Antes, porém, de falarmos sobre a xenofobia regional ou interna, vamos entender o que é a xenofobia propriamente dita, ou seja, aquela que tem aversão ao estrangeiro. Neste passo, temos que a xenofobia é a exteriorização de um sentimento perverso e, às vezes, odioso em relação àquele que é estrangeiro, de nacionalidade distinta do sujeito que manifesta o mau sentimento.
O Dicionário Jurídico diz que xenofobia é ter "ódio a estrangeiro". Para entendermos mais sobre essa forma de violência é necessário vislumbrarmos de onde ela vem, como e por que ela surgiu. Isso nos remete ao século XIX, época em que surgiu na Europa o chamado nacionalismo.
O nacionalismo foi outro fator que contribuiu para a eclosão da guerra. Durante o século XIX, cresceu na Europa o sentimento nacionalista e os indivíduos passaram a se identificar, em termos étnicos, culturais, linguísticos e emocionais, com sua nação. A propaganda nacionalista se fez a partir das escolas primárias e secundárias, onde se ensinava a história da nação e as crianças e adolescentes aprendiam a ser bons súditos e bons cidadãos. Essa propaganda gerou um novo tipo de movimento político, alicerçado no patriotismo exagerado, na xenofobia, na idealização da expansão territorial, na conquista e no próprio ato da guerra. (BRAICK/MOTA, 2006, p. 74).
As memórias mais recentes e absurdas sobre xenofobia advêm precisamente da Europa, emergindo do sentimento nacionalista difundido no ambiente escolar, fazendo com que eclodisse inclusive guerra oriunda desse sentimento. Com a pregação doutrinária nacionalista os jovens cresceram lapidados, ideologicamente, com esses valores. Isso fazia com que enxergassem sua cultura e valores como sendo únicos aceitáveis à sua volta e às suas vidas, por conseguinte, passando a rejeitar e até odiar qualquer coisa diferente disso.
A história nos mostra que, muito mais que um idealismo europeu, a xenofobia foi um grande marco político/segregacionista especificamente em um país daquele continente, a Alemanha.
O nacionalismo xenófobo foi a base sobre a qual se constituíram as primeiras manifestações do ‘fascismo’ alemão, como se vê no texto a seguir:
Somente uma raça alemã (volkstum) forte que proteja decididamente suas características e o seu ser e se resguarde de qualquer influência estrangeira pode constituir o alicerce seguro de um Estado alemão forte. Eis porque combatemos todo espírito antialemão destruidor, venha, ele, dos meios judeus ou de outras fontes. Denunciamos expressamente a preponderância judaica essa que se afirma de maneira cada vez mais funesta [...] O afluxo de estrangeiros às nossas fronteiras deve ser contido. (BRAICK/MOTA, 2006, p. 111) .
Como se sabe, o ideal chamado de nacionalismo, eivado de ódio macabro e antissemitismo, regado à xenofobia, foi responsável por milhões de mortes de judeus, sendo tal barbárie um dos maiores atentados da história da humanidade. Sob a pecha de se criar uma raça ariana, pura, deu-se início a um dos maiores genocídios de que se tem notícia por motivação racial e nacionalistas, liderado pelo representante direto do diabo, o secretário do inferno chamado Hitler. Foi neste contexto que se deu início à xenofobia propriamente dita, sendo esta expressada até os dias atuais, de forma atenuada e camuflada, firmando raízes no seio social contemporâneo com roupagens novas, por vezes discretas, mas não menos repudiáveis.
Entretanto, a formatação de xenofobia implementada neste trabalho tem outro viés de sentido, isto é, outra conotação no que toca suas vítimas, pois não são estrangeiras, mas sim brasileiras. A aversão, o desdém, a injúria, o preconceito e outras formas de se desprestigiar alguém são atos perpetrados por pessoas de certas regiões do país em relação a outras de região distinta. Assim, aquele visto como ser “diferente”, em sentido negativo, acaba por sofrer atos de repulsa. Esses atos, por demonstrarem aversão ao outro, por questões relacionadas à regionalidade, são denominados de xenofobia regional, no enfoque deste trabalho.
Em assim sendo, no Brasil surgiu uma forma de xenofobia não como a conhecemos na segunda guerra mundial diante de judeus, ciganos, etc, mas em relação aos próprios brasileiros, denominada por estudiosos no assunto como xenofobia interna ou regional. É o que ocorre frequentemente em parte do Sul/Sudeste do país, regiões nas quais a população nordestina convive com essa forma de violência quase que diariamente e em larga escala no ambiente de trabalho. Esse sentimento de repulsa à sua naturalidade, à sua cultura linguística e às suas escolhas políticas e pessoais, através das quais sempre foram alvos dessa aversão, nutre o descompasso entre culturas e fomenta o repúdio ao outro.
Além dos casos em que a xenofobia regional foi a causa de pedir da ação, há outros acórdãos com referências indiretas e incidentais ao nordestino e ao Nordeste, que julgam imputações falsas de preconceito, lidam com as práticas discriminatórias como motivação para outros atos ilícitos, etc. (ACUNHA, 2012, p. 103).
Ainda nas palavras de Fernando José Gonçalves Acunha:
“A invenção do Nordeste", como dito por Albuquerque Júnior, quer-se discutir o aparecimento de um preconceito, sua expressão exterior ( ao que chamaremos de "discriminação regional" ou " xenofobia interna" ) e a sua inegável presença na atualidade. Ou seja, quer-se debater o lado pernicioso que a diferenciação artificial produzida a partir da criação do Nordeste assumiu em nosso país, gestando o bacilo do preconceito, que uma vez nutrido e incubado, dá origem aos odiosos e recorrentes atos de irracionalidade xenófoba que temos visto acontecerem no nosso país (ALBUQUERQUE JÚNIOR, apud ACUNHA, p.07, 2014).
Vê-se que a xenofobia regionalista se nutre, na opinião do autor, de preconceito e que este sendo exteriorizado dá margem à discriminação. Logo, tem-se que xenofobia é um comportamento perverso, constituído de outras formas patológicas de interação social. Podemos concluir que o preconceito e a discriminação constituem a xenofobia regional, ao passo que são práticas depreciativas e excludentes por motivos de origem de lugar. Nessa esteira de raciocínio, os tribunais também vislumbram a xenofobia regional ou interna como causa de comportamentos aversivos ao diferente, como este julgado extraído do Tribunal Regional do Trabalho (TRT/15), ao declarar alguns motivos causadores desses atos de violência ao diferente. Na decisão, foi destacada fala de uma testemunha num processo trabalhista. O caso ocorreu na cidade de Jundiaí/SP, mas julgado em segunda instância em Campinas/SP. A testemunha que relatou no processo disse:
Que trabalhava na mesma seção do reclamante... que o Sr. Flor tinha um certo preconceito com os funcionários que dirigiam empilhadeira; que chegou a presenciar o Sr. Flor chamando o reclamante de 'burro' e 'jumento'; que o Sr. Flor também chamava o depoente e outros funcionários de nordestino cabeça seca, incompetentes, etc... (RIBEIRO, Relatora, TRT/15°Nº 0000707-66.2013.5.15.0002, 2014). (sem destaque no original).
Já em outro processo trabalhista, relatado pela Desembargadora Tereza Aparecida Asta Gemignani, extrai-se:
“Na inicial o reclamante postulou o pagamento de indenização por assédio moral, aduzindo, em resumo, que era constantemente humilhado pelo gerente José Carlos, que gritava, xingava e dizia que por ele ser nordestino não gostava de trabalhar [destaque nosso]. Asseverou que era cobrado R$ 1,00 de cada empregado para que fosse mantido limpo o banheiro que utilizavam”. (GEMIGNANI, Relatora, TRT/15, N° 0024600-31.2009.5.15.0001, 2011).
Expressa-se, diante de tais casos, que o trabalhador oriundo do NE sofre constantemente no ambiente de trabalho por sua condição geográfico/naturalística. Esta, infelizmente, é uma prática tão comum que muitas pessoas que a sofrem preferem não falar no assunto.
Note-se que uma das causas de incidência do assédio moral, aqui no Brasil, é a xenofobia, toda prática que vise ofender moralmente ou psicologicamente alguém, no ambiente de trabalho, de forma constante e intencional devido à nacionalidade ou naturalidade da vítima.
É dizer, toda vez que ocorrer quaisquer desses atos de forma reiterada, intencional e injustificada, com vistas a causar mal-estar, pressão, insultos regados por elementos ligados à origem da vítima, estarão presentes os requisitos do Assédio Moral. Entretanto, faremos desde já algumas incursões sobre esse tema. É preciso destacar que antes que o assédio aconteça algum ato xenófobo já fora praticado. Neste contexto, temos que Assédio Moral seja:
(...) uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica do indivíduo, de forma reiterada, tendo por efeito a sensação de exclusão do ambiente e do convívio social” (PAMPLONA F. 2006, online).
A exclusão, como menciona Pamplona Filho, perpetra-se com a discriminação, esta por sua vez constitui, no caso aqui tratado, ato de xenofobia regional, uma vez que ocorra contra pessoas de regiões distintas daquela onde ocorre o fato. De tal sorte, a aversão ao migrante nordestino é exteriorizada por meio do sentimento xenófobo regionalista, materializado pela discriminação que é alimentada, por sua vez, pelo preconceito.
Nas palavras de Marie-France Hirigoyen, pode-se aferir que o Assédio Moral se dá quando:
As vítimas se veem impotentes em se defender, pois são obstadas, impedidas, paralisadas, pelo assediador para que se defendam. Mesmo que no primeiro momento entendam passarem pelo ato abusivo, não possuem instrumentalização para tal, pois estão em uma relação muita das vezes verticalizada, hierarquizada. (HIRIGOYEN, 2017, p.20).
Neste ponto, o Assédio Moral é uma forma abusiva, praticada por meio de comentários, palavras, gestos, enfim, qualquer prática que venha a submeter a vítima a uma situação vexatória ou indigna, mas de forma continuada. É o que ocorre com os comentários costumeiramente feitos aos naturais do Nordeste, seja num chão-de-fábrica, seja num departamento ou escritório. Numa segunda acepção, esse comportamento nada mais é do que o ato de xenofobia regionalizada, especificamente falando do nordestino, tendo em vista que tais palavras pronunciadas para ferir o íntimo do migrante têm conotações regionalistas e preconceituosas.
Um exemplo dessa intolerância regionalista foi mostrado numa reportagem do programa de televisão Fantástico, da rede Globo, em que um jovem paulista, mencionado como Caio César, ataca o povo nordestino usando a internet. Isso ocorreu porque a escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi resolvera homenagear o NE naquele ano (2011), com seu enredo. Neste caso, a polícia implementou esforços para o indiciar criminalmente, mostrando que esses tipos de comportamentos odiosos não ocorrem exclusivamente no ambiente de trabalho. Esse jovem, segundo reportagem de jornal (G1, 2011, online), fazia parte do movimento separatista que propõe a desvinculação do estado de SP do resto do país, o que por óbvio levaria a exclusão de nordestinos caso isso ocorresse. Na oportunidade, ele diz, “Cara, se é crime isso, a gente vai ter muito criminoso solto por aí” (sic).
O que Caio César afirmou com todas as letras foi que esse tipo de comentário é tão comum no seu dia a dia no estado de São Paulo que, se for condenar todo mundo que usa esse discurso, haja cadeia pra todos. Neste ponto, observa-se que o ódio é pregado contra o povo do NE sim, a opção é aceitar ou não esse fato. É só lembrar das declarações da então atendente de telemarketing, Mayara Petruso, em 2010. Se não há ódio naquelas declarações, então vamos mudar nosso conceito do que é ódio. Será que iríamos chamar as pessoas que amamos e dizer o quanto gostaríamos que morressem afogadas, como forma de demonstrar nosso mais requintado sentimento de amor? O sentimento xenófobo interno está enraizado na cultura de parte do Sul/Sudeste do país, e o direito está aí para tentar equalizar a paz social por meio da atuação do Estado.
Diante do que já foi exposto, podemos concluir que a discriminação regional ou xenofobia interna, como conceitua Fernando José Gonçalves Acunha (2014, p.07) é um sentimento de repúdio a pessoas de outras regiões, principalmente do Nordeste, que se constitui de práticas discriminatórias e preconceituosas. Essas práticas também são expressadas por meio do bullying, injúria, dentre outros comportamentos, com vistas a promover o afastamento ou a humilhação das vítimas, seja no ambiente de trabalho, seja na vida social.
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1. ACUNHA, Fernando José Gonçalves. Têmis e o Sertão: Os limites do direito no combate à discriminação contra o Nordeste e os nordestinos. 2012. 173 f. Dissertação ( Mestrado em Direito, Estado e Constituição) -- Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
2. ACUNHA, Fernando José Gonçalves . O Combate à Discriminação Regional no Brasil: Limites e Possibilidades do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
3. BRASIL. Tribunal regional do trabalho. Recurso Ordinário. TRT/15° Região, N° 0000707-66.2013.5.15.0002; Recorrentes: Metais Comercial ltda - Fredson Saraiva Rodrigues. Relator: Eliane de Carvalho Costa Ribeiro. Campinas, 2014.
4. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso Ordinário.° TRT/15° Região, N° 0024600-31.2009.5.15.0001, Recorrente: Fábio Lucas Bressan Campinas - mecambuí catedral choperia ltda - EPP; Recorrido: José Braz da Silva. Relator: Tereza Aparecida Asta Gemignani. Campinas, 2011.
5. BRAICK, Patrícia Ramos.; MOTA, Myriam Becho. História: Das Cavernas ao Terceiro Milênio. 2. Ed – São Paulo: Moderna, 2006.
6. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Noções conceituais sobre o assédio moral na relação de emprego. [S.I.], online, ago. 2006. Acessado em 28 de dez. 2017.
7. HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral – a violência perversa do cotidiano. 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2017.
8. JOVENS ofendem nordestinos e moradores de periferia pela internet. G1, [S.I.], online, 02 de jan. de 2011. Acessado em 14 de set. 2016.