A teoria da violação positiva do contrato encontra raízes no direito alemão que, na falta de regulação da quebra de deveres diversos do tempo e lugar – elementos tradicionalmente albergados pelo conceito de mora – fez surgir através de construção doutrinária espécie diversa de incumprimento. A ideia tradicional de mora não previa qualquer descumprimento decorrente do modo de cumprir tanto na ação quanto na omissão das condutas dos participantes do negócio.
O primeiro a apontar tal lacuna foi Hermann Staub que, em 1902, alcunhou o termo ‘violações positivas do contrato’ nas suas “Das violações positivas do contrato e suas consequências jurídicas” (Über die positiven Vertragsverletzugen und ihre Rechtsfolgen).
Verificou Staub que o Código Civil alemão somente previa situações em que o devedor causa prejuízos ao credor em razão de uma omissão, um não fazer, uma ‘violação negativa’. Mas deixou de prever consequências para aquelas situações em que “por meio de uma conduta positiva do devedor, vale dizer, ele atua, quando deveria se omitir” decorre prejuízo à contraparte. Daí o nome violação positiva.
A partir da publicação de Staub a teoria tomou lugar na jurisprudência e doutrina alemãs que ampliaram as hipóteses de incidência da teoria para além do âmbito estritamente contratual, além de atribuir condutas não somente positivas (um fazer), mas também as negativas (não fazer), inobservando os demais deveres.
A violação positiva do contrato surge, portanto, em ordenamento que o conceito tradicional de mora foi insuficiente para conter todas as condutas capazes de gerar prejuízo à contraparte, limitando o dever de indenizar somente aos casos do prazo e local da prestação.
Por tal insuficiência, é dizer-se, se refere à tese de que a mora, no direito alemão, berço da categoria jurídica da Violação Positiva do Contrato, restringe-se ao atraso no cumprimento das obrigações contratuais.
Em terreno distante do germânico, o mero tracejo a respeito da definição da violação positiva do contrato passa pela adoção de balizas antepostas, principalmente no que concerne à própria visão sobre o vínculo obrigacional e dos deveres anexos dos sujeitos nas relações contratuais.
Ora, não se pode mais enxergar a obrigação somente como aquilo que as partes convencionaram. Há, por trás da convenção, um pano de fundo sociológico, filosófico e econômico, que influencia no seu desenrolar.
O vínculo obrigacional, portanto, é mais complexo no plano subjetivo e material do que a simples abstração fria da convenção privada. Anderson Schreiber leciona que “[...] a relação obrigacional deve ser estudada como um processo, um conjunto de atos e atividades que se movimentam em direção a determinado fim econômico e social”.
Ladeada à visão do vínculo obrigacional complexo está a concepção dos deveres anexos dos sujeitos nas relações contratuais. Evidencia-se pela compreensão de que o contrato faz lei entre as partes, mas os deveres que as normas heterogêneas (e.g. código civil e código de defesa do consumidor) impõem obrigam igualmente e devem ser observados.
Há quem inclua (acertadamente), entre os deveres anexos ou laterais, a boa-fé objetiva, que deve ser observada, ainda que sem previsão contratual.
Postas as balizas, resta perquirir como a doutrina e a jurisprudência enxergam a definição da violação positiva do contrato no direito brasileiro.
Para o professor catarinense Rafael Peteffi “apenas a quebra daqueles deveres laterais provenientes exclusivamente do princípio da boa-fé, não guardando relação com a tipicidade da prestação principal, caracterizam-se como violação positiva do contrato, com especial destaque para os deveres de proteção”.
A este respeito, dispõe, ainda, a Profª Judith Martins-Costa e o Prof. Mário Júlio Almeida Costa, que a boa-fé objetiva se divide em deveres laterais ou anexos de conduta e que estes são, exemplificativamente, no direito brasileiro, “(a) deveres de cuidado, providência e segurança; (b) deveres de aviso e esclarecimento; (c) deveres de informação; (d) dever de prestar contas; (e) deveres de colaboração e cooperação; (f) deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; (g) deveres de omissão e de segredo”.
Nosso ordenamento, aliás, é silente sobre a categoria de inadimplemento que deve ser encaixada a quebra dos deveres anexos, daí porque a doutrina, diga-se, resolveu colocar tal hipótese como a mais plausível de aplicação da violação positiva em terras tupiniquins.
Importante mencionar, nesse ponto, o Enunciado nº 24 do Conselho da Justiça Federal o qual verbera que “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
A jurisprudência majoritária segue a mesma linha, considerando a violação positiva como quebra de um dever anexo ou lateral. Veja-se entendimento do STJ, de relatoria da Min. Maria Isabel Gallotti, em 2015:
“Da boa-fé objetiva contratual derivam os chamados deveres anexos ou laterais, entre os quais o dever de informação, colaboração e cooperação. A inobservância desses deveres gera a violação positiva do contrato e sua consequente reparação civil, independente de culpa.” (AREsp 262.823, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29/04/2015)
Ainda, ao apreciar um caso em que a demandante buscava o reconhecimento da inexigibilidade da obrigação de pagar por produtos falsificados que foram fornecidos pela demandada, o Tribunal de Justiça de São Paulo (Ap. nº 1001232-03.2015.8.26.0132) deu parcial provimento ao apelo, baseando-se na clara violação positiva do contrato por parte da apelada, que atentou contra a boa-fé na relação obrigacional.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (Ap. nº 0708097-91.2019.8.07.0007) em julgamento de apelação interposta por segurada de plano de saúde suplementar, considerou que a apelante, ao omitir doença pré-existente, violou o dever anexo da boa-fé, e, consequentemente, o próprio contrato.
Vê-se, assim, que o conceito staubiano de violação positiva do contrato não é importado de forma original para o nosso ordenamento, dadas as suas características próprias.
Em uma segunda visão, ao se debruçar no estudo do instituto da mora no Direito Brasileiro é possível se deparar com uma série de pressupostos e divergências acerca de seu significado que possui fonte no Código Civil de 2002, mas que é discutida de forma abrangente apenas na doutrina e jurisprudência.
Como pilar da obrigação, o Código Civil traz a boa-fé objetiva em seu artigo 422 e a partir de então os juristas se unem para configurar um conceito extensivo da mora que parte desse princípio. No entanto, logo é possível observar que tal configuração não é pacífica e que a existência de outros ordenamentos jurídicos pode influenciá-la.
A doutrina brasileira definiu pressupostos essenciais para a determinação da mora na obrigação que se distinguem significativamente daquele formado em terreno europeu, que se atém somente ao tempo, estendendo-se também ao modo e lugar.
Tal é a previsão disposta junto ao art. 394 do Código Civil de 2002, que assim dispõe sobre a conceituação de mora:
“Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.” (Grifo nosso).
Verifica-se, desta forma, que inegociavelmente o conceito de mora no Direito Brasileiro prevê o lugar e a forma do cumprimento da prestação como elementos de sua configuração, que depende, ainda de alguns pressupostos para sua configuração, se tratando dos requisitos específicos da mora:
Tais pressupostos podem ser elencados em suma como: (i) exigibilidade da prestação; (ii) utilidade do cumprimento da prestação ao credor e (iii) culpa do devedor.
A exigibilidade da prestação está para além da sua simples existência, é necessário que o credor possa exigi-la, que a mesma seja ainda passível de cumprimento mesmo após o atraso, como no caso das obrigações fungíveis, aquelas que podem ser substituídas (mora ex re). Caso contrário, se tal exigibilidade não puder se sustentar ou se por acaso ainda não estiver vencida, em hipótese de termo definido ou inexistência de termo, deverá haver a interpelação do devedor e a sua recusa explícita ao cumprimento (mora ex persona), tendo em vista que se não observado esse pressuposto e seus derivados estaria-se diante de um inadimplemento absoluto e não de mora.
Ainda nesse viés, a utilidade ao credor é pressuposto também imprescindível para a caracterização do conceito. Se o cumprimento ocorrer de forma, tempo ou lugar diferentes do expresso na lei ou na convenção e não for mais aproveitável, não há que se falar mais em mora e sim novamente em inadimplemento absoluto capaz de gerar perdas e danos, resolvendo o contrato.
Pondo um fim aos requisitos principais da mora extensiva do direito brasileiro, a culpa do devedor diz respeito ao fato de o descumprimento poder ser imputado ao mesmo. Aqui não há que se fazer prova de culpa, ou análise de nexo causal, visto que a responsabilidade ensejada é objetiva – a não ser que sobre o fato concreto recaia algumas das excludentes de exigibilidade previstas no ordenamento.
Assim, se houver a inobservância de alguma das prestações de responsabilidade do devedor, poderá haver a configuração da mora.
É neste contexto que se busca expor a prescindibilidade da categoria jurídica da violação positiva do contrato ao Direito Brasileiro, visto que, conforme expõe o Professor Gustavo Kratz Gazalle, em sua dissertação de mestrado junto à UFRGS:
“Com efeito, não é razoável que se introduzam novos conceitos ou categorias jurídicas em um sistema, quando o próprio já oferece soluções legais e lógicas a uma situação concreta. Pois necessário incutir novos paradigmas, fazer novas interpretações (muitas vezes forçadas) e criar nova mentalidade acadêmica e jurisprudencial, o que, em si, é virtude; mas, em se tratando da noção de mora, bem regrada e desenvolvida no direito brasileiro, uma inócua inovação só vem trazer mais dificuldade no tratamento de um tema já tão controvertido.”
A disposição proposta acima expõe em um contexto segundo o qual a incorporação da violação positiva do contrato ao direito brasileiro se dá em um contexto onde já há endereçamento legal para situações de “adimplemento insatisfatório”, nas palavras de Pontes de Miranda.
Isso porque, conforme já mencionado, o Código Civil prevê a mora como elemento de inadimplemento parcial relativo ao tempo, modo e lugar previstos no contrato.
Verifica-se que os partidários da incorporação da violação positiva do contrato o fazem pela superveniência de situações onde, fundamentalmente (mas não só) ocorre: (i) cumprimento imperfeito da obrigação; (ii) descumprimento dos deveres anexos à boa-fé objetiva.
Em ambas situações, o conceito extensivo de mora no Direito Brasileiro dá conta suficientemente de endereçar tais situações, visto que o cumprimento imperfeito da obrigação – ainda que este cumprimento imperfeito não diga respeito ao elemento tempo da configuração morosa – ora dirá respeito ao modo, ora ao local de cumprimento da obrigação.
Já no que se refere ao descumprimento dos deveres anexos à boa-fé objetiva, com base nos entendimentos do Professor Clóvis do Couto e Silva, restou claro que hodiernamente as relações obrigacionais se dão em modelo processual, visto que às partes não interessam tão somente a prestação principal do contrato, mas as acessórias e, ainda, as laterais (decorrentes da boa-fé objetiva).
De igual forma ao cumprimento imperfeito da obrigação, a violação aos deveres anexos à boa-fé objetiva se trata, de forma clara, de um modo distinto de cumprimento da obrigação com relação ao proposto (ou esperado) pelas partes, pelo que o remédio legal para situações deste tipo, tendo em vista o conceito extensivo da mora no Direito Brasileiro, seria o art. 394 do CC.
A despeito de todo o exposto, e, ao ver desses autores, contra legem, adota-se, por diversas vezes, a violação positiva do contrato como efeito jurídico das espécies de adimplemento insatisfatório.
De forma alguma, busca-se negar as contribuições ao Direito Privado decorrente da violação positiva do contrato, especialmente no que se refere aos estudos e pesquisas atinentes ao Direito Comparado. Entretanto, a realidade bem sucedida de outros Estados não necessariamente se traduz em sucesso e, tampouco, em aplicabilidade em outros locais, de maneira tal que, no Direito Brasileiro há remédio para as situações para as quais se encarregou a violação positiva do contrato, em um cenário de conceituação restritiva da mora, o que definitivamente não ocorre no Brasil, senão sob supressão da noção sistêmica do Direito Privado construída internamente.
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