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Fatos e recursos nos Tribunais Superiores – Uma combinação impossível?

Em função da complexidade e da relevância dos casos que hoje são submetidos à apreciação judicial, somada à função criativa que vem sendo exercida abertamente pelo Poder Judiciário, é que os Tribunais Superiores não podem se furtar a examinar fatos.

6/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

É corriqueira na doutrina tradicional a afirmação no sentido de que, para o julgamento de recursos especial e extraordinário, não importam fatos. Duas súmulas existem em que esta regra está estampada: uma do STJ e outra do STF.1

Mas, será que as coisas ainda acontecem dessa forma nos Tribunais Superiores?

Um fenômeno que vem chamando a atenção nos últimos tempos é o aumento exponencial da quantidade de casos levados ao Judiciário, incluindo questões relevantíssimas para a sociedade. Correlatamente, vem-se percebendo, no mundo todo, que a função dos Tribunais Superiores vem, inegavelmente, se alterando nos últimos tempos. Está-se tornando cada vez mais “criativa”.

Hoje se reconhece que o direito é fruto da atuação conjunta do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Entende-se ser simplista a afirmação de que “temos todos que agir de acordo com a lei”. De fato, os indivíduos e as empresas pautam suas condutas a partir da norma positivada interpretada pelos Tribunais, notadamente por aqueles cuja função é justamente a de dar a última palavra a respeito do sentido das normas que emanam do Poder Legislativo: o STJ e o STF.

É por isso que se atribui, atualmente, um sentido um pouco diferente daquele que tradicionalmente se atribuía à função conhecida como nomofilatica ou nomofilacica dos Tribunais Superiores.2 Se, antes, esta função era concebida como o apego à norma escrita, devendo os Tribunais Superiores controlar as decisões proferidas por outros órgãos, verificando se estas estariam ou não de acordo com a lei,3 atualmente, a visão que predomina é a de que os Tribunais Superiores constroem o sentido da norma, de forma muitas vezes bastante criativa. Este controle das decisões dos outros órgãos do Poder Judiciário, no julgamento do recurso especial, principalmente do recurso especial repetitivo, e nos recursos extraordinários, acontece a partir do sentido da norma pelo qual terá antes optado o Tribunal Superior. Usa-se aqui o verbo optar propositadamente porque, via de regra, as normas comportam mais de uma interpretação.

Justamente em função da complexidade e da relevância dos casos que hoje são submetidos à apreciação judicial, somada à função criativa que vem sendo exercida abertamente pelo Poder Judiciário, é que os Tribunais Superiores não podem se furtar a examinar fatos.

Por isso é que já não se pode dizer que há uma regra absoluta no sentido de que aos Tribunais Superiores não importam fatos. Importam, exclusivamente, questões “de direito”.

A necessidade de que se levem fatos em consideração se revela marcadamente relevante quando se pensa que ambos os Tribunais Superiores brasileiros têm o poder de proferir decisões que consistem em precedentes vinculantes: o STJ o faz quando julga recursos repetitivos, e o STF quando julga tanto recursos avulsos, entre A e B, realizando o controle difuso, no regime da repercussão geral.

A doutrina não discrepa4 em reconhecer que aqui se está diante de três espécies de precedentes vinculantes, que, se desrespeitados, geram a possibilidade do manejo da reclamação com o objetivo de que a decisão que se afasta do precedente qualificado ou vinculante seja cassada e corrigida.5

Na verdade, o que há de peculiar nesta análise de fatos que deve muitas vezes ser feita pelo STJ e pelo STF é que estes têm importância para o resultado da interpretação e não podem ser afastados ou excluídos do iter do raciocínio interpretativo.6

Só a possibilidade de intervenção de amici curiae no julgamento dos recursos nos Tribunais Superiores, somada à possibilidade de que determine a realização de audiências públicas já é um indício bastante veemente de que fatos devem ser levados ao Tribunal, devem ser explicados e esclarecidos, para que o direito seja adequadamente interpretado, e a decisão seja proferida de acordo com as reais necessidades da sociedade naquele momento.

Muito frequentemente, nos dias que ora correm, o direito não é mais interpretado apenas com base nos métodos tradicionais de interpretação: literal, sistemático, histórico etc.

O esclarecimento a respeito de fatos, cada vez mais frequentemente, é relevante para se dar um sentido ao texto normativo.

Um bom exemplo de caso em que a descrição de fatos foi crucial para que a decisão do STJ pudesse ser proferida, foi aquele em que se discutiu a validade da cláusula contratual que transfere ao promitente comprador, a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária. O cerne da discussão, portanto, consistia na licitude da transferência da comissão ao comprador, desde que observado o dever de informação e transparência por parte do fornecedor.

Neste caso, julgado em 06/09/16, cujo relator foi o min. Paulo de Tarso Sanseverino, houve audiências públicas e vários amici curiae se manifestaram. A decisão foi no sentido da licitude da transferência da comissão de corretagem ao comprador, desde que previamente informado o consumidor sobre o preço total da aquisição da unidade autônoma, com destaque do valor da comissão de corretagem no contrato. E o argumento que sensibilizou o Tribunal foi o de que a comissão, por remunerar o corretor imobiliário, tem papel fundamental no mercado, porque atua para diminuir a assimetria de informação entre os contratantes. Portanto, sua remuneração deve compor o preço do imóvel e, dessa forma seria legítima sua cobrança, não havendo abusividade na cláusula que a estabeleça, desde que devidamente destacada no contrato.

Os amici curiae, a nosso ver, podem ter a função de levar ao Tribunal a sua versão dos valores sociais, que podem ser, em alguns casos, tão relevantes quanto os fatos.

É comum, por exemplo, que cada um dos amicus curiae leve à corte a visão de um segmento. Foi o que aconteceu, por exemplo, na ADPF 324-DF em que se decidiu sobre a inconstitucionalidade da súmula 331 do TST. Foram ouvidos vários segmentos da sociedade, como, por exemplo, a própria autora, a Confederação Nacional do Agronegócio – ABAG; a Confederação Nacional de Serviços – CNS; a Confederação Nacional da Indústria – CNI; a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT e a Central Única dos Trabalhadores - CUT.

A decisão foi no sentido de que a Constituição Federal não impõe a adoção de um modelo de produção específico; não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis; tampouco veda a terceirização das atividades meio ou atividades fim de uma empresa. A terceirização tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade. A corte se sensibilizou majoritariamente pelo argumento de que os avanços em tecnologia da informação, transporte e logística, que possibilitam a conexão de agentes situados em locais distintos, conduzem à consolidação de um modelo novo por meio do qual as empresas optam por manter sob sua condução apenas o núcleo da atividade fim e terceirizam não apenas as atividades meio, mas parte das atividades fim. Passam a atuar por meio de uma cadeia produtiva organizada em rede, em um mundo globalizado e cada vez mais integrado tecnologicamente. Os países que resistem a tal “lógica” e estrutura de produção e rejeitam a terceirização, encontram-se em indiscutível desvantagem econômica, porque a terceirização tornou-se um fenômeno global.

Impossível deixar de citar, como exemplo significativo da necessidade de se levarem em conta fatos para interpretação do direito, a ADPF 54. Neste veículo de controle concentrado de constitucionalidade se discutiu sobre ser ou não constitucional criminalizar o aborto de feto anencefálico.

Salta aos olhos serem imprescindíveis informações a respeito da perspectiva de vida extrauterina do feto anencefalo, sendo este, talvez, o principal problema cuja solução era imprescindível para a decisão. Da audiência pública participaram entidades representativas de diversos segmentos sociais, religiosos e científicos. Decidiu-se que seria conveniente ouvir não só os amici curiae, mas também pessoas com experiência e autoridade na matéria. Sensibilizou a corte a afirmação de um dos especialistas ouvidos no sentido que um feto anencefalo não tem potencialidade de vida, para embasar a decisão, por maioria, no sentido de não se tratar de conduta criminosa.7

Nota-se portanto que a necessidade de que os Tribunais Superiores se inteirem de fatos, se faz cada vez mais evidente, que muitas vezes devem ser esclarecidos por cientistas, técnicos, médicos ou  economistas, e escutem o relato de segmentos sociais a respeito de valores, principalmente quando se trata de um caso que envolve segmentos da sociedade que cultuam valores até certo ponto contraditórios, existe tanto no julgamento de recursos que produzem precedentes vinculantes, quanto nas decisões proferidas no controle concentrado de constitucionalidade.8

Essa discussão obviamente tangencia o problema do consequencialismo, já que numa medida considerável devem os fatos ser levados em consideração não só para que se atribua o adequado sentido à norma, mas também para que se levem em conta numa certa medida os reflexos que uma decisão no sentido x ou no sentido y possam ter no mundo real.

Percebe-se que um tema desta complexidade não pode ser exaurido num artigo como este. Costumo dizer que esses temas são uma porta para Nárnia: você abre a porta e se depara com um Mundo Novo, infinitamente rico, cujo estudo além de relevante é fascinante.

_________

1 Súmula 279, STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”; Súmula 7, STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

2 “O primeiro problema, decorrente da crise do positivismo jurídico, consiste em questionar o objeto da tutela nomofilática. Se a concepção de lei e de sua interpretação sofreu profundas alterações, deixando de lado a noção clássica de que ao juiz caberia tão somente ser la bouche de la loi e assumindo uma ideia de realização da ordem jurídica tomada holisticamente, perdeu o sentido a tutela incondicional da lei, concebida em sua literalidade.

Isso, pensamos, é o pressuposto teórico das modernas correntes que falam em nomofilaquia dialética ou tendencial, de modo a significarem essas expressões a persecução da unidade do direito, e não mais da lei, mediante a utilização de processos hermenêuticos que auxiliem na investigação da solução mais racional e afinada com preceitos constitucionais. Em outras palavras: utiliza-se um processo dialético para possibilitar ao juiz aferir, entre as múltiplas interpretações possíveis, aquela que melhor equacione a lide". (ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores: precedentes no direito brasileiro. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 321).

3 “Oggi e universalmente diffusa la consapevolezza che l’attività interpretativa della giurisprudenza racchiude in se ineliminabili momenti di creazione del diritto. Il giudice non è più vissuto come la mitica bouche de la loi, formula storicamente condizionata nata Oltralpe, in un periodo in cui la dottrina della divisione dei poteri costituiva il segno che il potere era concretamente diviso tra la borghesia rivoluzionaria che aveva conquistato il potere legislativo e i residui feudali dello stato assoluto ancora incombenti sul potere giudiziario.

Le espressioni diritto vivente e diritto giurisprudenziale, moneta spicciola del discorso giuridico, ci rammentano ad ogni passo una semplice e banale verità: il giudice non solo crea il diritto del caso concreto attraverso l’attività di sussunzione dei fatti accertati nelle singole fattispecie legali (creando insieme cosi, nel tempo, un diritto dei casi identici o analoghi che non potrebbe essere appannaggio del legislatore, a meno di immaginarlo capace di abbandonarsi ad un impossibile furore analitico); il giudice crea anche regole nuove derivandole dai principi, aumentando l’estensione di clausole generali, dando rilievo all’equità, legittimando regole emergenti dalla prassi, secondo una tassonomia che prendo a prestito da Guido Alpa (cf. La creatività della giurisprudenza. La giurisprudenza e le fonti del diritto, Diritto giurisprudenziale, a cura di Bessone, Torino, 1996, p. 105)". (CHIARLONI, Sergio. Funzione nomofilattica e valore del precedente. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 225-243, especialmente p. 226).

4 Com exceção, Daniel Mitidiero, que, por sua vez, entende que “O Código de 2015 vinculou o caráter obrigatório do precedente ao cabimento da reclamação para as Cortes Supremas. Ao fazê-lo, cometeu três equívocos. Em primeiro lugar porque a vinculação ao precedente independe da existência de um mecanismo específico para a sua imposição. Em segundo, porque as Cortes Supremas não têm por função realizar controle imediato da interpretação e aplicação de seus precedentes. Em terceiro, porque a reclamação serve para a garantia da autoridade da decisão do caso e apenas excepcionalmente para a tutela do precedente retratado em súmula vinculante”. (MITIDIERO, Daniel. Reclamação nas Cortes Supremas: entre a autoridade da decisão e a eficácia do precedente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 13).

5 Ver, por todos, Pedro Miranda: “Diante da imposição de um sistema de precedentes previsto no CPC/2015, a reclamação passa a assumir o papel de garantidor da observância de acórdão ou precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência, sendo cabível de ato que deixe de aplicar ou aplique equivocadamente o referido julgado. É fato que, implementada a vinculação dos precedentes dos tribunais, surge a necessidade de ampliar a utilização da reclamação a fim de cassar as decisões judiciais e administrativas que as desrespeitem. Cabe reclamação se não houver observância do precedente obrigatório. Ao se referir a “julgamento de casos repetitivos” (inciso IV), o legislador quis dizer que o precedente paradigmático pode ser oriunda tanto do incidente de resolução de demandas repetitivas, como de decisão de recursos excepcionais repetitivos. Logo, “cabe reclamação para o tribunal que julgou o incidente de resolução de demandas repetitivas caso afrontada a autoridade dessa decisão (Enunciado 349 do FPPC)”. (MIRANDA DE OLIVEIRA, Pedro. Novíssimo Sistema Recursal Conforme o CPC/2015. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 241).

6 MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, capítulo VIII, p. 686.

7 Este exemplo é lembrado por Marinoni (MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 705). O autor afirma que esta decisão significa uma nítida interpretação constitucional construída com base nos fatos.

8 Parte da doutrina chega a afirmar que além destas manifestações genéricas a respeito de fatos, seria absurdo não consentir que o Tribunal examinasse os fatos da própria causa, consubstanciados nas provas dos autos. (MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, capítulo VIII, p. 696).

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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