Pouca gente sabe, mas historicamente, para efeitos de registros genealógicos, as mulheres foram quase sempre designadas sob sua condição de nascimento, jamais na de casamento. Os textos genealógicos trazem, em amplíssima maioria, o nome das mulheres da forma como elas nasceram e foram “registradas”, isto é, batizadas ou anotadas em algum tipo de livro ou documento quando não havia leis gerais de registros públicos, o que no caso brasileiro só passou a existir do século XIX em diante.
Muito antes da luta feminista pelos direitos das mulheres, que começou a se esboçar de modo organizado no Oitocentos mas se firmou no século XX, os genealogistas já designavam as mulheres pelos seus nomes de origem e não pelos nomes dos maridos, vez que é na condição de nascimento que se encontra o verdadeiro “eu” da mulher. Isto evidentemente não impedia, e não impede, que os textos genealógicos também informem os nomes com os quais se assinaram as mulheres após o matrimônio celebrado, como adendo importante na biografia daquele indivíduo.
Ao estudar as sociedades medievais europeias, em especial as “francesas”, isto é, aquelas sociedades regionais onde hoje se localiza a França, um historiador norte-americano, R. Howard Bloch, professor na Universidade de Yale, elucidou o início do processo do nascimento do amor romântico europeu nas artes da cortesania e do trovadorismo dos séculos XII a XIII, para provar que a idealização das mulheres pelos europeus medievais conduzia à ambígua projeção delas em seu imaginário como “virgens” e “imaculadas”, de um lado, ou “impuras” e “infernais”, de outro. Seu estudo, tornado clássico, Medieval Misogyny and the Invention of Western Romantic Love (Chicago: The University of Chicago, 1991) aponta também para o fato de que as mulheres que governaram seus reinos ou senhorios, no Medievo, por direito próprio (suo iure), geravam uma espécie de “curto-circuito” na cabeça de seus contemporâneos, visto que podiam ser boas governantes sendo mulheres e a elas se devia obediência por parte de vassalos e cavaleiros.
Exemplo mais célebre de todas as mulheres soberanas dessa época foi o da Rainha Aliénor (1124-1204), Duquesa da Aquitânia por direito próprio e rainha-consorte inglesa e francesa. Ao se referir a ela os historiadores costumam chamá-la de “Leonor” ou “Eleonora da Aquitânia”, em português. A rainha-duquesa é mãe de personagens famosos da história, como “Ricardo Coração de Leão” e “João Sem Terra”. Ao suceder ao pai no trono ducal da Aquitânia, Aliénor se tornava igual em poder senhorial ao rei francês, motivo pelo qual foi casada ao herdeiro dele, que se tornou Louis VII um mês depois do casamento. O casal real foi junto para a Segunda Cruzada na Terra Santa. Durante a estada em Jerusalém, a conduta da jovem rainha foi considerada “ofensiva” pelo marido, que solicitou do papa a anulação do casamento, mesmo já tendo sido geradas duas filhas. Pois Aliénor voltou a Aquitânia e meses depois foi pedida em casamento pelo neto do rei inglês, Henry, da Casa de Anjou (ou Plantagenet), onze anos mais novo, que logo se tornaria o Rei Henry II da Inglaterra. Desse casamento descendem todos os monarcas europeus atuais, assim como outros milhões de pessoas. A vida e obra de Aliénor foram tão intensas que rendem, até hoje, riquíssimo material literário, tanto para a história como para a ficção.
Em virtude das mulheres monarcas é que se manteve a tradição, nas cortes ibéricas, mas também em outras, que será passada ao Brasil, de designar as esposas dos soberanos pelos seus nomes de origem, indicando a alta linhagem e nação a que pertenciam: “D. Filipa de Lencastre”; “D. Luiza de Gusmão”; “D. Maria Sofia de Neuburgo”; “D. Maria Ana de Áustria” – esta última dá nome à antiga capital das Minas Geraes, Mariana.
Muitas mulheres do povo ou da aristocracia rural também legaram a seus descendentes o seu nome, visto que era nelas que residia a “herança ilustre”: no Brasil, por exemplo, todos os que assinam o nome “Arcoverde” o fazem em homenagem a sua ancestral Muyra-Ubi ou D. Maria do Espirito Santo Arcoverde (1510-1558), a filha do Cacique Arcoverde, do Povo Tindara (chamados de “Tabajara” e pertencente à família linguística Tupi), que se casou com o fidalgo português Jeronymo de Albuquerque (1510-1584) (“Adão Pernambucano”) e gerou oito filhos. Os descendentes desse casal adotaram, ao longo dos séculos, uma quantidade infindável de combinações antroponímicas: Arcoverde de Hollanda Cavalcanti de Albuquerque; Albuquerque Maranhão; Hollanda Cavalcanti; Cavalcanti de Albuquerque; Albuquerque Cavalcanti etc. Quando o Brasil e a América Latina, por exemplo, tiveram seu primeiro cardeal na história da Igreja, em 1897, o nomeado pela Santa Sé foi D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti (1850-1930), um pernambucano de Cimbres/Pesqueira, agreste de Pernambuco.
Mas a patrilinearidade foi sempre a regra, sendo exceção dela a transmissão do nome materno à prole. No mundo lusófono, a composição de um nome é sempre matéria complexa, mas não é erro afirmar que muitas mulheres eram “sem-nome”, visto que somente batizadas e registradas com nomes devocionais.
Hoje o Código Civil, em seu artigo 1.565, § 1º, faculta às mulheres não acrescer os nomes de seus maridos após o casamento, indo além e permitindo ao marido tomar o nome da mulher. Essa inovação legal enseja, sem dúvida, uma ressignificação dos papéis de homens e mulheres naquela proto-sociedade que é a família nuclear. Oxalá ela ajude a tornar a sociedade brasileira menos machista e misógina.