1. Conceito e contexto histórico de surgimento do Direito Digital
Para conceituar o Direito Digital Peck (2021) afirma que além dos fatores que compõem a fórmula tridimensional do Direito (Fato, Valor e Norma), existe, no Direito Digital, o fator tempo. Para Miguel Reale havia a união do axiológico (valor da justiça), do fato (realidade social), do normativo (o ordenamento) é necessário um quarto valor, “o conjunto fato-valor-norma necessita ter certa velocidade de resposta para que tenha certa validade dentro da sociedade digital1”.
Já para Araujo (2017) o direito digital, não tendo objeto próprio, seria o direito com modus operandi diferente, sendo, na verdade, a extensão de diversos ramos da ciência jurídica, que cria novos instrumentos para atender anseios e ao aperfeiçoamento dos institutos jurídicos em vigor2.
De forma mais didática pode-se dizer que Direito Digital é o conjunto de regras e códigos de conduta que rege o comportamento e as novas relações dos indivíduos cujo meio de ocorrência ou prova da manifestação de vontade seja o digital, gerando dados eletrônicos que consubstanciam e representam as obrigações assumidas e sua respectiva autoria. Deve, portanto, reunir princípios, leis e normas de autorregulamentação que atendam ao novo cenário de interação social não presencial, interativo e em tempo real. O Direito Digital é, portanto, a evolução do próprio Direito, para atender às mudanças de comportamento e às necessidades de novos controles de conduta gerados pelo uso da Tecnologia (PINHEIRO, Patrícia Peck, 20213).
É a evolução do próprio direito e abrange todos os princípios fundamentais e institutos que estão vigentes e são aplicados até hoje, assim como introduzindo novos institutos e elementos para o pensamento jurídico, em todas as áreas (PINHEIRO, Patrícia Peck, 20214).
O direito digital e eletrônico, também nominado por alguns como
Direito da internet, Direito cibernético, Direito da Informática, Direito da Tecnologia e Direito das Telecomunicações entre outros nomes, embora induza na compreensão de se tratar de uma disciplina recentemente criada, na verdade é objeto de estudos no Brasil há mais de vinte anos, tendo sido incluído como disciplina obrigatória nos cursos de Direito desde 14 de abril de 2021, quando o Ministério da Educação aprovou a inclusão do Direito Digital nas diretrizes curriculares dos Curso de Direito trazidas pela Resolução 5/18 do Conselho Nacional de Educação-CNE e da Câmara de Educação Superior– CES, alterando seu artigo 5º5.
A compreensão do que é o Direito Digital, sua importância atual e aplicação pelos profissionais do direito demanda uma breve análise da evolução tecnológica e da própria era da Sociedade da Informação.
É concebida a evolução da humanidade em três grandes momentos ou ondas: a era agrícola; a era industrial e; a era da informação.
A primeira evolução da humanidade foi experimentada pela era agrícola, marcada pelo uso da terra como instrumento de geração de riqueza e poder, seguida da segunda evolução, a era industrial, pela qual combinou-se a propriedade, o trabalho e capital.
No século XX invenções como telecomunicação, telefone, cinema, rádio e televisão marcaram a terceira evolução da humanidade, a era da informação.
A era da informação se consolida com a tecnologia digital e a criação da internet, que remonta à década de 60 e 70, quando os Estados Unidos desenvolveram a Rede de Agência de Pesquisas em Projetos Avançados - ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network), cujo objetivo era a transmissão de dados pelos militares.
A velocidade de transmissão de informações e a descentralização das fontes de informação pela tecnologia digital foi essencial para essa consolidação da era da informação nos últimos anos.
Por isso, tem sido dito que “a informação é o (novo) elemento estruturante que (re) organiza a sociedade, tal como o fizeram a terra, as máquinas e a eletricidade, bem como os serviços, respectivamente, nas sociedades agrícolas, industrial e pós-industrial” (BIONI, Bruno Ricardo, 2019)6.
O termo Sociedade da Informação havia sido apontado por Alvin Tofflher em 1970, segundo o qual “o instrumento central de sobrevivência das organizações seria a velocidade da tomada da decisão, já que, com o desenvolvimento da tecnologia, esse processo poderia ser cada vez mais acelerado” (PECK, PINHEIRO, 2021, pág. 34)7.
Embora a Sociedade da Informação represente um momento positivo da evolução da humanidade, a quantidade e forma como as informações são transmitidas também implicou em problemas, tal como é possível explicitar a dificuldade de se fixar o território em que as relações jurídicas ocorrem, bem como seus efeitos, na medida que o mundo virtual constrói territórios difíceis de balizar.
Um exemplo de situação decorrente das novas tecnologias em que há possível divergência quanto território/local é a previsão do art. 7º da LINDB e o art. 11 da lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet.
Veja-se que na LINDB, que traz regras de direito internacional privado, o local de aplicação das leis pode ter diferentes critérios, como a lei do lugar onde ocorreu o dano, domicílio de um dos participantes da relação jurídica, local onde se realiza a obrigação ou onde deva ser cumprida, mas no Direito Digital pode-se acrescentar o local onde foi registado o endereço eletrônico da pessoa, a teor do que diz o art. 11 do Marco Civil da Internet.
Assim, com a evolução tecnológica tem-se ainda mais a necessidade de regulamentação de relações jurídicas de consumidores na internet, a investigação de prática de crimes pelos meios digitais entre outros assuntos afetos, sobretudo em razão da quantidade de informação que a sociedade tem gerado.
Estima-se que até o ano de 2025 cerca de 175 zettabytes em dados serão gerados pela sociedade (Insper, 2022)8.
Trata-se de uma quantidade imensa de informações trafegando na internet que não pode ser furtada do Direito Digital, até porque só no Brasil há cerca de 152 milhões de usuários de internet, correspondente a 81% da população acima de 10 anos de idade do país (fonte: TIC DOMICÍLIOS, 2020)9.
2. O Direito Digital e Eletrônico como multi e interdisciplinar
Embora ainda remanesça discussão doutrinária sobre a autonomia do Direito Digital, não se tem dúvida sobre seu caráter multidisciplinar e interdisciplinar.
No campo da interdisciplinaridade o Direito Digital estabelece relações uma ou mais disciplinas ou ramos de conhecimento, ou seja, há algo em comum com uma ou mais disciplinas, como o Direito Civil, Direito Penal, Direito Processual Civil e Penal etc.).
No âmbito multidisciplinar, ele dialoga com todas as áreas do Direito, estando interconectado e codependente delas, sobretudo em razão do fato que as novas tecnologias afetaram quase tudo no cotidiano dos indivíduos e não é diferente no campo jurídico.
3. Regramento do Direito Digital
O Primeiro Diploma Legal afeto ao Direito Digital no Brasil é a Portaria Interministerial 147 de 31 de maio de 199510, dos Ministérios da Comunicação e da Ciência e Tecnologia, que regulou o uso de meios da rede pública de telecomunicações para provimento e utilização de serviços de conexão à internet (PIMENTEL, 2018)11.
Mais recentemente, na última década, diversas foram as legislações aprovadas regulamentando aspectos que dizem respeito e devem ser estudados pelo Direito Digital, como por exemplo, a lei 12.737/12, que disciplina crimes na internet, apelidada de Lei Carolina Dieckmann, o Marco Civil da Internet, lei 12. 965/14, a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, a lei 13.709/18, entre outras.
Todavia, conforme já ressaltado, o caráter multi e interdisciplinar do Direito Digital faz com que não só aquelas leis que diretamente tratam de transmissão de dados, aspectos virtuais e tecnológicos sejam aplicadas, mas também as normas já existentes, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, o Código Penal, Código Civil.
Enfim, há uma série de novas leis e projetos de lei que visam a atender a questões novas específicas do uso da tecnologia, referentes a pirataria de software, comércio eletrônico, direitos autorais, crimes eletrônicos, além de Regulamentações e Tratados Internacionais. Tudo isso compõe o quadro normativo do Direito Digital atual (PECK, 2021, p. 222)12 .
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ARAÚJO, Marcelo Barreto de. Comércio eletrônico; Marco Civil da Internet; Direito Digital. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo, 2017.
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2 ed. FORENSE: Rio de Janeiro, 2019.
PIMENTEL, José Eduardo de Souza. V. 13. Introdução do direito digital. Revista Jurídica ESMP-SP: São Paulo: 2018, p. 16-39)
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
Portaria Interministerial N° 147, de 31 de maio de 1995. [s.l: s.n.]. Disponível em: https://www.cgi.br/portarias/número/Portaria_147.pdf. Acesso em: 14 jan. 2022.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.29.
TIC DOMICÍLIOS. Comitê Gestor da Internet no Brasil. [s.l: s.n.]. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20211124201233/tic_domicilios_2020_livro_eletronico.pdf acesso em 28/01/2022.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR. RESOLUÇÃO Nº 2, DE 19 DE ABRIL DE 2021. [s.l: s.n.]. Disponível em: .
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1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
2 ARAÚJO, Marcelo Barreto de. Comércio eletrônico; Marco Civil da Internet; Direito Digital. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo, 2017.
3 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
4 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
5 Resolução nº 2, DE 19 DE ABRIL DE 2021 Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior.
6 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2 ed. FORENSE: Rio de Janeiro, 2019.
7 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
8 O mar de dados virou um oceano. Mas nem tudo é aproveitado. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2022.
9 TIC DOMICÍLIOS. Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2020.
10 Portaria Interministerial N° 147, de 31 de Maio de 1995.
11 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2021.
12 PECK