Não raramente temos visto a Justiça Militar determinando a prática de atos investigatórios invasivos contra civis (busca e apreensão, quebra de sigilo telefônico, intercecptação telefônica e etc), a fim de constituir provas para ações penais em que militares figuram como réus, ocorre que tal prática não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico.
Inicialmente, é importante verificar a competência constitucionalmente atribuída à justiça militar e nesse sentido, a CF/88 é assertiva ao definir:
“Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”.
(...)
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
(...)
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. (Incluído pela EC 45/04)” Destaquei.
Também não devemos a jurisprudência. Vejamos algumas passagens do julgamento do HC 81.963/RS, ocasião em que o relator ministro Celso de Mello, fez constar as seguintes assertivas em seu acórdão:
“Como se sabe, a Justiça Militar da União dispõe, por efeito de expressa norma constitucional (CF, art. 124, caput), de competência penal para processar e julgar civis, mesmo em tempo de paz, por suposta prática de crime militar definido em lei.
Isso significa, portanto, que a Justiça Militar da União possui, excepcionalmente, jurisdição penal sobre civis, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra”. Destaquei.
Mesmo que por via reflexa, para a captura de provas em desfavor de militares, cidadãos comuns (civis) não podem ser investigados ou alvos de ato de investigação por crimes cuja competência da jurisdição castrense não os alcança.
Somente a justiça militar da União possui competência constitucional para processo (o que abrange atos de investigação) e julgamento de civis, e isso em caráter excepcionalíssimo.
Não pode haver interpretação analógica in mallan partem aplicando-se o princípio da simetria estendendo-se a competência da justiça militar estadual para que eventualmente se convalide atos de investigação cujo alvo é civil para produzir prova contra militar.
A tese aqui lançada, inclusive é corroborada por verbete sumular do colendo STJ, vejamos:
Súmula 53: “Compete à justiça comum estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”. Destaquei.
O egrégio STF igualmente possui entendimento sumulado nesse sentido:
Súmula 298: “O legislador ordinário só pode sujeitar civis à justiça militar, em tempo de paz, nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares”. Destaquei.
A doutrina também compartilha deste mesmo entendimento:
“(...) diante da limitação constitucional imposta à Justiça Militar dos Estados, quando fizermos alusão ao civil como sujeito ativo de crime militar, estaremos nos referindo aos crimes militares cometidos por civis contra as Forças Armadas, os quais deverão ser processados e julgados pela Justiça Militar da União” LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal, volume único, Editora Jus Podivm, 6ª Edição, revista, ampliada e atualizada – 2018. Destaquei.
“Pode um civil ser julgado na Justiça Militar Estadual? Não. Ao contrário da justiça militar federal, aqui a Constituição adotou um critério objetivo-subjetivo. Ou seja, deve ser crime militar praticado por militar do Estado (policiais militares, bombeiros ou policiais rodoviários estaduais), descartando completamente a possibilidade de um civil ser julgado na Justiça Militar Estadual” JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal, Editora Saraiva Jur, 16ª Edição – 2019. Destaquei.
A CF/88 delimitou a competência da justiça militar estadual de forma expressa, para processo (inclusive atos de investigação) e julgamento, dos militares do Estado.
Não há qualquer regramento legal ou constitucional que autorize a justiça militar do Estado a praticar ato de investigação em desfavor de civil.
Quando na prática nos deparamos com situações em que se vislumbra o concurso de pessoas entre militares e civis em um mesmo contexto fático, deve, pois, a autoridade judicial castrense remeter os autos à justiça comum, para que esta realizasse os atos de investigação e proceda à persecução em desfavor dos civis, conforme manda a CF/88.
Se à justiça militar interessam os fatos apurados ou eventual apuração em curso em desfavor de civis perante a justiça comum, nada impede a provocação das autoridades competentes e o pedido para a produção de prova emprestada, caso atendidos os requisitos legais na situação fática.
A portaria do inquérito policial militar define os limites da investigação na seara castrense, inclusive os alvos da mesma, não figurando (ou não devendo figurar) nenhum civil, o que mais uma vez deslegitima todo e qualquer ato investigatório do Estado em desfavor de civil através de ordem ou chancela por parte da justiça militar estadual.
Ora, se não se busca investigar ato de civil que atente contra bens ou serviços de instituições militares da União ou à segurança nacional, conclui-se que o civil não pode ser objeto de investigação, nem tampouco sofrer atos típicos de investigação e medidas invasivas em seu desfavor pela justiça militar estadual.
A título ilustrativo para melhor elucidar a questão: Um juiz do Trabalho não pode determinar a interceptação telefônica de um militar. Um juiz de Direito de 1º grau não pode determinar a interceptação telemática de um ministro de Estado por fato atribuível às suas atribuições de Estado.
E mesmo em se tratando de casos em que se verifique serendipidade, ou seja, nas investigações realizadas contra militares, fortuitamente alcançam-se condutas ilícitas praticadas por civis, nesta situação, os autos devem ser necessariamente ser remetidos à justiça comum competente para apuração dos atos praticados pelos civis, e não prosseguir investigando-os paralelamente.
Os fins não justificam os meios.
Quem não pode o mais (competência para processar civis), também não pode o menos (competência para investigar civis).
Quando nos deparamos com situações como estas na vida prática, perde o Estado, perdem os investigados e perde a sociedade, pois estamos diante de investigações e processos absolutamente nulos, haja vista flagrante violação do princípio constitucional do juiz natural.
No fim das contas, decisões da justiça militar estadual proferidas em desfavor de civis, no bojo de uma investigação instaurada para se apurar crime militar praticado por militar, com ou sem concurso de civis, são passíveis de anulação perante as duas justiças (comum e militar), haja vista que o civil não poderá ser alvo de persecução penal por autoridade judiciaria incompetente e nem tampouco ter utilizadas contra si em foro próprio as provas ilegalmente colhidas, e o militar, por sua vez, não poderá ser processado criminalmente com base em provas colhidas mediante a violação da lei processual penal e da Constituição Federal.