Em uma ampulheta, a grossura da areia é recurso utilizado para controlar a velocidade do escoamento. Grãos mais finos tendem a descer mais rapidamente, ao passo que os médios se atrasam e os grossos custam a cair. Essa comparação é semelhante a três funções públicas de suma importância ao Estado de Direito: o mandato presidencial, a dupla-legislatura dos senadores e a duração no cargo de ministro do Supremo. Neste texto, discorrerei sobre essa comparação e sobre como a idade é um fator importante no apontamento de um nome ao STF.
A maioria dos brasileiros provavelmente saberia dizer qual é a duração dos mandatos presidencial e senatorial: o chefe de Estado fica quatro anos e os parlamentares da Câmara Alta contam com duas legislaturas no poder. Uma informação facilmente acessível nos art. 82 e 46 § 1º da CF/88. Mas, e quanto aos ministros do Supremo?
Antes que se responda, vale a reflexão: quanto evoluiu e pode evoluir o direito ao longo dos anos? É indiscutível que as inovações tecnológicas trouxeram aos legisladores desafios inesperados na última década: a dificuldade em elaborar e aprovar a nova LGPD é exemplo cabal disso. Agora, imagine-se o que virá nos próximos dez, ou quiçá cinco anos. Estarão os juízes atuais preparados à interpretação e aplicação da lei? Para os legisladores e chefe de Estado, mesmo uma resposta negativa não é preocupante: se novos fatos alterarem o status quo ao ponto dos líderes de hoje não serem mais adequados, o processo eleitoral poderá renová-los: afinal, são areia fina, talvez média. Todavia, o mesmo não é verdade para os responsáveis por interpretar as normas constitucionais.
A princípio, as análises sobre a estabilidade dos magistrados comumente citam a vitaliciedade como fundamento tanto à segurança jurídica (por manutenção da jurisprudência) como garantia ao Judiciário – e têm razão. De fato, a função dos juízes exige certas medidas de proteção: trata-se de poder que lida com o contraditório. Assim sendo, não seguem os ministros do STF um “mandato fixo” como os agentes eleitos. São vitalícios (art. 95, I, da CF/88) e, por isso, ficam por tempo indeterminado em atividade. No entanto, diferentemente da vitaliciedade plena que alguns juízes gozam (pense-se na SCOTUS1), os magistrados brasileiros têm um limite: a aposentadoria compulsória.
Os servidores públicos do Judiciário aposentam-se obrigatoriamente aos 75 anos de idade (art. 2º, II, da lei complementar 152/15). Essa regra permite calcular o tempo que cada ministro do Supremo ficará, ao máximo, no cargo. Ter esse dado não serve apenas para prever as mudanças na Corte nos próximos governos, mas também para olhar para o passado e comparar a estadia atual com a dos ministros de outrora. A tabela que segue reúne as informações necessárias a essa análise:
TEMPO DE PERMANÊNCIA NO CARGO DE MINISTRO DO STF (PERÍODO DE 05/10/1988 ATÉ 31/12/2021) |
|||
Ministro |
Posse |
Saída (ou saída prevista) |
Tempo atual (ou máx.) em anos |
Paulo Brossard |
05/04/1989 |
23/10/1994 |
5,55 |
Sepúlveda Pertence |
17/05/1989 |
24/08/2007 |
18,28 |
Celso de Mello |
17/08/1989 |
13/10/2020 |
31,17 |
Carlos Velloso |
13/06/1990 |
19/01/2006 |
15,61 |
Marco Aurélio |
13/06/1990 |
12/07/2021 |
31,10 |
Ilmar Galvão |
26/06/1991 |
03/05/2003 |
11,86 |
Francisco Rezek |
21/05/1992 |
05/02/1997 |
4,71 |
Maurício Corrêa |
15/12/1994 |
08/05/2004 |
9,40 |
Nelson Jobim |
15/05/1997 |
29/03/2006 |
8,87 |
Ellen Gracie |
14/12/2000 |
08/08/2011 |
10,65 |
Gilmar Mendes |
20/06/2002 |
– (30/12/2030) |
19,54** (28,54) |
Cezar Peluso |
25/06/2003 |
03/09/2012 |
9,20 |
Ayres Britto |
25/06/2003 |
18/11/2012 |
9,40 |
Joaquim Barbosa |
25/06/2003 |
31/07/2014 |
11,10 |
Eros Grau |
30/06/2004 |
02/08/2010 |
6,09 |
Ricardo Lewandowski |
16/03/2006 |
– (11/05/2023) |
15,80** (17,16) |
Cármen Lúcia |
21/06/2006 |
– (19/04/2029) |
15,53** (22,84) |
Menezes Direito |
05/09/2007 |
01/09/2009 |
1,99* |
Dias Toffoli |
23/10/2009 |
– (15/11/2042) |
12,19** (33,08) |
Luiz Fux |
02/03/2011 |
– (26/04/2028) |
10,84** (17,16) |
Rosa Weber |
19/12/2011 |
– (02/10/2023) |
10,04** (11,79) |
Teori Zavascki |
29/11/2012 |
19/01/2017 |
4,14* |
Roberto Barroso |
26/06/2013 |
– (11/03/2033) |
8,52** (19,72) |
Edson Fachin |
16/06/2015 |
– (08/02/2033) |
6,54** (17,66) |
Alexandre de Moraes |
22/03/2017 |
– (13/12/2043) |
4,78** (26,74) |
Nunes Marques |
05/11/2020 |
– (16/05/2047) |
1,15** (26,54) |
André Mendonça |
16/12/2021 |
– (27/12/2047) |
0,04** (26,04) |
Média aritmética: |
10,89 |
||
Média aritmética sem os falecidos no exercício do cargo (*): |
13,75 |
||
Média aritmética sem membros atuais (**) nem os falecidos (*): |
13,07 |
||
Média aritmética apenas do tempo máximo no cargo dos membros atuais (números em parênteses): |
22,47 |
||
Média aritmética global considerando o tempo máximo no cargo dos membros atuais: |
16,16 |
Tabela 1: cálculo de permanência dos Ministros do STF. Fonte: CHILELLI (2022), adaptado.
De 1988 a 2021, a permanência média na Suprema Corte foi 10,89 anos. Esse número, porém, é distorcido pelos falecimentos dos min. Menezes Direito e Teori Zavascki. Calculando-se a média sem esses nomes, e ignorando aqueles ainda no cargo, o resultado é 13,07 – dado, creio, mais representativo. Em perspectiva, a média máxima apenas dos membros atuais é quase o dobro: 22,47 anos. O que essa diferença indica é que há um potencial de crescimento significativo na manutenção de uma mesma composição na Corte. Em caminho inverso, a estadia das autoridades responsáveis pela escolha desses juízes é sempre a mesma, ressalvada a chance de reeleição – que, sendo majoritária para ambos os cargos, são sempre custosas e nunca garantidas.
Quantas e quais inovações um novo ministro pode mover na jurisprudência? Como suas decisões, acertadas ou erradas, têm potencial de melhorar ou piorar a vida dos cidadãos? Diante de um leque tão complexo de questionamentos, é imprescindível saber quantos anos tem cada novo indicado ao Supremo. Tal informação é o único indicativo do tempo que o indivíduo ficará em posição de extraordinário poder.
Faz sentido, então, a preocupação com que agentes políticos sem estabilidade possam usar sua capacidade de indicação visando uma manutenção indireta no poder. Tal estratégia é debatida por PRADO e TÜRNER (2010) e intitulada como “maximização”. Em suma, as autoras sustentam que a classe política procuraria manter sua influência na máquina estatal por meio de uma grande quantidade de indicações (“dimensão numérica”) e apontamentos de candidatos jovens que perdurassem nos cargos (“dimensão temporal”). A discussão é continuada por ARGUELHES e RIBEIRO (2010) que, adotando posição cética quanto à existência desse uso, demonstram que, ao menos até o min. Menezes Direito, a idade média dos indicados não teve tendência de queda. Em que pese ainda não haja dados suficientes para uma tréplica, creio que o cenário que se monta tende à constituição da maximização numérica: basta notar que os últimos três apontados ao STF tinham todos menos de 50 anos. No tocante à maximização temporal, a recente aprovação da PEC 32/21 é outro ponto a inspirar atenção.
O texto da PEC 32/21 trouxe novo limite de idade máxima à indicação ao tribunal constitucional (70 anos). Antes de tudo, vale registrar que o tema é antigo: desde 1995, debates no Congresso propunham essa regra2. O argumento do parecer de aprovação da CCJ do SF criticou o antigo teto de 65 anos pelo mesmo acarretar no ”desperdício do conhecimento e experiência acumulados” dos juristas mais idosos, estando também em desalinho com a idade de aposentadoria compulsória estabelecida em 2015.
Em que pese o argumento seja razoável, há um efeito subjacente nesse novo limite que deve ser considerado: a permanência mínima no STF agora passa a ser de apenas cinco anos. Isso significa que uma renovação constante do tribunal ficou muito mais viável – o que favorece eventual grupo político interessado em ganhos indevidos pela via da maximização numérica.
Se antes o intervalo de idade exigia a manutenção do nome por no mínimo dez anos, a nova regra faz com que a rotatividade dos juízes constitucionais possa coincidir com a dos senadores ou presidente – ou, até mesmo, ser mais frequente do que a deles. Na prática, um chefe de Estado reeleito terá meios de indicar dois nomes para o mesmo assento do STF: um com 70 anos, como um “nome provisório” e/ou “politicamente consensual”; e outro mais jovem, ao final de seu segundo mandato, para preservar sua influência e reduzir o número de novas indicações pelo seu sucessor3. Desse último ponto, repare-se, cai por terra qualquer argumento defendendo a nova regra por permitir uma “oxigenação constante da Corte”. A intenção pode ser boa, mas a realidade pode ser má.
O que me parece, portanto, é que a aprovação da PEC 32/21 traz mais benefícios à classe política do que aos jurisdicionados. Os argumentos pelo aproveitamento de velhos talentos e oxigenação do Judiciário são, desse modo, uma cortina de fumaça – ou, talvez seja mais ilustrativo dizer, uma miragem por cima das finas areias do deserto.
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ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Indicações presidenciais para o Supremo Tribunal Federal e seus fins políticos: uma resposta a Mariana Prado e Cláudia Türner. In Revista de Direito Administrativo, vol. 255, p. 115 – 143. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010.
CHILELLI, Victor Magarian. A Seleção dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: um estudo descritivo sobre suas normas, bastidores, críticas e proposições. Rio de Janeiro, 2022, 204p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientação: Prof. Dr. Adrian Sgarbi.
PRADO, Mariana; TÜRNER, Cláudia. A democracia e seu impacto nas nomeações das agências reguladoras e ministros do STF. In Revista de Direito Administrativo, n. 250, p. 27 – 74. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010.
1 A Constituição Norte-Americana de 1787 diz em seu art. III, seção I, que o juiz ficará no cargo “enquanto bem servir”, isto é, até não ter condições de saúde para trabalhar, decidir sair da função ou, é claro, falecer.
2 As PEC n. 57/1995 (SF), 113/2015 (CD) e 11/2018 (SF) também almejaram o aumento da idade máxima para 70 anos.
3 Possibilidade essa já aventada por PRADO e TÜRNER (2010, p. 4).