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A lei 14.230/21 e os decretos de indisponibilidade de bens deferidos antes de sua entrada em vigor

Entendemos que o magistrado deverá sim rever o decreto de indisponibilidade deferido antes da entrada em vigor da lei 14.230/21, até mesmo de ofício.

22/6/2022

A lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa- LIA), em sua redação original, previa no art. 7º que quando o ato de improbidade causasse lesão ao patrimônio público ou ensejasse enriquecimento ilícito, caberia à autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a decretação da indisponibilidade dos bens do indiciado, enquanto o  parágrafo único do mesmo dispositivo estava previsto que essa indisponibilidade deveria recair sobre os bens que assegurassem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.

Com a vinda da lei 14.230/21, que deu nova roupagem à Lei de Improbidade Administrativa, o instituto da indisponibilidade passou por intensas modificações, sendo atribuído ao novel art. 16 da LIA nada menos que 14 parágrafos para tratar exclusivamente desta medida constritiva.

Dentre as diversas discussões travadas no judiciário e na doutrina quanto à aplicação da novel legislação aos atos já praticados sob a égide da normativa anterior, uma delas ganhou destaque que seria a possibilidade ou não de aplicação imediata das novas disposições legais sobre decretos de indisponibilidade já deferidos anteriormente.

Respeitados os entendimentos em sentido contrário, e aqui já antecipando nosso posicionamento, acreditamos que sim, a novel legislação deveria ser aplicada imediatamente a todos os decretos de indisponibilidade deferidos com base no anterior art. 7º e parágrafo único da LIA.

Justificamos.

Em primeiro lugar, a lei 14.230/21 incluiu o parágrafo 4º ao art. 1º, da LIA consagrando de maneira expressa a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema da improbidade. Além disso, reconheceu-se o caráter repressivo da ação por ato de improbidade, que se destina à aplicação de sanções de caráter pessoal e não deve ser confundida com a ação civil (art. 17-D da LIA). Nesse passo, dado ao caráter sui generis da ação, não há que se olvidar sobre a sua aproximação com os princípios constitucionais do direito penal, dentre os quais destacamos a aplicação retroativa da lei mais benéfica, o que possibilitaria uma reanálise do decreto de indisponibilidade de bens, dessa vez à luz dos novos enunciados legislativos que de certa forma são mais benéficos ao indiciado.

Em segundo lugar, deve-se ponderar que a indisponibilidade, em sua essência, é uma tutela provisória e, como tal, pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada, nos termos do disposto no art. 296, caput, do Código de Processo Civil. Acrescenta-se que o parágrafo 8º, do art. 16, da LIA, após as alterações da lei 14.230/21, passou a prever de maneira clara que será aplicável à indisponibilidade, no que for cabível, o regime da tutela provisória de urgência da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). Por esse motivo, nada impede que o magistrado possa rever a medida provisória anteriormente deferida.

Neste sentido, destacamos as lições de Fernando da Fonseca Gajardoni: “Considerando que a indisponibilidade é uma tutela provisória e, como tal, revogável e modificável a qualquer tempo nos termos do art. 296, 2ª parte, CPC (item 9.5 supra), poderá o juiz, eventualmente rever a medida dantes deferida, por entender que o afrouxamento dos requisitos legais para sua concessão é evento novo que justifica a revogação da cautela” (Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa: lei 8.429/92, com as alterações da lei 14.230/21. Fernando da Fonseca Gajardoni (et. al.), 5ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 309).

Vale mencionar ainda que não há previsão expressa no Código de Processo Civil, nem na Lei de Improbidade Administrativa, condicionando a concessão de tutela provisória de urgência a pedido expresso da parte, porém, em virtude da aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, entendemos não ser possível o seu deferimento de ofício. Mas isso não impede que o magistrado reveja o ato, ainda que sem provocação das partes, para abrandar ou revogar a indisponibilidade.

Em terceiro lugar, o próprio Código de Processo Civil, no art. 493, estabelece que a superveniência de direito novo deve ser considerada pelo juiz, que poderá decidir de ofício ou por provocação da parte interessada. Apesar de estar situado em tópico destinado aos “elementos” e “efeitos da sentença”, entendemos que o dispositivo deve ser aplicável também às decisões interlocutórias. A alteração legislativa (Lei 14.230/21), que deu nova roupagem ao decreto de indisponibilidade de bens, constitui motivo idôneo a justificar novo pronunciamento judicial, de modo que o cabimento do pedido de indisponibilidade de bens, seja para aumento de alcance ou a flexibilidade da abrangência da constrição (podendo-se chegar à sua revogação), deve ocorrer conforme o novo regramento.

Por último, deve-se ter em mente que foram realizadas diversas alterações de cunho material na lei de improbidade administrativa, logo a tutela provisória, que não encontra um fim em si mesma, mas sim serve ao processo em sentido amplo, deve ser revista para se adequar as modificações materiais da LIA, posto que deferida considerando alegações de direito pautadas no regramento anterior que foram objeto de inegável modificação (alteração na tipificação, elemento subjetivo, individualização da responsabilidade etc.) 

Por todos esses motivos, entendemos que o magistrado deverá sim rever o decreto de indisponibilidade deferido antes da entrada em vigor da lei 14.230/21, até mesmo de ofício, passando a equacionar neste momento os novos requisitos inseridos na Lei de Improbidade para manter ou não a indisponibilidade de bens.

Diego da Mota Borges
Professor Universitário; Mestrando em Desenvolvimento Regional pelo Uni-Facef; Especialista em Direito Processual Civil e Direito Penal Econômico; Advogado sócio do escritório MVB Advogados.

Guilherme Geraldi Silva Sampaio
Advogado, graduado em direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF), especialista em Ciências Criminais e Ética Empresarial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP).

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