Migalhas de Peso

Do claustro à liberdade

Um breve relato acerca da democracia e da liberdade.

7/4/2022

(Imagem: Artes Migalhas)

A democracia, gozada por diversas nações e sonhada por tantas outras, historicamente, mostra-se como o regime de governo mais justo, ou pelo menos aquele que mais se aproxima do conceito de justiça, considerando-se um plano mínimo de humanidade, ética e moral.  

Embora tenha suas mazelas assim como outros modelos, a democracia representa, nas palavras de Churcill, “o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros”.

O regime democrático, conforme demonstração empírica, ainda que não retrate a perfeição, se comparado a regimes autoritários e ditatoriais, merece congratulações, pois, dentre esses, é o único que possibilita o julgamento justo dos desviados e a distribuição equânime de direitos.   

Mesmo assim, há na atualidade quem defenda o afastamento do regime democrático e a instauração das chamadas “intervenções”, palavra esta que visa retirar a conotação negativa e execrável das ditaduras.  

Espantosa é a ideia de que em pleno século XXI, a despeito da civilização e do progresso, ideologias ditatoriais e autoritárias insistam em permanecer ou retornar.

A obstinação de instituições envelhecidas em perpetuar-se, assemelha-se à perseguição de uma roupa de criança que insiste em vestir o homem.

O enigma encontra-se não na vontade do ditador em impor a tirania, fato bastante cristalino, mas sim na aceitação do oprimido em muitas vezes suportá-la, e crer que de alguma forma possa se beneficiar.

O que justificaria o desejo de retorno ao arbítrio? Impor o passado ao presente nos parece errôneo.

O que levaria o homem na idade da luz, bradar pelo retorno às trevas? Cumpre ao presente renovar-se e ao passado consentir em permanecer morto.

Vejamos a justificativa mais plausível para esse equívoco: aquele que clama pelo retorno da ditadura, certamente não conhece aquilo o que pleiteia. Falta-lhe esclarecimento, experiência, informação; falta-lhe debruçar-se sobre o passado e compreender a barbárie da supressão de direitos.

Ressalta-se que, por vezes, a ignorância é tão nociva quanto a violência, de forma que o cidadão postular pela ditadura representa nada mais do que um sintoma de desorientação.

Percebe-se, portanto, em cada um dos que reivindica o autoritarismo, a semente de uma falsa concepção. Esses afirmam erroneamente: “Ao menos nas ditaduras não havia corrupção!”.

De fato, não há ou são raras as denúncias de corrupção na Coréia do Norte, assim como não houve denúncias de corrupção na Itália fascista e no período militar brasileiro, pelo simples fato de que aquele que se opunha ao “regime”, na melhor das hipóteses se via exilado, do contrário, torturado e/ou executado.

À época do regime militar brasileiro, por exemplo, não havia qualquer autonomia de órgãos investigativos e punitivos como se vê nos dias atuais. Não existia a solidez que hoje se verifica na Polícia Federal, no Ministério Público, nos Tribunais de Contas, entre outros. Não havia, portanto, investigações.

Dessa forma, os ditadores se passavam por honestos e probos. Honestidade nesse caso era a ausência de questionamento e de denúncia. Cobria-se de cal a novilha preta e diziam: “É branca”. Bos cretatus1. Portanto, acreditar na ideia de ausência de corrupção em um regime ditatorial e autoritário, é deixar-se murar o cérebro e vendar os olhos frente aos fatos.

Indaga-se: por que regimes considerados execráveis tendem a ressuscitar-se? Encontramos a resposta em Victor Hugo: “superstições, beatice, carolice, preconceitos, todas essas larvas, por mais larvas que sejam, têm apego à vida; têm dentes e unhas em sua fumaça, e é necessário constrange-las corpo a corpo e fazer-lhes a guerra, mas sem tréguas, pois uma das fatalidades da humanidade é ser condenada ao eterno combate dos fantasmas2”.

Em quais pilares se apoia a democracia senão na liberdade e na ponderação? Ora, na ausência de ponderação, até mesmo o exercício de direitos torna-se nocivo. Que sentido haveria na tríplice “liberdade, igualdade e fraternidade” na ausência de equilíbrio?

No excesso de liberdade tende-se ao anarquismo, no excesso de igualdade ao esquecimento das fragilidades e no excesso de fraternidade à dissimulação.

Analisemos o antagonismo entre a ditadura e a democracia: de um lado a renúncia compulsória à liberdade, aos prazeres, aos interesses. Abdica-se, ainda que sem saber, de suas liberdades individuais em nome de um coletivo que, em verdade sequer existe. Que mal há na submissão? Nenhum, desde que seja voluntária, que haja porta de entrada e saída.

A história tem sido clara ao demonstrar a imensa distorção entre o dever ser e o ser quando se trata de totalitarismo, ou qualquer outra forma ideológica que advogue pela utópica coletivização dos meios de produção. Na teoria: toda a riqueza dividida a todos; na prática: pouca riqueza dividia a muitos e muita riqueza dividida a poucos. “Estranhamente”, aqui encontramos novamente a figura do impositor. Ora, que necessidade haveria de se impor um sistema que se diz ideal? Não nos parece lógica essa equação.

Em um Estado onde se suprimem os direitos individuais, quem é o responsável por proteger os cidadãos do próprio Estado?

Eis que surge a proposta da democracia: enquanto de um lado percebe-se a renúncia de direitos, ou melhor dizendo, a supressão de direitos, a democracia, ao contrário, cuida de garanti-los ao cidadão, inclusive protegendo-o do próprio Estado.

Preservam-se ricos e pobres, sem que suas diferenças econômicas impliquem em privilégios frente à máquina pública; a igualdade torna-se equidade, aliás, a democracia não pretende criar uma sociedade de cópias, mas sim permitir que cada qual seja aquilo que lhe convém.

Não cabe à democracia definir um ponto de chegada, ao contrário, lhe é imputado o dever de promover as mesmas condições de partida. A grandeza da democracia consiste em nunca ser excessiva e sim ponderada. Que necessidade tem ela de exagerar? Não se travam batalhas onde o diálogo é suficiente.

Mesmo em momentos de instabilidade, retroagir não representa a melhor alternativa à democracia, salvo o passo que se dá para trás visando impulsionar os passos seguintes. O progresso condiciona demolições a futuras reconstruções.

Não nos parece conveniente ao ser humano, sendo em si próprio um universo dos mais variados desejos, prazeres, ambições, culturas, ideologias e crenças, se ver obrigado a viver conforme a vontade de um autoritário ou que tenha de trilhar caminho idêntico ao de seu semelhante, já sabendo o começo e o final da estrada. Se nem mesmo os animais da mesma espécie ocupam lugares idênticos no bando, por que o ser humano teria de ocupar na sociedade?

Eis aí o cerne da democracia: enxergar por igual à direita e à esquerda, se opondo a qualquer ideologia que limite ou suprima as possibilidades humanas. Advoguemos em favor do homem. Ele é o centro de qualquer discussão jus-filosófica, portanto, a coletividade deve ser organizada pelo homem e para o homem, sendo esse o fundamento e a razão de qualquer discussão social.
_______________

1 “...boi embranquecido a cal...” (Juvenal, Sátiras) (N. do E.)

2 Hugo, Victor. Les miserábles, 1802-1885

Vítor Kozlovwsky
Advogado. Sócio do escritório Kozlovwsky Advogados. Pós-graduando (MBA) em Finanças, Investimento e Risco pela Fundação Getúlio Vargas.

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