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Possibilidade e alcance do uso do incidente de desconsideração de personalidade jurídica no âmbito recuperacional

Breve análise da recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

29/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A autonomia patrimonial, potencialmente o mais relevante princípio do direito societário, é uma técnica de segregação de riscos responsável em grande medida pelo estímulo da economia globalizada e pela atração de investimentos. Em razão dela, os bens, direitos e obrigações da pessoa jurídica não se confundem com os de seus sócios e administradores, possuindo cada ente, físico e jurídico, patrimônio individualizado e segregado. Isso significa que, via de regra, os credores da pessoa jurídica não podem cobrar diretamente dos sócios ou administradores, vez que a obrigação não foi constituída por eles de forma direta. Em igual sentido, a pessoa jurídica não pode ser executada por dívidas da pessoa física que dela detém participação societária.

Ocorre que a existência dessa autonomia de personalidade e de patrimônio igualmente abre fértil campo para práticas fraudulentas. As hipóteses são as mais amplas possíveis, não sendo incomum a utilização dessa ficção jurídica com a finalidade de ou desrespeitar a lei, ou fraudar credores, na contramão do escopo para o qual ela foi originalmente criada.

Para combater tais práticas, desenvolveu-se a teoria do disregard of legal entity ou lifiting the corporate veil, originalmente nos tribunais norte-americanos, introduzida à academia brasileira por intermédio de Rubens Requião. Segundo o autor, deparado com o abuso de direito e a fraude no uso da personalidade jurídica, caberia ao juiz competente indagar se deve “consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos”1.

Com base no referido preceito, a teoria passou a ser aplicada pelos tribunais pátrios, apenas sendo incorporada à legislação em 1990, com a entrada em vigor do CDC. Em 2002, o Código Civil trouxe permissivo geral, e muito mais aproximado à Doutrina da Disregard, sendo permitido o levantamento do véu societário em duas hipóteses: a. abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio da finalidade; e b. abuso da personalidade jurídica diante da confusão patrimonial. Em 2019, a Lei da Liberdade Econômica tornou mais claros os critérios para a desconsideração da personalidade jurídica, incluindo os parágrafos primeiro e segundo ao art. 50 do Código Civil.

O procedimento para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, IDPJ, por seu turno, ganhou rito próprio com a entrada em vigor do CPC de 2015, por meio do art. 133 e seguintes, podendo ser resumido da seguinte forma: I. o incidente será instaurado pela parte ou pelo MP, quando lhe couber intervir; II. sua instauração só é dispensada caso a parte pleiteie a desconsideração na petição inicial; III. o incidente é cabível em qualquer fase do processo de conhecimento, cumprimento de sentença e execução de título executivo extrajudicial; IV a instauração do incidente suspende o processo principal, devendo ser citado o sócio ou a pessoa jurídica para oferecer resposta e requerer provas; V. concluída a instrução, a questão será resolvida por decisão interlocutória.

Vê-se, pois, que a legislação em muito evoluiu, trazendo maior segurança jurídica e requisitos específicos para o uso desse ferramental que excepciona a regra de segregação patrimonial e limitação de responsabilidade.

Fazendo uso de tal técnica, em decisão bastante controversa proferida em setembro de 2021, o juiz da 3ª vara cível da comarca de Jundiaí, Marco Aurelio Stradiotto de Moraes Ribeiro Sampaio, manteve o deferimento do processamento de IDPJ no âmbito dos autos de recuperação judicial do Grupo Coroa, afastando as preliminares alegadas, bem como jugou parcialmente procedente a citada medida para o “fim de que figurem todos [os réus, à exceção de Ipanema,] como membros do grupo recuperacional”.

Em outras palavras, o citado julgador não apenas suspendeu temporariamente a eficácia da personalidade jurídica, permitindo o acesso ao patrimônio dos sócios das devedoras, nos termos da teoria do disregard, como também estendeu os efeitos do processo recuperacional a todos os réus do Incidente.

O decisum, ainda, fixou honorários sucumbenciais ao administrador Judicial das recuperandas, longa manus do juízo, a quem, a rigor, ao menos no âmbito recuperacional, não caberia defender credores ou devedora, mas sim fiscalizar as atividades e garantir a idoneidade do processo2.  

A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ de São Paulo, por seu turno, em acórdão unânime prolatado no último dia 16 de março, confirmou a decisão de primeiro grau, apontando que o deslinde conferido busca “impor àqueles que desviam recursos ou se beneficiam de tais atos, a responsabilidade pelos prejuízos e dívidas decorrentes de tais práticas”. Segundo Ricardo Negrão, relator do acórdão, “exige-se solução que preserve o interesse coletivo e se consagre a finalidade de preservação da atividade econômica de maneira organizada, finalidade que somente será atingida com a necessária integração das demais integrantes do grupo”.

Além de reiterar os fundamentos abordados pelo juízo a quo, o acórdão deu novo enfoque à temática, trazendo como pedra angular para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica a possibilidade de realizar a consolidação substancial, agora legalmente contemplada pelo art. 69-J, da lei 11.101/2005. Além de fazer expressa menção à norma, apontou-se que, “inafastável a desconsideração determinada, segue a mesma sorte a ordem de reunião e emenda no pedido de recuperação judicial em trâmite sob a forma consolidada substancialmente”. Ao final, arrematando a questão, afirmou-se ser necessária a “modificação do polo ativo da recuperação judicial atendendo-se à Lei de Regência”.

Sem adentrar no mérito da questão, especialmente no que se refere ao preenchimento dos requisitos do art. 50, da codificação civil pátria, e ao mesmo tempo louvando o intuito das decisões de primeira e segunda instâncias, que inegavelmente buscam tutelar de forma eficiente e isonômica o direito dos credores, fato é que alguns aspectos de inequívoca relevância foram deixados de lado. Tratar-se-á de alguns deles.

O primeiro diz respeito à possibilidade de se realizar a consolidação substancial sem que a sociedade trazida ao processo tenha concordado em dele participar enquanto recuperanda. Se de um lado o juiz de primeira instância, respeitosamente, pareceu passar ao largo da temática, utilizando a analogia da aplicação de IDPJ para medidas falimentares, sem enfrentar as imensas diferenças entre ambos os procedimentos e as particularidades da medida recuperacional, o TJSP citou, en passant, o art. 69-J, da LREF, ignorando previsão expressa no sentido de que os devedores já devem estar em consolidação processual para que a substancial seja autorizada.

Ainda, parece ter havido questionável, e diz-se questionável por realmente se questionar, sem qualquer conclusão definitiva sobre o ponto, uso e extensão da técnica de desconsideração da personalidade jurídica, tendo ela ido muito além da penetração do véu. Segundo o desenvolvimento da doutrina do disregard, a desconsideração não busca desconstituir a autonomia patrimonial da pessoa física em relação à jurídica, nem mesmo transformar sociedade e sócios em um ente uno. Trata-se de suspensão temporária e pontual da eficácia da ficção jurídica, permitindo que o patrimônio dos sócios seja atingido.

No caso em apreço, todavia, além de permitir que os sócios tivessem seus patrimônios atingidos, estes foram chamados ao processo recuperacional, obrigados a formular plano, apresentar demonstração de viabilidade, laudo econômico-financeiro, relatórios contábeis, declaração de bens e demais documentos, se submeter a fiscalizações, poder ter suas falências decretadas, dentre inúmeros outros aspectos. E isso sem que a legislação recuperacional atual, recentemente analisada e alterada, tenha permitido essa possibilidade.

Ora, não se questionaria, ao menos não essa autora, a possibilidade de o incidente ter sido formulado no âmbito recuperacional, com desconsideração ampla da personalidade jurídica das devedoras, válida para todos os credores sujeitos à RJ, para que dela fizessem uso em medidas executivas ou de cobrança autônomas. Agora, trazer para processo recuperacional, com elevados custos e alta complexidade, partes que a ele não desejam se submeter parece, no mínimo, conclusão que demande amplo estudo, fundamentação e definição pormenorizada dos procedimentos a serem seguidos. E isso, todavia, não parece ter ocorrido no caso em comento.

O tema aqui abordado, inevitavelmente, demanda criteriosa e profunda análise, ainda a ser realizada.

_____________________

1 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (Disregard Doctrine). In. Revista dos Tribunais. v. 803. São Paulo: RT, 2002.   

2 Conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, dos quais cita-se como exemplo o REsp 1759004/RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, julgado em dezembro de 2019.

Mayara Roth Isfer Osna
Advogada em Curitiba, mestre em Direito Comercial pela USP, graduada em direito pela UFPR e em contabilidade pela FIPECAFI, Diretora Acadêmica do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial.

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