O nosso Código de Processo Penal data do ano de 1941. Foi editado durante o chamado Estado Novo (1882 – 1954) da história brasileira. Para entender o contexto da sua edição, faz-se necessário revisitar um pouco do ambiente político-filosófico do Brasil à época. Getúlio Vargas havia, anos antes, dado um golpe de Estado, instaurando no país o começo de um período ditatorial.
No âmbito internacional tínhamos a ascensão de históricas e importantes ditaduras pelo mundo: Adolf Hitler na Alemanha, Josef Stalin na antiga União Soviética, Francisco Franco na Espanha, Antônio Salazar em Portugal e Benito Mussolini na Itália. Em nosso país, houve clara inspiração da Constituição de 1937 naquelas vigentes na Itália e Polônia da época, também sob um regime claramente autoritário. Por essa razão, ela ficou conhecida como Constituição Polaca – adjetivo com tom pejorativo utilizado para designar um conjunto de leis e regramentos autoritários.
Considerando o ambiente político interno e externo à época da outorga da Constituição de 1937, não é difícil imaginar o teor e as características dela. A concentração exacerbada dos poderes do Estado na figura do presidente, a subjugação do Poder Judiciário pelo Poder Executivo, e o desfalecimento do Poder Legislativo demonstravam claramente o que estava por vir: um período marcado pelo abuso de direitos e prerrogativas por parte dos detentores de poder.
Conhecendo o cenário existente à época da promulgação da Carta Constitucional de 1937, não é difícil imaginar o teor do CPP – que viria a ser aprovado dali a alguns anos. Ainda hoje, mesmo após as diversas alterações legislativas promovidas na letra da lei, é possível verificar a autoridade e o caráter punitivista existente no CPP.
No âmbito da legislação brasileira, percebemos – ao longo de todos esses anos – alguns grandes e importantes avançados em termos de defesa de direitos e garantias individuais. Acontece que, novamente, o avanço – as vezes retrocesso – se dá sempre conforme o momento social do país. Ora se aprovam alterações mais autoritárias. Ora se aprovam medidas mais protetivas.
Não há qualquer avanço linear e contínuo na defesa de prerrogativas dos indivíduos frente ao poder punitivo estatal. É exatamente esse o ponto fulcral das críticas que se tece ao CPP, e as suas mais diversas a: o de não cumprir a contento o seu papel constitucional de ser uma defesa do indivíduo frente ao poder punitivo do Estado.
O Direito Penal está intimamente relacionado com o poder concedido pelos cidadãos ao Estado, através do contrato social, do uso da força para rechaçar determinados comportamentos não condizentes com a moral social. É através da lei penal que o Estado ganha a legitimidade para impingir uma sanção ao indivíduo que pratique determinada conduta considerada reprovável pela sociedade.
A partir do momento em que há uma série de regras a serem observadas para a aplicação da lei penal – regras essas conhecidas por todos, torna-se possível verificar possíveis abusos. Não só dão o status de garantia aos indivíduos, mas o próprio fato da existência de um “código de procedimentos” confere maior legitimidade à aplicação da lei penal.
Ora, se todos podem – e devem – verificar o cumprimento dos ditames legais para que se exerça a coerção estatal contra um indivíduo, fica – a priori – mais difícil a prática de abusos de poder. Pelo menos em teoria, esse é um raciocínio totalmente válido.
Para análise do papel do Processo Penal no sistema jurídico, podemos – e devemos – voltar às primeiras comunidades formadas. Relatos históricos de outrora demonstram à exaustão que, em tempos remotos, a resolução de conflitos era realizada através da vingança privada ou “autodefesa”.
O problema com esse tipo de resolução de litígios é que, de forma alguma ele põe fim à contenda. O exercício arbitrário das próprias razões apenas dá razão à prática de um novo exercício arbitrário das próprias razões – é dizer, a vingança gera mais vingança. Além disso, existe uma enorme probabilidade da ocorrência de “injustiças”, afinal, geralmente o ofendido nunca é a parte mais forte.
Em determinado ponto da história das civilizações humanas, as pessoas perceberam que não havia “justiça” na vingança privada. Perceberam ainda que ela tornava, em muitos aspectos, a vivência em sociedade difícil – para não dizer impossível. Foi nesse momento que os indivíduos começaram a, deliberadamente, ceder mão de uma série de prerrogativas naturais – como o uso da violência privada – como forma de estabelecerem-se em sociedade. A alternativa encontrada foi justamente a transferência do poder de aplicação da pena ao que era, naquele tempo, o primórdio do atual Estado.
A partir do momento em que o poder de coerção penal se centrou no Estado, viu-se surgir um novo momento para o Direito Penal. Agora, as decisões sobre as sanções cabiam aos detentores do poder estatal.
Ocorre que, percebeu-se em determinados momentos o exercício arbitrário de tais prerrogativas. É dizer, por não haver ainda, naqueles tempos, um sistema processual delimitado e esquematizado tal qual existe hoje, o que se observava era a imposição da vontade de uma pessoa – ou grupo de pessoas, sobre os demais.
A partir de então surge para o processo penal a segunda – e mais importante função: a de servir de baluarte na defesa de direitos e prerrogativas do indivíduo frente ao império arbitrário da lei.
O processo penal possui duas grandes funções no nosso ordenamento jurídico. Antes de mais nada é um modo de legitimação da aplicação da lei penal aos indivíduos de uma sociedade, como forma de cumprimento das obrigações contidas em nosso Contrato Social.
Mas, para além disso, sua maior função dentro do nosso sistema legal é – sem sombra de dúvidas – o de garantir o respeito e a prevalência dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo frente à aplicação desarrazoada e desproporcional da lei penal.
Desde o início da sua vigência, o CPP brasileiro passou por nada menos que 56 alterações textuais. Se contarmos as normas correlatas, ou que de alguma maneira influenciam nos procedimentos estabelecidos naquele caderno processual, teríamos então mais 20 normas regulamentadoras, totalizando 76 mudanças fáticas no conteúdo original dele.
Tal fato por si só é suficiente para concluir que, desde a sua vigência, a natureza central do código foi deveras alterada. Isso acontece porque o próprio país atravessou uma série de períodos históricos marcantes.
Superados os períodos nevrálgicos da nossa história, é certo que desde a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, fundada sob o alicerce da defesa de direitos e garantias fundamentais, todos os códigos vigentes – dentre eles o CPP – deveriam ser reinterpretados sob a nova ótica constitucional.
Assim, desde então, o que se espera desse conjunto de normas processuais penais é que atue além do procedimento de investigação e acusação do réu, sendo um verdadeiro estandarte de justiça na manutenção dos direitos e garantias fundamentais deste frente ao império da força estatal.
A CF/88, como marco histórico desse novo posicionamento do indivíduo no centro do sistema legal, trouxe – no âmbito do processo penal – uma série de paradigmas para a função a ser exercida pelo processo penal a partir de então.
Podemos perceber, principalmente nos últimos 30 anos, os significativos avanços promovidos na legislação processual penal brasileira. Tais avanços são decorrentes da nova vertente filosófica adotada por nossa Constituição. Essa evolução trouxe bastante progresso ao Direito Processual Penal, principalmente no que tange à proteção das garantias dos direitos e liberdades individuais constitucionalmente assegurados.
Ao longo de toda a história do nosso CPP – houve uma significativa evolução do codéx processual no sentido de ser uma defesa dos direitos e garantias do cidadão.
Apesar de ter nascido no seio de um movimento ditatorial de cunho eminentemente fascista, o nosso caderno processual conseguiu evoluir ao longo dos anos, tornando-se hoje mais que um mero conjunto de regras procedimentais, mas sim um verdadeiro meio de defesa do indivíduo contra possíveis abusos estatais.
O que antes tinha como função apenas salientar o procedimento a ser adotado no âmbito da acusação penal, transformou-se em verdadeiro fiel da balança no combate aos abusos cometidos em nome da “sanha punitiva estatal”. Houve clara mudança de paradigmas nesse sentido.
Percebe-se então ser o atual CPP ultrapassado, não por causa do tempo decorrido desde a sua vigência, mas sim pela diferença de padrão social existente entre o ontem e o hoje.
É clara a evolução da legislação processualista penal. Mas também fica óbvia a defasagem do texto. Não à toa, contamos com quase 80 alterações – algumas pontuais, outras bastante significativas – no seu texto original. Está claro que já passa da hora de rediscutirmos a fundo uma nova codificação processual penal, atual e plenamente condizente com todos os aspectos constitucionais.
A evolução do sistema processual penal ao longo de todos esses anos tornou possível a defesa de direitos e garantias individuais, mesmo não sendo esta a intenção original dessa legislação. Isso demonstra a clara vontade – principalmente do legislador infraconstitucional – em adequar os ditames legais ao pensamento corrente da época.
Podemos concluir, finalmente, que o CPP evoluiu sim ao longo de todos esses anos, tornando-se cada vez mais alinhado com os atuais preceitos constitucionais na garantia dos direitos do indivíduo.
Com isso, podemos dizer que o contrato social firmado por todos nós para a fundação do Estado brasileiro têm – feitas as ressalvas necessárias – sido cumprido. Apesar disso, é salutar observar que há uma divergência entre o espírito do CPP e o da CF, sendo necessário o debate sobre uma possível atualização legislativa – traduzida em um novo Código de Processo Penal – que traga não sou avanços, mas também reflexos constitucionais em todo o seu texto, expurgando assim, de vez, os fantasmas do fascismo do nosso ordenamento jurídico.