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Contas vinculadas nas concessões rodoviárias: inovação ou brecha para comportamentos oportunistas?

A evolução das modelagens de concessões rodoviárias do PROCROFE gerou um aumento na complexidade dos contratos e, consequentemente, da regulação, impondo uma atuação cada vez mais ativa da agência reguladora, que passa a desempenhar papel fundamental na fiscalização econômico-financeira dos contratos.

12/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O Programa de Concessões de Rodovias Federais – PROCROFE, criado na década de 1990, chegou à 4ª Etapa com a concessão da Rodovia de Integração do Sul – RIS (BR-101/290/386/448/RS). Entretanto, foi somente com as concessões mais recentes da Ecovias do Araguaia (BR-153/TO/GO, BR-080/GO, BR-414/GO) e da CCR RIO/SP (BR-116/101/SP/RJ - Rodovia Presidente Dutra) que as suas características ficaram mais claras.

Realizado por etapas de concessões, o PROCROFE foi se desenvolvendo com o passar do tempo. A 1ª etapa, que ocorreu de 1994 a 1998, foi realizada em meio à crise econômica, à recente estabilização monetária, à alta inflação e à grande restrição fiscal enfrentada pelo país nos anos 90. Todo esse contexto de incertezas aliado à inexperiência do Governo Federal na transferência de ativos ao particular resultou em concessões com foco em recuperação e manutenção das rodovias.

Os primeiros modelos das concessões tinham como características a quantificação das obras determinadas pelo Poder Concedente, uma  Taxa Interna de Retorno – TIR elevada, resultando em uma alta tarifa de pedágio cobrada dos usuários. Após cerca de 10 anos sem novas concessões, o Governo Federal retomou o PROCROFE em 2007, em sua 2ª etapa. Esses contratos possuem modelagem distinta da etapa predecessora, pois refletem a transição para um paradigma regulatório focado nos resultados das Concessionárias.

O Contexto macroeconômico distinto também teve impacto na modelagem contratual, vez que refletiu um período em que preponderavam as expectativas positivas quanto ao crescimento econômico do país. Isto resultou na ênfase dada à modicidade tarifária, com uma TIR  reduzida em relação aos contratos da 1ª etapa. Outras inovações foram implementadas, como a fiscalização por parâmetros de desempenho e a alocação, para o concessionário, dos riscos da variação dos preços dos insumos, da mão de obra, do financiamento e do passivo ambiental. Também, foram implementadas as revisões ordinárias, extraordinárias e quinquenais.

Já a 3ª etapa, realizada a partir de 2013, teve novas modificações na modelagem dos contratos. O foco permaneceu na modicidade tarifária, mas dessa vez foram concedidos longos trechos com vultosas obras concentradas no início do contrato, como a duplicação de todo o trecho em 5 anos. Além disso, foram incluídos os fatores de reequilíbrio contratual.

Percebe-se, então, que o PROCROFE é o resultado de uma evolução da modelagem dos contratos e da regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. A cada nova etapa foram incluídos novos instrumentos regulatórios.

A 3ª etapa, porém, resultou em grande fracasso. Uma parte considerável da ruína dessa etapa, se deve ao excesso de otimismo quanto ao cenário macroeconômico, em parte refletido nas estimativas de tráfego inconsistentes, associadas ainda ao modelo de leilão por menor tarifa – em que foram frequentes os grandes deságios, chegando a percentuais próximos de 50% da tarifa de referência – acabou por acarretar concessões com fragilidades financeiras, baixo desempenho contratual e dificuldade em obter financiamento, ainda que por bancos públicos como o BNDES. Por isso, a maioria dessas concessões está em processo de relicitação.

A par disso, o Governo Federal novamente alterou a modelagem para a 4ª etapa, com várias inovações. Passou a adotar um leilão híbrido, composto por limite de deságio de 12%, associado ao  maior valor de outorga. Lições aprendidas com a 3ª etapa foram, de algum modo, implementadas, como: recursos e contas vinculadas, proteção cambial, acordo tripartite, desconto de usuário frequente – DUF e free flow.

Cada uma dessas inovações possui impactos na vida financeira da concessão e, consequentemente, na tarifa de pedágio. Nesse sentido, foi criado um mecanismo de contas da concessão para fazer frente a essas questões.

Em poucas palavras, tal mecanismo consiste em uma série de contas geridas pelo banco depositário, vinculadas à concessão, que somente podem ser movimentadas pela instituição financeira com autorização da ANTT.

A título de exemplo, cita-se a concessão da CCR RIO/SP que utiliza a seguinte metodologia de contas vinculadas: conta centralizadora, conta de aporte, conta de retenção, conta de ajuste, conta de ajuste temporária, conta do free flow, conta do trecho Viúva Graça e a conta de livre movimentação.

Para uma melhor compreensão, a conta centralizadora é aquela que recebe a receita bruta da concessão, a partir da qual o banco depositário realiza a divisão dos valores nas demais contas, conforme estabelecido no contrato.

Por sua vez, a conta de aporte é aquela que recebe 50% do lance ofertado no leilão os quais serão transferidos para a conta de ajuste após sua constituição.

A conta do free flow é aquela que reúne os valores arrecadados pelo trecho rodoviário com cobrança automática de pedágio e fluxo livre e que são destinados à conta de ajuste e à conta de livre movimentação.

A conta do trecho Viúva Graça é idêntica à do free flow, mas é relativa aos recursos do respectivo trecho.

A conta de livre movimentação é a de titularidade da concessionária a qual pode ser movimentada por ela conforme sua necessidade.

Por fim, a conta de ajuste, conta de ajuste temporária e a conta de retenção são as contas da concessão efetivamente consideradas. A primeira reúne os recursos vinculados que podem ser utilizados para ajuste final de resultados, de desconto de usuário frequente e de reequilíbrios econômico-financeiros. Já a segunda reúne os recursos provenientes de receitas tarifárias excedentes arrecadadas durante a prorrogação da antiga concessionária, a Nova Dutra S.A. A terceira e última consiste nos recursos relativos ao mecanismo de proteção cambial.        

Basicamente, o mecanismo de contas corresponde à divisão da receita bruta entre diversas finalidades com o objetivo de garantir a saúde financeira da concessão, a estabilidade da tarifa e a modicidade tarifária. Tal receita é depositada na conta centralizadora e, posteriormente, movimentada para as demais contas (conforme disposto em contrato): contas de retenção, de ajuste e de livre movimentação.

Fonte: (Ministério da Infraestrutura)

Os recursos da conta de retenção podem ser utilizados nos 5 primeiros anos da concessão pelo acionamento do mecanismo de proteção cambial. Caso não seja usado nesse período, será revertido para a conta de ajuste.

Os valores da conta de ajuste serão utilizados para os reequilíbrios econômico-financeiros, para a compensação do desconto de usuário frequente e para ajuste final da concessão.

No caso dos reequilíbrios contratuais, esse mecanismo tende a trazer maior estabilidade à tarifa, visto que evita os constantes acréscimos e decréscimos feitos anualmente pelas revisões tarifárias. Vale ressaltar que as frequentes intervenções do Tribunal de Contas da União - TCU, especialmente por meio de medidas cautelares, também influenciam muito na variação tarifária.

Por outro lado, a aplicação do desconto de usuário frequente e da conta de modicidade tarifária chama a atenção para alguns riscos que esses mecanismos podem acarretar. Criado com o objetivo de ser uma forma mais justa para aqueles usuários que se utilizam da rodovia para deslocamentos diários, utiliza o conceito de origem-destino para conceder o desconto conforme o trecho percorrido. Isso evita os conflitos muito comuns que podem resultar em liberação do pagamento de pedágio por esses usuários e, consequentemente, ocasionar um aumento na tarifa.

Mensalmente a concessionária deve informar à ANTT os valores do desconto de usuário frequente e aqueles relativos ao desconto de modicidade para que sejam compensados, independentemente de checagem, com os recursos da conta de ajuste e da conta de ajuste temporária. Esse é um ponto de atenção, pois em diversas outras situações, o TCU determinou que a ANTT criasse meios para conferir a veracidade das informações prestadas pelas concessionárias.

Um caso emblemático foi a aplicação da Lei dos Caminhoneiros (lei 13.103/15) que criou a isenção de pedágio para os eixos suspensos dos caminhões que trafegarem vazios. A ANTT implementou a determinação legal por meio de declaração da concessionária. Porém, o TCU entendeu que essa metodologia não era suficiente por permitir a superestimativa dos valores pela concessionária e determinou que a ANTT elaborasse uma forma de conferir a veracidade dessas informações.

Prevendo essa situação, o contrato da CCR RIO/SP, alterado pelo 1º termo aditivo, estipulou o compartilhamento dos dados do tráfego real  e os dados para apuração da receita tarifária efetivamente auferida de usuários frequentes, bem como o detalhamento das passagens realizadas. Isso mitiga o risco de superestimativa dos dados pela concessionária.

Ocorre que a checagem dessas informações somente será feita uma vez ao ano por meio das demonstrações financeiras auditadas por auditor independente. O resultado da checagem pode indicar a necessidade de novo reequilíbrio por meio de nova compensação, se favorável à concessionária, ou pela aplicação do fator C, se em favor do Poder Concedente. Caso seja necessária a aplicação do fator C recorrentemente, há o risco de alterações frequentes na tarifa, violando, assim, um dos princípios desse mecanismo: a estabilidade tarifária.

Nesse contexto, surge uma nova atribuição da ANTT: a fiscalização financeira da concessão.

Diferentemente do padrão estabelecido nas concessões da 2ª etapa, a fiscalização da concessionária por meio de parâmetros de desempenho, sem efetivamente controlar os preços unitários das obras, os novos mecanismos de contas impõem a fiscalização das quantidades de receitas auferidas pela concessionária e o controle da utilização das contas vinculadas.

Diante desse novo cenário vivenciado pela agência levantam-se os seguintes questionamentos: está a agência reguladora institucionalmente preparada para essa nova frente de fiscalização? Quais as possíveis implicações de uma fiscalização deficiente? Pode a concessionária se aproveitar de fragilidade da agência reguladora para superestimar as informações e auferir lucros?

Por outro lado, a existência de recursos disponíveis também pode induzir a um comportamento oportunista do Poder Concedente? É possível que esses recursos sejam utilizados de forma a comprometer a estabilidade do sistema de contas?

Desse modo, a evolução das modelagens de concessões rodoviárias do PROCROFE gerou um aumento na complexidade dos contratos e, consequentemente, da regulação, impondo uma atuação cada vez mais ativa da agência reguladora, que passa a desempenhar papel fundamental na fiscalização econômico-financeira dos contratos. Ocorre que a ANTT vem sofrendo ano após ano com o déficit cada vez maior de servidores e restrições orçamentárias mais profundas, o que impacta diretamente no desenvolvimento de suas atividades.

Por isso, fica a reflexão: As contas vinculadas são, de fato, uma inovação regulatória que assegurará maior estabilidade tarifária ao usuário ou, ao contrário, são mais uma brecha para comportamentos oportunistas?

Bruno Azambuja
Head de Direito Regulatório do Fenelon Advogados. Advogado especialista em Direito Regulatório com ênfase em transportes. Trabalhou na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) por aproximadamente sete anos, em áreas diversas, como a Superintendência de Marcos Regulatórios, Superintendência Executiva e Superintendência de Infraestrutura Rodoviária. Membro da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da OAB-DF.

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