Os projetos sobre as reformas tributárias reacenderam o debate sobre a tributação de bebidas e alimentos não saudáveis - a chamada “tributação saudável”. Recentemente, a CAS – Comissão de Assuntos Sociais, aprovou o PL 2.183/19, apresentado pelo senador Rogério Carvalho, que “cria a contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a comercialização e importação de refrigerantes e bebidas açucaradas”. Do ponto de vista comportamental, o tema é bastante controverso.
O debate normalmente é polarizado pelos que defendem que o Estado deve ampliar sua intervenção, e pelos que defendem que o Estado deve intervir menos (ou sequer existir). Em relação aos últimos, conforme bem colocado pelo professor Luís Eduardo Schoueri: ”Dificilmente se encontrará quem sustente com seriedade o desaparecimento do Estado como forma de organização política”. Quanto aos demais, cabe relembrar a famosa frase de Oliver Wendell Holmes Jr.: ‘taxes are what we pay for civilized society’.
Para analisar o PL 2.183/19, é necessário antes apresentar o núcleo da discussão: direitos. A quantidade de direitos envolvidos na celeuma é tão diversa, que seria impossível abordar todos em um único texto. Todavia, o conceito jurídico-tributário apresentado pelo professor José Casalta Nabais possibilita delimitar a análise, bem como prover insumos para que o leitor construa sua própria conclusão a respeito do tema.
De acordo com o professor Casalta Nabais, direitos “são liberdades privadas com custos públicos”. Por não serem “dádiva divina ou frutos da natureza”, não podem ser garantidos sem que haja uma cooperação social em proporção adequada ao custeio das despesas estatais. De maneira mais objetiva, nas palavras professor Leandro Paulsen: “não há direito sem Estado, nem Estado sem tributo”.
Em um primeiro momento, sob o aspecto do custeio, o PL 2.183/19 parece uma medida adequada. Se a obesidade vem se tornando um problema de saúde pública cada vez mais latente, nada mais justo do que o Estado adequar a arrecadação ao aumento da obesidade e consequente gasto com saúde publica. Entretanto, a justificação do PL não parece estar em consonância com o objetivo da medida. Ao longo dos nove parágrafos, o texto discorre majoritariamente sobre o aumento e malefícios da obesidade, dedicando apenas uma linha ao custo financeiro e hospitalar da obesidade.
Não há dúvida de que o PL 2.183/19 busca combater a obesidade. O que não é claro é se o meio escolhido para alcançar tal fim é a redução do consumo ou o custeio dos gastos públicos atrelados ao tratamento da obesidade. Apesar da justificação do projeto focar no agravamento e nos malefícios da obesidade, os dez artigos do PL abordam a arrecadação e o custeio, versando inclusive sobre o repasse direto de recursos para o Fundo Nacional de Saúde.
Sendo o custeio dos gastos com saúde pública o meio escolhido pelo PL 2.183/19 para combater a obesidade, está justificada a instituição da CIDE, uma intervenção para corrigir distorções ou promover objetivos. Por outro lado, se o resultado almejado pelo PL for a redução do consumo de refrigerantes e bebidas açucaradas, talvez a tributação não seja o melhor caminho.
É certo que, sendo a tributação vinculada a um comportamento, a mera hipótese de incidência gera um impacto comportamental, bastando que o comportamento seja adotado ou rejeitado para que nasça a obrigação tributária. No entanto, o ser humano nem sempre age de maneira racional, ou seja, de modo a maximizar a utilidade esperada. Como consequência, a instituição de um tributo ou concessão de um benefício fiscal não resulta necessariamente no efeito desejado, podendo inclusive estimular o comportamento que se buscava combater, dando origem ao backfire.
O fenômeno é abordado por uma vasta bibliografia comportamental sobre exemplos práticos no âmbito público e privado. Ainda assim, cabe lembrar que, em geral, o ser humano se comporta de maneira adequada com o estímulo recebido, sendo motivado por incentivos e desencorajado por punições. O problema é que, quando o backfire é produzido, a retirada do incentivo ou da punição não faz com que o comportamento retorne ao estado original.
Apesar da variedade de casos concretos documentados sobre o tema, não é possível ter certeza sobre o resultado futuro, mesmo adotando uma política aplicada anteriormente. Isto acontece porque o backfire é um fenômeno bastante diverso, atrelado às particularidades de cada situação. Uma prática que não produziu o resultado esperado no passado, pode muito bem funcionar no presente. Ocorre que o risco da tentativa é justamente estimular um comportamento oposto ao almejado, e que não pode ser facilmente revertido.
Quanto às bebidas açucaradas, é perfeitamente possível que a instituição da CIDE não impacte o consumo, ou até mesmo resulte em um aumento da ingestão, conforme observado pelo economista Robert Giffen.
No século XIX, antes da criação das ciências comportamentais, um caso prático na Irlanda mostrou para Giffen que alguns bens violam a lei da demanda, fazendo com que as pessoas deixem de consumir outros produtos. No referido caso, o aumento dos impostos sobre as batatas, e o consequente aumento do preço, acarretou em um aumento da demanda.
Mesmo se tratando de bens aparentemente diferentes, do ponto de vista da essencialidade, o fenômeno dos “Bens de Giffen” deve ser levado em consideração, tendo em vista que, conforme a própria justificação do PL 2.183/19, a ingestão de bebidas açucaradas e refrigerantes supera o consumo “de frutas, hortaliças e leite”.
Além de onerar ainda mais o contribuinte, a possível consequência e a falta de certeza sobre o resultado futuro fazem com que a modulação de comportamentos por meio da tributação seja bastante imprevisível e arriscada. Por esta razão, a literatura comportamental fornece mecanismos para atingir os mesmos fins aspirados pela extrafiscalidade, de maneira menos onerosa e mais sutil.
O mecanismo mais famoso e conhecido da literatura comportamental é o nudge, que em inglês significa “dar um empurrão”. Nas palavras do professor Cass Sunstein, em tradução livre, nudges são “abordagens que conduzem as pessoas em direções especificas, sem tolher a liberdade ou impedir que escolham seu próprio caminho”.
Mesmo podendo parecer algo inovador, nudges já estão presentes no nosso dia a dia. GPS, aplicativos que calculam a quantidade de calorias que foram ingeridas pela pessoa no dia anterior, mensagens de texto que informam o vencimento de uma conta ou que informam o agendamento de uma consulta, o cadastro em planos de pensão, todos são exemplos de nudges. Deste modo, subsídios, impostos, multas e penas não são nudges, mesmo quando aplicados de maneira justificada, em função da falta de transparência e liberdade de escolha.
O cigarro é um excelente exemplo para explicar, de maneira prática, a diferença entre nudge e extrafiscalidade. As embalagens, que contêm imagens das doenças causadas pelo cigarro funcionam como nudges, fornecendo informação visual a respeito da possível consequência de uma escolha. Por outro lado, o aumento do IPI sobre o cigarro não é um nudge, justamente por elevar o custo e impactar de maneira direta a decisão do consumidor.
No Brasil, um caso prático da implementação de nudges é a lei 10.982/16, publicada no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte. Visando a redução do consumo de sal, a lei proibiu a exposição de saleiros em mesas e balcões de bares, restaurantes, lanchonetes e similares. A diferença entre a lei 10.982/16 e o PL 2.183/19 é que a primeira impacta a decisão, sem impor qualquer aumento de custo ou da complexidade tributária, nem reduzir a liberdade de escolha.
Uma alternativa para a tributação saudável é a “reorganização planejada”, capaz de impactar o consumo em até 25%. Produtos alocados em lugares visíveis tendem a ter um consumo mais elevado. Da mesma forma, alimentos dispostos fora do alcance visual são propensos a ter um consumo menor. Por esta razão, a simples realocação de produtos é capaz de estimular a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis.
Conforme anteriormente declarado, não há qualquer dúvida sobre o governo estar buscando conter o aumento da obesidade, mas a pergunta persiste: a tributação saudável e o PL 2.183/19 têm como foco a redução do consumo ou o custeio dos gastos com tratamento para obesidade?
Na prática, a resposta faz toda a diferença.
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