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A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, constitui crime

O direito a não autoincriminação não é absoluto, motivo pelo qual não pode ser invocado para justificar a prática de condutas consideradas penalmente relevantes pelo ordenamento jurídico.

21/6/2022

RECURSO ESPECIAL Nº 1.859.933 - SC (2020/0022564-9)

RELATOR: _____________________

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA

RECORRIDO: _____________________

ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA

INTERES.: GRUPO DE ATUAÇÃO ESTRATÉGICA DAS DEFENSORIAS PÚBLICAS ESTADUAIS E DISTRITAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES - "AMICUS CURIAE"

ADVOGADOS: _____________________

EMENTA

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ART. 330 DO CÓDIGO PENAL. ORDEM LEGAL DE PARADA EMANADA NO CONTEXTO DE ATIVIDADE OSTENSIVA DE SEGURANÇA PÚBLICA. TIPICIDADE DA CONDUTA. SUPOSTO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUTODEFESA E DE NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. DIREITOS NÃO ABSOLUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO PARA A PRÁTICA DE DELITOS. RECURSO PROVIDO.

1. O descumprimento de ordem legal emanada em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes, atuando os agentes públicos diretamente na segurança pública, configura o crime de desobediência, conforme foi reconhecido, no caso, pelo juízo de primeira instância.

2. O direito a não autoincriminação não é absoluto, motivo pelo qual não pode ser invocado para justificar a prática de condutas consideradas penalmente relevantes pelo ordenamento jurídico.

3. Recurso especial representativo da controvérsia provido, com a fixação a seguinte tese: A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro.

Comentários

1. Histórico

O art. 330 do CP preceitua o crime de desobediência, segundo o qual, a desobediência de ordem legal emanada por funcionário público é delito, apenado com detenção, de 15 dias a seis meses, e muita.

O crime de desobediência está previsto na legislação brasileira desde o Código Criminal de 1830, o qual previa “desobedecer ao empregado público em ato de exercício de suas funções, ou não cumprir as suas ordens legais”.1

O CP/90, por sua vez, ampliou as condutas criminosas ao tipo penal, reconhecendo a desobediência na simples transgressão de ordens ou provimentos legais, emanados de autoridades competente. Além disso, acrescentou ainda que estariam compreendidos na previsão legal “aqueles que infringirem preceitos proibitivos de editais das autoridades e dos quais tiveram conhecimento”.2

2. Bem jurídico

O bem jurídico tutelado no crime de desobediência é a administração pública, especialmente sua moralidade e probidade administrativa, bem como a integridade de seus funcionários. Objetiva-se com isso garantir o prestígio e a dignidade do patrimônio público.3

3. Ordem de parada

A ordem de parada é um termo que se popularizou entre os brasileiros o qual consiste na abordagem de funcionário público, sendo ele policial militar ou não, em decorrência da atividade de policiamento ostensivo, preventivo ou repreensivo.

Durante anos, a doutrina e a jurisprudência tentaram estabelecer parâmetros para a ordem de parada, mas sempre escapava uma circunstância fática peculiar. Até que a 3ª seção do STJ, em sede de recurso repetitivo, fixou a seguinte tese: A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro. Sem dúvidas, é uma tentativa do Tribunal da Cidadania de pacificar a questão.

4. Julgamento do REsp 1859933

No dia 9/3/22, a 3ª seção do STJ julgou o REsp 1.859.933, o qual trata do descumprimento de ordem legal emanada em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes, popularmente conhecido como ordem de parada.

Em seu voto, o ministro-relator esclareceu que o tribunal tem orientação firme no sentido de que o descumprimento de ordem legal de parada emanada em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes, atuando os agentes públicos diretamente na segurança pública.4

A defesa arguiu que a ordem de parada poderia resultar em violação do direito ao silêncio e de não produzir prova contra si. O relator, por sua vez, destacou que o direito ao silêncio e o de não produzir provas contra si não são absolutos. Assim, a possibilidade, ainda que remota, de prisão por outro delito não é suficiente para afastar a conduta típica de desobedecer à ordem de parada. Portanto, ninguém pode, no caso da ordem de parada, desobedecer ao comando do funcionário público, que naquela ocasião presenta o Estado, para se escusar de ser descoberto outra infração.

Foi voto vencido o ministro Olindo Menezes, desembargador convocado do TRF 1ª região. Embora vencido, o ministro trouxe interessante debate sobre a questão. Em seu voto, fez a distinção da atuação de policiais em atividade administrativa de trânsito e em atividade de policiamento ostensivo. Ele afirma que a distinção pode vai exigir “uma série de complementos fáticos que tornam, na minha visão, insegura aplicação da lei penal em um caso como o presente”.

Para o ministro Olindo Menezes, essa distinção não deve ser levada em consideração. E nos casos de policiais vigiando o trânsito, com viés de policiamento ostensivo ou não, a recusa à parada pode ser enquadrada no CTB, arts. 291-32-A.

Para Menezes, recordando o posicionamento da Defensoria Pública da União no caso, o “ótimo penal seria que o crime de desobediência só ocorresse [...] de ordem legal documentada de um servidor público, emanada de um processo”.

Há uma patente divergência entre o voto vencedor e o vencido. Para o primeiro, a conduta em análise é crime e deve ser enquadrada como crime de desobediência. Já para o último, a conduta deve ser enquadrada no CTB. Para o ministro Olindo Menezes, o CTB conseguiria dar mais resultados do que chamar para a questão o CP.

Sobre o tipo penal, é importante esclarecer que a conduta criminosa de violar a ordem de parada requer o elemento subjetivo dolo, representado aqui pela vontade consciente de desbeber ordem legal de funcionário público no exercício de suas funções, sob pena de ser a conduta atípica.5 Bitencourt adverte que o sujeito ativo da ação deve ter conhecimento de se tratar de funcionário público, bem como que a ordem emanada seja legal, sob pena de incorrer em erro de tipo.6

5. Conclusão

Como restou consignado, o STJ, sob o rito dos recursos repetitivos, no julgamento do tema 1.060, firmou a seguinte tese: “A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do CTB”.

Entendemos ser um avanço o presente julgado, pois não se deve tratar a desobediência à ordem de parada como mero ilícito administrativo, passível de multa. Ao contrário, deve ser tratado como crime, pois a função ali desempenhada pelo policial é de suma importância para a segurança pública, evitando e reprimindo condutas criminosas, de consequências inimagináveis.

No julgamento, tentou-se diferenciar os casos de policiamento preventivo e repressivo, mas não vigorou. Entendemos que a 3ª seção agiu bem e não reconheceu tal distinção. Um distinguishing como esse resultaria em grave insegurança jurídica, além de acarretar inúmeros recursos, apontando em uma ou em outra direção, dificultando sobremaneira a pacificação do tema.

_____

1 Bitencourt, Cezar R. Código penal comentado. Disponível em: Minha Biblioteca, (10ª edição). Editora Saraiva, 2019. P, 1520.

2 Ibdem.

3 Bitencourt, Cezar R. Código penal comentado. Disponível em: Minha Biblioteca, (10ª edição). Editora Saraiva, 2019.P, 1520-1521.

4 Nesse sentido, (AgRg no REsp n. 1.860.058/MS, (AgRg no REsp n. 1.805.782/MS, (AgRg no REsp 1.697.205/PR, (AgRg no REsp n. 1.853.001/MS, (AgRg no REsp n. 1.790.887/MS, AgRg no AREsp n. 1.307.608/MS, (AgRg no REsp n. 1.753.751/MS, (AgRg no REsp n. 1.799.594/PR, (AgRg no REsp n. 1.753.751/MS,

5 Bitencourt, Cezar R. Tratado de Direito Penal 5 - Crimes Contra a Administração Pública e Crimes Praticados por Prefeitos. Disponível em: Minha Biblioteca, (15ª edição). Editora Saraiva, 2021. P, 102.

6 Ibdem.

Wenner Melo
Advogado. Pós-graduado em Direito Público, Administrativo, Tributário e Antropologia Brasileira. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PI. Articulista em sites jurídicos.

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