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Qual a diferença entre o crime de carteirada (art. 33, parágrafo único, da lei 13.869/19) e corrupção passiva (art. 317 do CP)?

O traço comum principal é que, em ambas as figuras penais, há recebimento de vantagem indevida pelo funcionário público, o que representa atentado a probidade administrativa.

14/6/2022

Para responder a essa indagação, antes deve-se analisar a redação de cada um desses tipos penais, que dispõe:

Art. 33, parágrafo único, Lei 13.869/2019

Art. 317 do Código Penal

Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

O traço comum principal é que, em ambas as figuras penais, há recebimento de vantagem indevida pelo funcionário público, o que representa atentado a probidade administrativa.

Mas a tarefa para distinguir as condutas descritas em cada um dos tipos não é tão clara visto que há, inegavelmente, uma imprecisão da redação do art. 33, parágrafo único, da Lei de Abuso de Autoridade que não indica, com perfeição, qual conduta realizada pelo agente público que lhe produz a indevida eximente de obrigação legal ou a obtenção da vantagem ou privilégio. Inadequadamente, o tipo utiliza núcleos verbais que expressam condutas relacionadas ao momento em que o agente aufere as vantagens indevidas. A distinção é crucial porque, como se sabe, condutas revestidas de grande poder de intimidação podem, conforme o caso, caracterizar concussão (funcionário exige dinheiro para não embargar obra) ou mesmo extorsão (funcionário exige dinheiro para não agredir alguém), enquanto a mera solicitação pode caracterizar o crime de corrupção passiva.

Relembre-se que nessas figuras delitivas, a incorporação, usufruto ou obtenção da vantagem indevidamente concedida ao funcionário público constituem exaurimento do iter criminis. Isso significa que, necessariamente, uma primeira análise sobre o tema, a fim de divisar o campo de tipificação de cada norma, o crime de abuso de autoridade ora estudado tem natureza subsidiária e somente restará caracterizado se a conduta anterior não restar tipificada em crime de concussão ou corrupção passiva (ou até extorsão, conforme o caso), o que demandará a análise da conduta antecedente e a natureza da vantagem indevida obtida.

Isso também deve ser feito a partir dos objetivos pretendidos pelo ato praticado.

Assim, na corrupção passiva (art. 317 do CP) a vantagem indevida é recebida pelo agente público com o fim de alterar sua atuação funcional, que resta assim comprometida, depravada ou adulterada porque divorciada, a partir de então, dos fins públicos que os embasa. Ambos recebem prestações recíprocas: o particular deixa de ser autuado e em troca, o agente, recebe a propina, por exemplo.

Já no crime do art. 33, parágrafo único, da lei 13.869/19, inexiste o suborno propriamente dito, caracterizado pela comercialização espúria, pela contraprestação ou barganha da atividade pública, de modo que a obtenção da vantagem não encontra bilateralidade negocial e por isso não implica em qualquer alteração da atividade funcional do agente público. Não há na figura de abuso de autoridade qualquer espécie de troca entre a vantagem indevida obtida pelo agente e sua atuação porque ele não negocia, não altera seus atos funcionais (não os modifica, nem os retarda ou deixa de praticá-los) e nem os desnatura porque eles não são objeto de barganha. Em suma, no crime da “carteirada” não há mercancia da função pública de modo que o particular não aufere qualquer tipo de prestação do agente público ao entregar ao funcionário público a vantagem indevida. Ele o faz, despretensiosamente, por temor reverencial, por comodismo, por veneração etc.

Renee do Ó Souza
Mestre em Direito. Promotor de Justiça em Mato Grosso. Membro Auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público. Professor e autor de obras jurídicas.

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