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Da alínea b, I, do artigo 1.030 do CPC: ambiente lotérico?

Entre as disposições introduzidas, está a alínea b, I, do art. 1.0303, que, em algumas situações, parece criar sérios problemas ao jurisdicionado.

19/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

No afã de limitar a subida de processos aos Tribunais Superiores, o legislador, por meio da lei 13.256/20161, criou mecanismos de filtro através do art. 1.030 do CPC, visando desafogar as duas cortes com um número restrito de magistrados2

Entre as disposições introduzidas, está a alínea b, I, do art. 1.0303, que, em algumas situações, parece criar sérios problemas ao jurisdicionado, causando incertezas e ambiente lotérico, exatamente aquilo que na nossa interpretação era um dos objetivos a serem evitados quando o legislador fortaleceu o sistema de precedentes, mirando, entre outros, a segurança jurídica. 

Aqui vale afirmar que não se desconhece que os recursos aos Tribunais Superiores não têm a função de julgar casos específicos, como se fosse uma espécie de instância recursal dos Tribunais Estaduais, conforme doutrina o ministro aposentado do STJ Athos Gusmão Carneiro em sua obra Recurso Especial, Agravos e Agravo Interno4. Contudo, conforme aponta a mesma obra, uma das funções desses recursos é preservar a “lógica” jurisprudencial que, conforme explicitaremos, parece ser afetada em algumas situações.      

Antes de mais nada, interessante notar que na primeira redação do CPC de 2015, o art. 1.030 não previa a realização de juízo de “admissibilidade” nos Tribunais Estaduais dos recursos de competência dos Tribunais Superiores. Entretanto, ao inserir as disposições da lei 13.256/16 e alterar o art. 1.030, o legislador reintroduziu a sistemática do exame de “admissibilidade”, a ser realizado pelas presidências e/ou vicepresidências dos Tribunais Estaduais, dependendo do regulamento interno do Tribunal Estadual, esta legitimidade pode ser transferida para os presidentes de Seções (direito privado, público e criminal, exatamente como ocorre no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo). 

Feito este introito, chegamos ao ponto nerval da reflexão, que é a negativa de seguimento de recursos aos Tribunais Superiores interpostos perante os Tribunais Estaduais, com base na hipótese contemplada pela alínea b, inciso I, do art. 1.030, introduzida ao ordenamento pela lei 13.256/16. 

Esta situação se dá quando o Tribunal Estadual, por meio do presidente ou vice-presidente (também presidentes de seções), de forma monocrática, nega seguimento ao recurso, com espeque no choque entre a tese recursal e o entendimento exarado em julgamento de recurso repetitivo. 

Neste momento, vale mencionar o defendido pelo professor José Miguel Garcia Medina no artigo acima mencionado, emerge o primeiro impasse da lei 13.256/2016, ensejando a justificativa das aspas no termo admissibilidade, já que a análise realizada pelo Tribunal Estadual não tem natureza de requisito processual, pelo que, em tese, não teria natureza jurídica de juízo de admissibilidade. 

Parafraseando o doutrinador, a redação introduzida pela lei 13.256/16 criou um terceiro juízo ao sistema, uma espécie de “tertium genus” à lei processual, “que se encontra entre os juízos de admissibilidade e de mérito”.

Dito isto, importante esclarecer que a decisão do tribunal estadual que nega seguimento ao recurso fundado na alínea b, I, do art. 1.030, ao contrário das decisões da presidência do tribunal que não admite o recurso, não enseja agravo de instrumento ao tribunal superior (§ 1.º do art. 1.030 c/c artigo 1.042, caput, 1.ª parte, do CPC), mas agravo interno, que deverá, de acordo com o regimento interno de cada tribunal, ser julgado pelo órgão especial ou pelo pleno do Tribunal Estadual, conforme §2º, do art. 1.030 e art. 1.021, ambos do CPC.

E aqui surge a primeira hipótese para o uso ilustrativo do termo loteria. Isto porque, são observadas hipóteses em que há interpretação divergente entre o caso concreto e a súmula utilizada como fundamento para aplicação da alínea b, I, do art. 1.030 CPC, bem como hipóteses em que a interpretação é diversa daquela que vêm sendo adotada pelo Tribunal Superior.

Exemplifico a situação com texto por mim publicado no Migalhas em 23/02/20225, quando iniciei a discussão do tema, mencionando a posição de alguns tribunais estaduais acerca da súmula 176 do STJ6 e o CDI (certificado de depósito interbancário) enquanto indexador de contratos bancários. 

Ocorre que alguns Tribunais Estaduais vêm fortalecendo jurisprudência contra o CDI como índice de indexação de contrato bancário, o que fundamentam na súmula 176. Contudo, o STJ vem julgando em sentido diametralmente oposto, dizendo que à hipótese não se aplica o entendimento, negando, por assim ser, qualquer hipótese de ilicitude.  

Outro exemplo ilustrativo é a emblemática súmula 479 do STJ7- tema 466.  

Hoje não raras vezes se observa a situação em que há aplicação da súmula 479 de forma genérica, sem se ater ao ratio decidendi constante dos leading cases (resp 1197.929-PR e resp 1197.782- PR, relatoria min. Luis Felipe Salomão) que dão origem ao preceito sumulado. 

Em suma, é observada a aplicação da súmula em diversas situações que envolvem responsabilidade civil de instituições financeiras, ignorando as hipóteses de excludentes, nas quais deveria haver o necessário distinguish, em especial em situações de fortuito externo, que inclusive é admitido como excludente de responsabilidade na fundamentação dos leading cases que deram origem à orientação.   

Com a aplicação equivocada da súmula 479 é criado um ambiente em que as instituições financeiras têm responsabilidade praticamente ilimitada, que, no nosso entender, nunca foi o interesse do Legislador, muito menos do STJ ao sumular a matéria.

Aqui, vale dizer, não se discute a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre cliente e instituição bancária, que, salvo melhor juízo, é inquestionável, inclusive sedimentado na súmula 297 do STJ8.  O que aqui se discute é que, não obstante a lei protetiva, há hipóteses de excludente de responsabilidade, inclusive muito bem delimitadas no art. 14, §3º, I e 2, do CDC. 

Assim, no caso da súmula 479, far-se-ia necessário o devido cotejo entre o caso concreto e o entendimento do STJ, em especial pelo efetivo teor dos leading cases, para que se apure a exata equidade entre eles e, assim,  ocorra o devido distinguish para os casos não aplicáveis.

Sobre a controvérsia, Lucas Pereira Araújo9 esclarece “num sistema sério de precedentes, não cabe entendimento equivocado da ratio decidendi. Ao reduzir a ratio à fundamentação muito casos sujeitos a aplicação do procedente podem ser desconsiderados, como também casos não se adequem a norma paradigma sejam julgados com base nela”. (G.N) 

Ainda na mesma obra de Lucas Pereira Araújo, é observado: ...o mesmo diploma processual assinala que o magistrado deve observar, na forma do art. 927, inciso III, “os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinários e especial repetitivos””. Continua, “o art. 1.038, §3º, estabelece que “do acórdão abrangerá a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida””. Outrossim, “o art. 489, §1º, inciso V, reza que é defeso ao julgador “se limitar a súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”. Ou seja, não é suficiente apenas invocação da tese jurídica, que é distinta da razão de decidir”. (G.N)

Igualmente, tem sido observado em alguns Tribunais Estaduais duas situações que nos parecem tão intrigantes quanto as demais trazidas no bojo dessa reflexão, gerando também ambiente lotérico, que é o fato de que, em muitos casos, não se admite sequer a oposição de embargos de declaração em face da decisão monocrática. Ora, este tipo de interpretação inviabiliza ainda mais o exercício do distinguish, em desrespeito ao direito das partes à motivação das decisões judiciais que, por assim ser, enseja violação ao devido processo legal, com evidente situação de cerceamento do direito de defesa.   

Na segunda hipótese, se observa que em muitos desses processos, apesar de exatamente idênticos, trazem decisões monocráticas diametralmente contrárias, já que alguns tem seu seguimento negado, desafiando agravo interno, enquanto outros são inadmitidos, gerando, nesta última hipótese, viabilidade de interposição de agravo de instrumento contra despacho denegatório de recurso especial/ extraordinário, ou seja, catapultando o recurso à análise pelo Tribunal Superior.        

Portanto, infelizmente não há sintonia quanto ao justo exercício do juízo de “admissibilidade” em alguns Tribunais Estaduais, gerando, sob esta ótica, e como já informado, mais uma hipótese de ambiente lotérico ao jurisdicionado, isto porque, em situações exatamente iguais, “uns alcançam o Olimpo, enquanto outros ficam no meio do caminho”.  

Todavia, voltando ao fio condutor desse texto, como já mencionado, contra a decisão monocrática que nega seguimento do recurso ao Tribunal Superior, o recurso desafiado é o de agravo interno. Contudo, este julgamento se dará pelo próprio tribunal a quo que, de forma monocrática, havia negado seguimento ao recurso. Portanto, aqui há alta chance do recurso ser desprovido, emergindo à parte inconformada novo e gravíssimo problema: a lei processual não prevê um recurso contra esta decisão colegiada. 

Neste momento, interessante abrir parênteses para mencionar uma hipótese de tentativa de destravamento para a situação relatada quanto a sumula 176, que nos parece possível após o julgamento do recurso especial 1.956.872 - SP (2021/0273700-6), datado de 1/2/22, quando o ministro Relator, Marco Aurélio Bellize, enfatiza: reforma do acórdão recorrido e da sentença, pois deve prevalecer a cognição atual desta Corte Superior, em que a matéria foi efetivamente debatida, não se cuidando de mera replicação de julgados outros do STJ. (g.n.)

Pelo teor desta fundamentação, o destravamento seria possível pelo exercício do julgamento alerta. 

Conforme Fredie Didier10 em seminário na OAB/MG o julgamento alerta se amolda aos julgados mencionados, pois na fundamentação do recurso especial 1.956.872 – SP, o STJ defende de forma clara e inquestionável sua posição contrária à tese defendida pelos Tribunais Estaduais, enfraquecendo a aplicação do preceito por torná-lo suspeito pelo próprio Tribunal que o criou. 

Alerta ainda o professor que mesmo se tratando de uma interpretação sofisticada do ponto de vista processual, o julgamento alerta se mostra altamente compatível com o ordenamento vigente que, por assim ser, enseja a viabilidade do destrancamento em situações análogas à da súmula 176. 

De outro lado, vale esclarecer que continuamente a doutrina vem se esforçando em encontrar soluções para a situação, sendo que os professores Julia Lipiani, Alexandre Câmara, Eduardo Talamini e Luiz Rodrigues Wambier, defendem o cabimento de novo recurso especial/extraordinário, enquanto que os professores Daniel Mitidiero, Sérgio Cruz Arenhart e Luiz Guilherme Marinoni, defendem o cabimento de agravo em recurso especial ou extraordinário11

Porém, voltando ao professor Didier, no mesmo seminário acima mencionado, ele traz como solução à hipótese a reclamação, em especial pelo fato de que se teria aplicado indevidamente a tese ao caso concreto. Ou seja, a reclamação constituiria “instrumento autorreferência, já que necessária a correção da aplicação do precedente onde ele não caberia”.

Dierlei Nunes e Marina Carvalho Freitas12 pensam da mesma forma, conforme artigo publicado na Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

Dito isto, nos parece, salvo melhor interpretação, em especial para as duas hipóteses acima tratadas, súmulas 176 e 479, ambas do STJ, que a reclamação seria a melhor escolha, inclusive por encontrar reverberação no próprio Tribunal Superior, conforme a Rcl 10.776/PR, já que, neste caso, o julgamento que dá ensejo a reclamação provém de acórdão que incorreu em equívoco ao inadmitir recurso especial com base em recurso repetitivo, uma vez que não se aplicava o entendimento na matéria em debate. 

Contudo, o fato é que hoje os Tribunais Superiores vêm solidificando jurisprudência defensiva, sob o fundamento de irrecorribilidade da decisão colegiada do Tribunal Estadual. Neste sentido, fundamentação do ministro Luis Felipe Salomão em decisão monocrática no AREsp 1.170.332/SP, quando afirma que a decisão do agravo interno é definitiva, não desafiando qualquer tipo de recurso.

Ao manter a linha de pensamento adotada, mesmo que de forma velada, obriga-se o jurisdicionado a pensar em outras soluções, inclusive a impugnação do acórdão por meio de ação rescisória, fundamentada no parágrafo 5 do art. 966 do CPC. 

Todavia, para esta situação, não há como ignorar as críticas, como aquelas feitas pelos professores Dierlei Nunes e Marina Carvalho Freitas ao mencionar Bovendorp no artigo acima mencionado, dizendo que se trata de hipótese perigosa, uma vez que “pode acabar por permitir aos juízes de todas as instâncias promoverem a superação das teses jurídicas”, para as quais não teriam competência. 

A hipótese também se mostra complicada, para não dizer inviável, quando diante de situações de ações repetitivas, como aquelas dos casos utilizados como ilustração a este texto, ou seja, que discutem as súmulas 176 e 479 do STJ, já que cada caso teria que gerar uma ação rescisória.  

Portanto, pode-se interpretar que a legislação, seguida do pensamento majoritário dos Tribunais Superiores, atenta contra o Estado Democrático de Direito, “permeado pelo processualismo constitucional democrático”, já que “não é razoável que a participação dos jurisdicionados seja restringida, ainda mais da forma tão brusca como fez a lei

13.256/16”, conforme dispõem os professores Dierlei Nunes e Marina Carvalho Freitas no artigo mencionado.

Ainda mencionado Dierlei e Mariana Carvalho Freitas, eles defendem que este tipo de entendimento “vai contra o modelo constitucional de processo brasileiro”, encarando “os precedentes como mero mecanismo de gerenciamento de processos repetitivos”, o que, também sob a nossa interpretação, é inadequado.

O professor Didier afirma que o engessamento observado através do art. 1030 e o pensamento atual dos Tribunais Superiores criam uma situação que evita a superação de precedentes, ensejando imutabilidade de decisões, que vai de encontro com princípios basilares do estado democrático de direito.

De outro lado, em obra organizada pelo professor Alexandre Freire13, é pontuado que alguns dos incisos do art. 1.030 trazem “potencial vício de inconstitucionalidade”, pois não alinhados aos artigos 102, III, e 105, III do CF, pois impedem que precedentes voltem a serem analisados. 

Urge, portanto, a necessidade de os Tribunais firmarem entendimento sobre qual o meio de impugnação é adequado para a situação, firmando orientação contrária à jurisprudência defensiva, já que, como mencionei no início do texto, não é crível que o jurisdicionado além de precisar contar com a diligência do seu patrono, necessite também de alta dose de sorte, já que existe grave distorção de decisões em sentido diametralmente oposto para casos exatamente iguais, que, por assim ser, dá ensejo ao denominado ambiente lotérico. 

___________________

Primeira lei que reformou o texto original do CPC 2015. Aqui se traz uma curiosidade: a Lei 13.256/2016 tem origem em projeto de lei tratado nas Câmaras legislativas no regime de urgência, tendo alterado o texto do Código antes mesmo da entrada de sua vigência

2 STJ possui 33 Ministros, enquanto o STF apenas 11

3 Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá

I – negar seguimento:

(...)

b) a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos;

4 Carneiro, Athos Gusmão, Editora Forense- 7ª Edição

5 https://www.migalhas.com.br/depeso/360293/divergencia-jurisprudencial-na-aplicacao-do-cdi-ao-contrato-bancario

6 É NULA A CLAUSULA CONTRATUAL QUE SUJEITA O DEVEDOR A TAXA DE JUROS DIVULGADA PELA ANBID/CETIP.

7 As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.

8 O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras

9 Precedentes Vinculantes em Recursos Especiais Repetitivos, Editora Dialética, 2022.

10 Freddie Didier Jr em Palestra ocorrida no Congresso de Processo Civil promovido pela OAB-MG, ao abordar a dogmática do art. 1030- https://www.youtube.com/watch?v=jQLZ4kmdhn0

11 MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. 3ª ed. São Paulo: Ed. R T, 2017. v. 2, p. 417 (versão e-book).

12 artigo 1.030 do CPC e a busca por uma interpretação adequada: meios para superação de precedentes.

13 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio Quinaud. Comentários ao artigo 1.030. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da (Org.) FREIRE, Alexandre (Coord. Executivo). Comentários ao Código de Processo Civil. De acordo com a Lei nº 13.363/2016 e com a EC n°. 94/2016. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 1.415.

Lucas de Mello Ribeiro
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Especializado em Direito Contratual e Relações de Consumo e em Gestão Administrativa de Contencioso de Massa pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC/SP. Sócio do escritório Silva Mello Advogados Associados

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