a) a) Breve Histórico
No próximo dia 5/10/22, a CF/88 completará 34 anos da promulgação. Fruto da luta de muitos brasileiros, que tiveram na pessoa do ilustre Ulisses Guimarães a personificação do sentimento de liberdade que permeava o espírito da população, que clamava por mais liberdade. Ele deixou muito claro no discurso na hora da proclamação o seu ódio e o nojo da ditadura, declarando que traidor da Constituição é traidor da Pátria.
A nova Carta da República, além de inovar no ordenamento jurídico do país, insculpindo no art. 5º direitos fundamentais e assegurando garantias que antes eram negadas pelo regime de exceção que predominou no período de 1964 a 1985, também procurou reorganizar e reestruturar o Estado brasileiro, trazendo regras simétricas para a estrutura administrativa da União, dos Estados federados, do DF e dos Municípios.
A partir do art. 1º, a Assembleia Constituinte já procurou garantir a unidade da federação, declarando que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do DF, constituindo-se em Estado Democrático de Direito. Nada melhor neste momento que recorrer à lição do ilustre constitucionalista José Afonso da Silva:
A configuração do Estado democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leve em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supere na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando. (SILVA, J. A. da, 1988).
Quanto às competências dos entes constitucionais no sistema federalista implantado pela CF/88, foram definidas as competências da União, no campo material e legislativo, permanecendo os Estados com as competências remanescentes e os Municípios com as competências definidas claramente nos art. 21, 22, 25 e 30, sendo que o DF acumula as competências estaduais e municipais, com poucas exceções (art. 21, XIII, XIV, e 22, XVII).
Para garantir a homogeneidade das estruturas governamentais nos três níveis de poder – União, Estados federados, DF e Municípios –, a Assembleia Constituinte introduziu o princípio da simetria constitucional, que é aquele que induz à ideia de que os Estados, quando no exercício de suas competências remanescentes, devem adotar os modelos normativos constitucionalmente estabelecidos para a União.
O princípio da simetria encontra-se inserido em dois capítulos da CF/88, sendo que o primeiro está inserido no capítulo da organização político-administrativa do Estado e o outro, no capítulo sobre o poder Legislativo, especificamente na Seção da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, que define o âmbito de incidência do controle externo, que recai sobre os órgãos e entidades da administração direta e indireta da União, Estados federados, DF e nos Municípios.
Quanto à organização dos Estados federados, assevera o artigo 25 que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Constituição da República, sendo reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição, “sendo incompatível com a Constituição Federal ato normativo estadual que amplie as atribuições de fiscalização do Legislativo local e o rol de autoridades submetidas à solicitação de informações”. [ADI 5.289, rel. min. Marco Aurelio, j. 7-6-2021, P, Informativo 1.020.]
De outro lado, o artigo 75 da Seção da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária estabelece que as normas estabelecidas para o exercício do controle externo aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos tribunais de contas dos Estados e do DF, bem como dos tribunais e conselhos de contas dos Municípios. Com efeito, a jurisprudência do STF nas últimas três décadas assevera que a aplicação do modelo Federal de controle externo é compulsória às Cortes estaduais e municipais.
Além do âmbito de incidência, o Constituinte também definiu que no caso dos Estados federados, os tribunais de contas deveriam ser compostos por sete conselheiros, sendo quatro indicados pela Assembleia Legislativa e três pelo governador do Estado, sendo necessariamente dois, dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao tribunal, indicados em lista tríplice pelo tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento.
Pois bem, diante desses comandos insertos pelo art. 25, inciso I e art. 75 da Constituição da República Federativa do Brasil e confirmados pela jurisprudência da Suprema Corte sedimentada desde a promulgação, os Estados federados, o DF e os Municípios não podem legislar acrescendo ou revogando competência do controle externo, ou seja, quanto à organização, composição e fiscalização dos respectivos tribunais de contas Estaduais e Municipais.
b) A não recepção da Carta da República pelo Estado de São Paulo
Sem respeitar a simetria que é exigida pela nova Carta da República, a Assembleia Legislativa paulista, ao promulgar a Constituição do Estado de São Paulo um ano após a Federal – 5/10/89 –, estipulou outra fórmula para a indicação dos conselheiros e, ainda, alargou as competências do TCE-SP, que passou a julgar as contas das fundações de direito privado, que não foram instituídas e nem são mantidas pelo poder Público, aplicando-lhes coercitivamente o regime de direito público.
No tocante à indicação dos conselheiros foi previsto no item 1, do §2º, do art. 31, da norma paulista, que dois seriam pelo governador do Estado com aprovação da Assembleia Legislativa, alternadamente entre os substitutos de conselheiros e membros da Procuradoria da Fazenda do Estado junto ao tribunal, indicados por este, em lista tríplice, segundo critérios de antiguidade e merecimento; quatro pela Assembleia Legislativa; e o último, uma vez pelo governador do Estado, e duas vezes pela Assembleia Legislativa, alternada e sucessivamente.
Como se tudo isso ainda não bastasse, o constituinte paulista ainda inseriu o art. 7º do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, prevendo que as quatro primeiras vagas de conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, ocorridas a partir da data da publicação da Constituição, seriam preenchidas por indicação exclusiva da Assembleia Legislativa e somente após o preenchimento é que seria seguido o disposto no art. 31, §§ 1º e 2º da citada norma.
Diante dessa presepada constitucional, foram ajuizadas duas ADIn 374/DF, em 2/10/90, que requereu a declaração de inconstitucionalidade do art 7º do ADCT; e ADI 397/SP, em 7/11/90, que requereu a declaração de inconstitucionalidade do item 1, do §2º, do art 31, da norma paulista.
c) O início da proteção da Suprema Corte a um órgão técnico-administrativo ditador: TCE-SP
Para facilitar o entendimento, iniciaremos pela ADI 397/SP, que foi distribuída em 7/11/90, tendo como relator inicial o min. Célio Borja, que em 30/11/90 concedeu a medida liminar para suspender a eficácia dos dispositivos impugnados na Constituição Paulista. Entretanto, a publicação do julgamento do mérito somente ocorreu no dia 3/8/05, portanto, passados 15 anos da concessão da liminar.
A ADIn 374/DF teve uma tramitação mais longa. Ajuizada em 2/10/90, sob a relatoria do min. Celso de Mello, teve o julgamento para a concessão da liminar em 26/10/90, contudo, a publicação da liminar somente ocorreu em 19/2/93, sendo relevante destacar o fundamento utilizado pelo relator:
Os Estados-membros estão sujeitos, na organização e composição dos seus Tribunais de Contas, a um modelo jurídico estabelecido pela própria Carta Federal, que lhes restringe o exercício e a extensão do poder constituinte decorrente de que se acham investidos. A norma consubstanciada no art. 75 do texto constitucional torna extensíveis aos Estados-membros as regras nele fixadas.
A publicação do acórdão do julgamento final da ADI 374/DF ocorreu somente no dia 21/8/14, nada mais nada menos que passados 24 anos da liminar, tendo como relator o min. Dias Toffoli, cujos trechos de voto são dignos de reprisar:
2. A suspensão de dispositivos da Constituição paulista (ADI nº 397/SP) não autorizou o Estado de São Paulo a adotar, ao seu alvedrio, critério diverso das regras contidas no art. 73, § 2º, da CF/88. As regras de composição dos Tribunais de Contas dos Estados derivam diretamente dos arts. 73, § 2º, e 75 da Constituição Federal, sendo de absorção obrigatória pelos Estados-membros, ainda que não haja reprodução expressa nas Constituições estaduais. Precedentes.
3. A aplicação que vem sendo dada no Estado de São Paulo às normas em questão tem retardado a nomeação, como Conselheiros, de auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, com a consequente hipertrofia do Poder Legislativo em relação ao Executivo, afetando, ainda, sobremaneira, a proporcionalidade, a heterogeneidade e a pluralidade na composição do Tribunal de Contas estadual. Esta Suprema Corte, por sua vez, não pode deixar espaços para soluções normativas ou interpretativas que se prestem a um atraso ainda maior na implementação do modelo constitucional. Faz-se necessário, portanto, ajustar a composição da Corte, de modo a fazer cumprir os comandos pertinentes da Carta da República.[grifos nossos]
Em que pese a irresignação do ministro relator, fato que se respeita, entretanto, a realidade comprova que quem deu causa à não harmonização do TCE-SP com o modelo de fiscalização preconizado pela Carta da República, s.m.j., foi o próprio STF, em face dos quinze anos para o julgamento final da ADIn 397/SP e dos 24 anos, um quarto de século, para julgar a ADIn 374/DF.
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