Migalhas de Peso

A reforma das presunções relativas sobre insider trading

Antes uma construção do Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, as presunções juris tantum usadas em processos administrativos envolvendo acusações de insider trading foram recentemente incorporadas pelo texto normativo da autarquia. Todavia, não sem algumas inovações.

8/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Em um primeiro momento, o insider trading, era enquadrado pela jurisprudência da CVM como uma forma de prática não-equitativa (art. 2º, d, da Instrução CVM nº 08/79), sendo eventualmente descrita pelo art. 11 da Instrução CVM 31/84 como tal. Somente com a reforma da lei 10.303/01 que a CVM, logo no ano seguinte, a infração administrativa de insider trading seria tipificada, na Instrução Normativa 358 de 3 de janeiro de 2002 (“ICVM 358/02”).

Ao longo das quase duas décadas de sua vigência, a ICVM 358/02 foi a norma da CVM que regulou a divulgação de informações relevantes e a responsabilização de agentes pelo ilícito de negociação em posse de informação privilegiada, o insider trading. Finalmente, no final de 2020, foi aberta pela CVM a Audiência Pública 06/2020 (“Audiência Pública”), visando reformar a ICVM 358/02, em particular no que dispõe sobre o combate ao insider trading.

O objetivo das alterações, segundo o edital da Audiência Pública, seria aproximar a redação de alguns dispositivos da interpretação consolidada pelo Colegiado da CVM,1 dentre os quais destaca-se o art. 13 da ICVM 358/02, que serviu de base para a construção das presunções de relevância, acesso e uso nos casos de insider trading julgados pela autarquia. O Relatório da Audiência Pública, aliás, declara que “a CVM não busca ampliar nem reduzir” as referidas presunções, mas “refletir mais adequadamente em norma a jurisprudência já construída sobre o tema”. 

Agora, com a redação final da norma tomando o talhe da Resolução CVM 44 (“RCVM 44”), vigente desde 1/10/21, podemos avaliar o quanto a nova regulação administrativa do insider trading mudou em comparação com a norma vigente anterior.

A Caracterização do Insider

O ilícito do insider trading pode ser definido como a negociação de valores mobiliários por investidor que possui informação relevante – aquela capaz de interferir na decisão de outros investidores para comprar ou vender o ativo – ainda não divulgada. O insider utiliza-se dessa informação privilegiada para obter vantagem indevida em face de terceiros, que desconhecem seu teor. Observa Francisco Antunes Maciel Müssnich que a prática do insider trading pode ser decomposta em três elementos.2

O primeiro deles é a existência de uma informação relevante ainda não divulgada ao mercado – uma informação privilegiada. A lógica é a seguinte: enquanto não for publicada, os efeitos de uma informação relevante ainda não terão sido absorvidos pelo mercado para fins de precificação dos valores mobiliários, resultando em uma vantagem indevida do insider, que conhece informação com potencial de afetar a cotação do ativo.

Por esse motivo que que a disseminação de informação por canais além dos previstos na regulação pode levar à absorção de seus efeitos pelo mercado e, consequentemente, perda de seu caráter privilegiado e a absolvição do acusado.3

O segundo, é o acesso do agente a essa informação privilegiada. Aqui cumpre distinguir os insiders primários dos secundários.

Insiders primários seriam os integrantes de uma companhia com posição que, ao menos em tese, permitiria o seu acesso a informações relevantes antes de sua divulgação ao mercado. Já os insiders secundários estão do lado “de fora” da companhia e recebem a informação relevante ainda não divulgada por meio de terceiros.

O terceiro e último elemento é o dolo, ou seja, a utilização da informação privilegiada para auferir vantagem indevida – sendo necessário que haja a intenção de negociar valores mobiliários com o expresso intuito de obter vantagem a qual não faz jus.4 Importante pontuar que essa vantagem pode consistir tanto em incremento patrimonial (lucro) pelo insider, quanto uma perda evitada pela negociação.5

Se, por um lado, evitam acusações infundadas, os requisitos necessários para a configuração da infração administrativa de insider também dificultam a prova da conduta infratora, uma vez que a acusação deve demonstrar: (i) a relevância da informação e seu caráter privilegiado; (ii) a ciência da informação pelo acusado; e (iii) o efetivo uso da informação pelo acusado. Essa barreira, porém, seria transposta ao longo dos anos pela jurisprudência da autarquia.

As Presunções oriundas do art. 13 da ICVM 358

Como forma de facilitar o combate ao insider trading, o Colegiado da CVM paulatinamente construiu presunções relativas aplicáveis aos casos de suposta negociação em posse de informação privilegiada, com base na redação da ICVM 358. São elas as presunções de relevância, de acesso e de uso. É interessante observar que existe uma presunção para cada elemento caracterizador do insider trading.

A “presunção de relevância”, como o nome já sugere, pressupõe que determinadas informações seriam capazes de interferir no processo decisório de investidores.

Segundo o entendimento construído pelo Colegiado, as informações que compõem as demonstrações financeiras trimestrais e anuais presumem-se relevantes a partir dos quinze dias que antecedem a publicação desses documentos. Portanto, a presunção de relevância dividia-se em duas outras presunções: primeiro que as demonstrações financeiras trimestrais e anuais contém informações relevantes e, segundo, que essas informações que compõe as demonstrações financeiras já estariam suficientemente maduras quinze dias antes de sua divulgação.6

Já por meio da “presunção de acesso”, assume-se que determinados agentes teriam conhecimento da informação relevante antes de sua divulgação ao mercado. Ela recai exclusivamente sobre os insiders primários, que teriam acesso direto à informações privilegiadas em virtude de sua relação com a companhia.7

Finalmente, a “presunção de uso” consiste em considerar que aquele que negocia em posse de informação privilegiada o fez com intuito de dela se utilizar e tirar proveito para si ou para outrem.8 É a única presunção que pode ser aplicada a insiders secundários.9 Importante ressaltar que a acusação não precisa demonstrar como que o acusado teria tido acesso à informação para que opere a presunção de uso a insiders secundários, apenas que há um robusto concurso de indícios comprovados, independentes e convergentes que levem à conclusão de que houve negociação em posse de informação privilegiada.10

Por serem presunções juris tantum, o acusado tem a chance de afastá-las em sua defesa, caso seja capaz de apresentar provas ou indícios convergentes que contrariem a tese acusatória e invalidem as presunções. Por essa razão, são comumente interpretadas como uma forma de inversão do ônus probatório, seguindo entendimento de Marcelo Trindade,11 acompanhado em votos dos diretores Gustavo Borba e Luciana Dias.12 No entanto, não é pacífico, tendo sido contrariado por voto de Pablo Renteria e artigo de Gustavo Gonzalez.13

As Presunções na Resolução CVM 44

Analisadas as três presunções que foram moldadas pela jurisprudência da CVM com base no art. 13 da ICVM 358/02, com a redação que vigorou até então, passamos a avaliar como a reforma as positivou no art. 13 da RCVM 44.

O caput do art. 13, que antes embasava as presunções de acesso e uso, agora estabelece que é “vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, mediante negociação de valores mobiliários”.

A nova redação estende sua incidência à negociação de qualquer valor mobiliário quando em posse de informação relevante à sua cotação, emitidos por companhias ou não, por insider primário ou secundário. Assim, encerrou tema que já foi objeto de debate na autarquia e na doutrina no passado, reconhecendo a possibilidade de se cometer insider trading com ativos não emitidos por companhias, tais como cotas de fundos de investimento.14

Por sua vez, o § 1º do art. 13 da RCVM 44 agora serve como introdução ao rol de presunções às quais os acusados de cometer o ilícito de insider trading se submeterão, dispostas ao longo dos incisos I a VI.

A primeira, no inciso I, é a presunção de uso, e declara que “a pessoa que negociou valores mobiliários dispondo de informação relevante ainda não divulgada fez uso de tal informação na referida negociação”. Esta disposição reflete o posicionamento tradicional da autarquia, como se logrou demonstrar acima.

O inciso II trata da presunção de acesso, que recairá sobre acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração e do conselho fiscal, e a própria companhia.

Percebe-se, assim, que o rol de agentes considerados insiders primários foi reduzido, já que ausente a disposição do caput do art. 13 da ICVM 358 que estendia a presunção de acesso a membros de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária ou pessoas cujo cargo, função ou posição na própria companhia ou em sociedade a ela relacionada lhe permitiria o acesso à informação. 

O inciso III, por sua vez, trata de uma nova presunção de ciência de relevância, na qual as pessoas com relação “comercial, profissional ou de confiança” da companhia, além dos insiders primários do inciso II, que detém uma informação privilegiada sabem se tratar de informação relevante não divulgada ao mercado. Nada mais é do que um desdobramento da presunção de uso.15 Interessante observar, todavia, que a autarquia criou uma espécie de insider intermediário entre o insider primário e o secundário ao presumir, em razão dessa relação, que esses agentes teriam conhecimento o suficiente sobre os negócios da companhia para identificar determinada informação como sendo relevante.

Ainda, o inciso IV substitui o antigo § 2º do art. 13 da ICVM 358/02 em função, ao indicar um período de vigência para a presunção de acesso e uso após a saída dos administradores de uma companhia por 3 meses – reduzido, portanto, em comparação com a disposição anterior, de 6 meses.

Limitando-se aos quatro primeiros incisos do § 1º do art. 13 da RCVM 44, a autarquia ateve-se majoritariamente à jurisprudência que construiu acerca das presunções (com exceção da novel presunção de ciência). Porém, as alterações que dizem respeito à presunção de relevância foram as mais dramáticas, tendo ampliado significativamente seu escopo original. Essa presunção passou a ser objeto dos novos incisos V e VI.

Em suma, presume-se relevante a informação acerca de qualquer operação de reorganização societária da companhia, de mudança no controle da companhia, de cancelamento de registro ou alteração de segmento de negociação de ações, de pedido de recuperação judicial ou extrajudicial e de pedido de falência. Como forma de estabelecer um limite temporal, os dois incisos incluem uma passagem esclarecendo que essas informações somente serão presumidas relevantes “a partir do momento em que tenham sido iniciados estudos ou análises relativos à matéria”.16

Percebe-se que a presunção foi muito ampliada, passando a ser aplicável a qualquer informação acerca dos fatos apontados nos incisos V e VI, enquanto a presunção original tratava de informações que efetivamente compunham as demonstrações financeiras. Espera-se que o Colegiado exerça o devido discernimento ao aplicar uma norma tão abrangente.

Inclusive, tal disposição pode vir a enfraquecer a aplicação da teoria do mosaico como defesa à acusação de insider trading.17 Tendo em vista que qualquer informação referente aos atos mencionados nos incisos V ou VI poderiam ser presumidas relevantes, as informações não públicas usadas por analistas para fundamentar suas deduções podem vir a se enquadrar nessa definição demasiadamente larga.

Além disso, o objeto original da presunção de relevância – as informações que constituem as demonstrações financeiras da companhia – não se presumem mais relevantes, tendo em vista que a CVM elaborou um rol exaustivo de temas cujas informações acerca dos quais são consideradas relevantes nos incisos V e VI e não as incluiu.

Isso não quer dizer, claro, que essas informações não podem ser eventualmente consideradas relevantes em determinados casos, elas apenas não serão mais passíveis de presunção,18 e, de todo modo, a nova vedação à negociação do art. 14 da RCVM 44 proíbe negociações em posse de tais informações pelos 15 dias anteriores à sua divulgação.

Conclusão

Fica clara a intenção da CVM de tornar a sua atuação mais transparente ao positivar em nova Resolução as presunções criadas pela jurisprudência de seu Colegiado na vigência da ICVM 358 aos casos de insider trading.

Os incisos do art. 13 da RCVM 44, que passaram a prever expressamente as presunções, permitem a agentes pouco aclimatizados à prática regulatória da autarquia a melhor compreender sua atuação nesses processos. Além disso, na tentativa de harmonizar suas normas com a demais legislação vigente sobre insider trading, a CVM aumentou a abrangência da vedação para todos os valores mobiliários, dando um ponto final a essas discussões.

Dito isso, essa alteração por si, já se colocaria em sentido contrário à proposta em que a Autarquia informa que “não busca ampliar nem reduzir” a regulação sobre insider trading, ocorre que a CVM foi além.

O antigo rol de insiders primários foi reduzido consideravelmente, com a aplicação da presunção de acesso a eles limitada. Porém, criou-se uma situação estranha no tocante a agentes que mantêm algum contato direto com a companhia devido à nova presunção de ciência do inciso III.

Também, ao estabelecer o período de vedação que trata o art. 14 da RCVM 44, a CVM retira da presunção de relevância as informações acerca dos relatórios trimestrais e anuais, para impor uma vedação absoluta a qualquer um que tenha posse dessas informações nos 15 dias anteriores a sua divulgação. Essa alteração trata de uma ampliação considerável da capacidade sancionadora da CVM, tendo em vista se tratar da criação de uma nova infração administrativa, e, em primeira vista, sem previsão legal para tal (tema que merece artigo próprio).

Alternativamente, passou a presumir como relevantes uma ampla gama de informações que antes requeriam prova de sua relevância, facilitando mais ainda o trabalho da acusação, em prejuízo da defesa dos acusados.

Será interessante acompanhar como o Colegiado da CVM irá se posicionar em novos julgamentos de insider trading, especialmente em um momento em que há um grande aumento dos participantes do mercado e, consequentemente, em que o trabalho de fiscalização da autarquia terá que se fazer cada vez mais eficiente e rápido.

_____________ 

1 Edital de Audiência Pública SDM nº 06/2020:

[...]

A reforma tem por principal objetivo aproximar a redação da Instrução CVM nº 358, de 2002, no trecho em que trata de negociações por insiders, da interpretação historicamente consolidada na CVM sobre o tema, ou seja, substituindo menções que sugerem a existência de vedações à negociação por presunções relacionadas à possível prática de uso indevido de informações privilegiadas.

[...]

A reforma também tem por objetivo buscar criar uma vedação autônoma à negociação, por tais agentes, nos dias imediatamente anteriores à divulgação de informações trimestrais e anuais, a qual independe da existência de informação que se configure relevante nos termos do art. 2° da Instrução CVM nº 358, de 2002, pendente de divulgação, ou da intenção em relação à negociação.

2 Nesse sentido, o professor indica como requisitos para a configuração do insider trading: “(a) existência de informação privilegiada não divulgada ao mercado; (b) acesso à informação privilegiada; e (c) intenção de negociar tirando proveito da informação privilegiada” (MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel. O insider trading no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 35). É possível observar que a jurisprudência da CVM adota os mesmos critérios em seus julgados (Cf. BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2015/9443. Relatora: Dir. Flavia Martins Sant’Anna Perlingeiro. Rio de Janeiro. j. em 04.06.2019), sendo divergente, contudo, a posição do CRSFN, que caracteriza a conduta do insider trader com base em: (i) a existência de informação privilegiada; (ii) o acesso a essa informação pelo insider; (iii) a ciência de que tal informação não é pública; (iv) sua efetiva utilização na negociação de valores mobiliários; e (v) a intenção de auferir lucro ou evitar prejuízo com o uso da informação. (Cf. BRASIL. Ministério da Economia. Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Recurso nº 13.433. Relator: Cons. Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa. 390ª Sessão. Brasília. j. em 26.04.2016). No entanto, ao examinar a posição do CRSFN, nota-se que os três últimos itens são, nada mais, que um desdobramento lógico da “intenção de negociar tirando proveito da informação privilegiada”, que Müssnich e a CVM reconhecem.

3 Cf. BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 06/2003. Relatora: Dir. Norma Jossen Parente. Rio de Janeiro. j. em 14.09.2005.

4 BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 04/2004. Relator: Dir. Marcelo Trindade. Rio de Janeiro. j. em 28.06.2006; e BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 15/2010. Relator: Dir. Roberto Tadeu Antunes Fernandes. Rio de Janeiro. j. em 08.12.2015.

5 BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2014/3225. Relator: Dir. Roberto Tadeu Antunes Fernandes. Rio de Janeiro. j. em 13.09.2016; BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº CVM RJ2013/13172. Relator: Dir. Henrique Balduino Machado. Rio de Janeiro. j. em 13.06.2017; e BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº CVM RJ2012/7880. Relator: Dir. Roberto Tadeu Antunes Fernandes. Rio de Janeiro. j. em 19.11.2013.

6 Gonzalez, examinando o § 4º do art. 13 da ICVM 358, observou que o dispositivo pode ser dividido em algumas presunções: “A primeira delas é a de que as demonstrações financeiras trimestrais e anuais contêm informações relevantes para fins da Instrução CVM nº 358/2002. A segunda presunção é a de que tais informações já seriam suficientemente maduras 15 dias antes de sua divulgação” (BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2015/13651. Relator: Dir. Gustavo Gonzalez. Rio de Janeiro. j. em 19.06.2018), essas duas presunções compõe a presunção de relevância do § 4º do art. 13. Mais recentemente, a presunção de relevância foi utilizada no PAS CVM nº 19957.007486/2018-73, ainda na vigência da ICVM 358/02 (BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 19957.007486/2018-73. Relator: Dir. Alexandre Costa Rangel. Rio de Janeiro. j. em 04.05.2021).

7 Nesse sentido, explica Gustavo Borba que “em relação aos insiders primários (art. 13, caput, da ICVM 358/02), há presunção relativa (iuris tantum) de que eles, por conta de seus cargos na administração da Companhia ou de sua posição de controle, sabem das informações relevantes da companhia que ainda não estão disponíveis para o mercado em geral” (BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 26/2010. Relator: Dir. Gustavo Tavares Borba. Rio de Janeiro. j. em 21.11.2017). Do mesmo modo, Francisco Müssnich: “Vigora em relação aos insiders primários uma presunção de que efetivamente detinham as informações privilegiadas, pelo fato de terem uma relação fiduciária, ainda que temporária, com a companhia e de já possuírem acesso direto à informação” (MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel. Insider trading no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 109).

8 No julgamento do PAS CVM nº RJ2016/5039, o diretor relator Gustavo Gonzalez reconheceu o papel da presunção de uso como instrumento para facilitar a persecução ao insider trading, apontando que “é muito mais simples demonstrar a posse de informação privilegiada do que a motivação do insider”. Também fez uma interessante remissão à tese estadunidense da loaded weapon para justificar a presunção de uso: “ao contrário de uma arma carregada, que pode permanecer pronta e não ser utilizada, a informação privilegiada não pode ficar inerte na mente humana” (BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2016/5039. Relator: Dir. Gustavo Gonzalez. Rio de Janeiro. j. em 26.09.2017).

9 Pelo fato de serem alheios ao funcionamento interno da companhia, não se pode presumir que os insiders secundários teriam acesso às informações relevantes desta antes de sua divulgação, como pode se observar em voto do diretor Henrique Machado: “No presente caso, como o Defendente não possuía vínculos com a Companhia emissora dos valores mobiliários à época dos fatos, a Acusação procurou demonstrar a verossimilhança do acesso à informação sigilosa, na medida em que não se presume o conhecimento dele da informação ainda não divulgada ao mercado, como ocorre no caso dos chamados insiders primários” (BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2016/2384. Relator: Dir. Gustavo Machado Gonzalez. Rio de Janeiro. j. em 26.11.2019. Voto do Dir. Henrique Balduino Machado Moreira.). Assim sendo, a única presunção que poderia se aplicar a esse grupo seria a de uso, como observou Marcelo Barbosa: “Nos casos de insider secundário, porém, uma vez demonstrado o acesso a informação privilegiada, opera-se a presunção de uso, segundo a qual presume-se que aquele que negocia com a posse de informação privilegiada o faz com o intuito de obter vantagem indevida” (BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 19957.005704/2019-16. Relator: Presidente Marcelo Barbosa. Rio de Janeiro. j. em 15.09.2020).

10 Nesse sentido, o Conselheiro Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa: “a jurisprudência da CVM, confirmada por este CRSFN nos últimos anos, baseada na Lei nº 6.404/1976, tem sido uniforme no entendimento de que a caracterização do insider trading secundário independe da identificação do agente interno à companhia responsável pelo vazamento da operação – o tipper. Este pode ser mais um indício de posse da informação privilegiada, mas sem dúvida, não é elemento essencial para configuração do ilícito” (BRASIL. Ministério da Economia. Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Processo nº 10372.100009/2018-82. Relator: Cons. Carlos Pagano Botana Portugal Gouvêa. 418ª Sessão. Brasília. j. em 18.10.2018). Também, diretor Gustavo Borba: “ressalto já estar pacificado na CVM o entendimento de que, caso os indícios da infração sejam robustos, múltiplos e convergentes, não se afigura necessário que se prove o caminho que a informação percorreu até aquele que a utilizou indevidamente” (BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 01/2014. Relator: Dir. Gustavo Borba. Rio de Janeiro. j. em 19.06.2018).

11 “O meio hábil de apurar a motivação, nesse tipo de atividade, consiste na prova da finalidade da conduta do agente; mas a regulamentação da CVM, ciente da dificuldade de provar de maneira definitiva tal motivação de auferir vantagem, inverteu o ônus da prova em certas situações de atuação de insiders primários ou equiparados, através da criação de presunções” (TRINDADE, Marcelo. Vedações à negociação de valores mobiliários por norma regulamentar: interpretação e legalidade. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von (coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 462-463.).

12 Cf. BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº 26/2010. Relator: Dir. Gustavo Tavares Borba. Rio de Janeiro j. em 21.11.2017; BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2012/13047. Relator: Dir. Roberto Tadeu Antunes Fernandes. Rio de Janeiro. j. em 04.11.2014. Voto da Dir. Luciana Dias.

13 Renteria defendeu em seu voto no PAS RJ2011/3823 que essas presunções seriam, em verdade, provas indiciárias: “Note-se, a propósito, que o art. 13 da Instrução CVM nº 358/2002 não estabelece, a rigor, hipóteses de inversão do ônus da prova, o que, a meu ver, sequer seria aceitável em sede de processo administrativo sancionador. Antes disso, reconhece a admissão, nas situações ali descritas, da prova indireta mediante presunção simples, também denominada presunção judicial ou prova indiciária¸ a qual não se confunde com a presunção legal” (BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2011/3823. Relator: Dir. Pablo Renteria. Rio de Janeiro. j. em 09.12.2015). Já Gonzalez entendeu que haveria a facilitação da prova, e não a inversão de seu ônus ou sua caracterização como prova indiciária na presunção relativa em casos de insider trading (GONZALEZ, Gustavo. O regime de presunções da Instrução CVM nº 358/2002: análise crítica. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA Guilherme Setoguti J. (coords.). Processo societário – volume III. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 253).

14 Explica Norma Jossen Parente que as alterações promovidas pela reforma da Lei nº 10.303/01 afetaram também o tratamento dado a informações privilegiadas, proibindo a qualquer participante do mercado de capitais que negocie em posse de informação relevante ainda não divulgada referente a qualquer valor mobiliário, independente de quem os emita (PARENTE, Norma Jonssen. Mercado de Capitais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p.724/725.), entendimento que é ecoado por Nelson Eizirik et. al. (EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais: Regime Jurídico, 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 718.) e inclusive já foi aplicado pela CVM, no julgamento do PAS nº RJ2013/1730 (BRASIL. Ministério da Economia. Comissão de Valores Mobiliários. Processo Administrativo Sancionador nº RJ2013/1730. Relatora: Dir. Luciana Dias. Rio de Janeiro. j. em 18.08.2015).

15 De certa forma, sempre se presumiu a ciência sobre a relevância da informação pelos acusados de insider, como parte da presunção de uso – afinal, somente seria possível “a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários” (art. 155, § 4º, da Lei nº 6.404/76) se a pessoa souber se tratar de uma informação relevante. A RCVM 44 inova, de certa forma, ao instituir uma presunção específica para esse fim, mas não se trata de algo tão diferente da prática.

16 A redação final ficou mais objetiva do que a proposta original da Audiência Pública SDM 06/20 de relevância da informação “a partir do momento em que há intenção de que [as operações] sejam realizadas”.

17 Conforme explica José Marcelo Martins Proença, a teoria do mosaico, originária das cortes dos Estados Unidos pressupõe que um analista de valores mobiliários seria capaz de combinar informações públicas com informações não-públicas, porém não consideradas relevantes, para formar uma dedução acerca da informação relevante, sem nunca ter tido acesso a ela (PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider trading – regime jurídico do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 148).

18 A vedação originalmente prevista no § 4º do art. 13 da ICVM 358, que fundamentava a presunção de relevância dessas informações, foi transferida para o art. 14, que agora estabelece uma proibição absoluta de negociação por insider primários pelo período de quinze dias que antecede a publicação das demonstrações trimestrais e anuais. Como se observa no § 1º do art. 14 da RCVM44, a vedação absoluta não impede a CVM de apurar eventual insider trading que ocorra na mesma negociação, eis que a autarquia as considera infrações diferentes. Na Audiência Pública, todavia, levantou-se a possibilidade de tal posição configurar uma violação ao princípio do bis in idem, já que se aplicariam duas penalidades à mesma conduta, mas a CVM apenas se manifestou no sentido de afirmar que “a expectativa é que casos com tais características sejam menos frequentes sob a nova regra, logo haverá menos casos a serem investigados”.

Antonio Pedro Sodré
Membro da equipe do escritório Tocantins e Pacheco Advogados e membro fundador e coordenador do Núcleo Acadêmico de Direito Societário e Mercado de Capitais da PUC-Rio (NADS&M).

Thomaz Fernandes da Veiga
Bacharelando em Direito pela PUC-Rio e membro fundador e coordenador do Núcleo Acadêmico de Direito Societário e Mercado de Capitais da PUC-Rio (NADS&M).

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