidade não podem se esquivar, pois se trata de fortuito interno. Sobre o tema, TEPEDINO ensina:
“Nesse cenário, e considerando que, na sociedade cada vez mais complexa e industrializada, os danos “devem acontecer”, cunhou o conceito de caso fortuito interno, assim entendido o evento que se liga à pessoa ou à organização da empresa, ou seja, aos riscos da atividade desenvolvida pelo agente, e incapaz de exonerá-lo. Afinal, cuida-se de fatos que, embora fortuitos, se encontram contidos no âmbito da atividade em cujo desenvolvimento deu-se o dano. Passou-se, assim, a entender que os danos decorrentes dos eventos relacionados à pessoa ou à empresa do agente se conectam a ela por nexo de causalidade e deveriam por ela ser evitados, razão pela qual deve por eles responder”.5
E ainda que possa ter havido descuido por parte do correntista, tal fato não exime as instituições financeiras de zelar pela higidez da conta bancária de seus clientes. Sobre este tema, GONÇALVES leciona que “só se admite como causa exonerativa da responsabilidade a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros, não a culpa concorrente”6.
Em outras palavras, havendo culpas concorrentes (incúria do consumidor na guarda do cartão e falha do banco em não detectar e bloquear transações fraudulentas), persiste a responsabilidade integral da instituição financeira, que não se pode valer da excludente prevista no art. 14, § 3º, II, do CDC.
Em termos concretos, registra-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo tem reconhecido a tese esposada neste artigo, embora o entendimento não seja unânime. Confira-se:
“Indenização – Movimentações bancárias não reconhecidas pelo correntista – "Golpe do cartão trocado" – Aplicação da teoria do risco da atividade – Responsabilidade objetiva – Dano material configurado, eis que as transações fogem totalmente ao perfil de consumo do cliente – Dano moral evidenciado – Dever de indenizar inafastável – Cancelamento das compras realizadas no cartão de crédito – Sentença reformada – Recurso provido.”7
Aos consumidores que foram vítimas deste golpe, recomenda-se em primeiro lugar o bloqueio do cartão fraudado e lavratura de boletim de ocorrência. Na sequência, com o boletim em mãos, o ideal é formalizar contestação administrativa perante o banco responsável pelo cartão, objetivando-se uma solução amigável para o problema. Havendo negativa do banco em ressarcir o prejuízo, a vítima poderá contratar um advogado especialista em fraudes bancárias para buscar indenização pela via judicial.
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1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil, v. 7. 35ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 424.
2 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: obrigações e responsabilidade civil, v. 2. 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 550.
3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade civil. 11ª Ed., São Paulo: Atlas, 2014, pp. 544/545.
4 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil, v. 4. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pp. 279/280.
5 TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil, v. 4. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 110.
6 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil, v. 4. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p.318.
7 TJ/SP. Apelação Cível nº 1052382-80.2019.8.26.0100, Des. Rel. Souza Lopes, j. em 22.01.2021.