É inegável que 2021 ficará marcado para o direito empresarial brasileiro como um dos anos em que a legislação societária mais apresentou mudanças e novidades. Começando pelo Marco Legal das Startups, que, dentre várias outras novidades, instituiu a SAS – Sociedade Anônima Simplificada, passando pela Lei de Ambiente de Negócios e terminando com a entusiasmante Lei da SAF – Sociedade Anônima do Futebol.
A mencionada Lei de Ambiente de Negócios (Lei 14.195/21), sancionada ainda no final de agosto de 2021, trouxe uma das mais discutidas e aguardadas alterações da Lei das Sociedades por Ações (“Lei das S.A.”): a inclusão do chamado “voto plural” ou “super voto”.
Tal mecanismo, em síntese, permite que empresas emitam ações ordinárias com poder de voto superior às demais, possibilitando que um acionista (geralmente o fundador) exerça o controle da companhia ainda que com pequena participação no capital social. Na prática, o voto plural possibilita a captação pública de recursos sem perda do poder de mando na companhia, o que representa uma interessante opção para escalada de empresas que pretendem manter o plano de gestão e desenvolvimento dos seus fundadores.
A flexibilização da regra do “one share one vote” atribuída às ações ordinárias representa um marco na legislação societária brasileira, mas o voto plural já era amplamente utilizado em países com maior desenvolvimento do mercado de capitais, como Estados Unidos, Singapura e Hong Kong. Fato que, em conjunto com tantos outros, culminava na fuga para abertura de capital no exterior de algumas empresas brasileiras, tendo como um dos exemplos mais famosos o caso da XP Inc., que optou por listar seus papéis nos Estados Unidos.
O instituto trouxe acalorados debates na doutrina e no mercado brasileiro, contrapondo os que se dizem defensores dos direitos dos minoritários e dos standards de governança corporativa e os que visualizavam no voto plural uma condição de amadurecimento do mercado de capitais brasileiro.
A intenção desta breve provocação, entretanto, não está em repisar os pontos levantados pelos que nutrem simpatia ou antipatia pelo voto plural, mas sim analisar as principais peculiaridades e efeitos deste instituto de acordo com a legislação aprovada.
A redação do novo art. 110-A da Lei das S.A. sedimentou o voto plural brasileiro, estabelecendo o teto de 10 votos por ação ordinária. Questiona-se, neste ponto, a racionalidade utilizada para determinação deste teto tão exato, mas fato é que a disposição permite que um acionista detenha o controle majoritário da companhia com menos de 10% das ações ordinárias, ou menos de 5% para os casos em que existam ações preferenciais sem direito de voto até o limite de 50% imposto pela Lei das S.A.
Outra característica importante da Lei 14.195/21 foi estabelecer uma “data de validade” ao voto plural, que possui uma vigência inicial de até 7 anos, prorrogáveis por qualquer prazo, quando aprovado por metade, no mínimo, dos acionistas titulares de ações sem direito a voto plural e restando garantido o direito de retirada mediante reembolso aos acionistas divergentes. A disposição, chamada de sunset clause, cria, na prática, uma espécie de “julgamento” da administração pelo “tribunal de acionistas” – assembleia geral especial -, já que os acionistas sem direito a voto plural é que estarão incumbidos de decidir pela prorrogação daquele controlador ou expiração do voto plural e volta, às ações ordinárias, do regramento “one share one vote”.
Um dos possíveis efeitos da sunset clause poderá ser a especulação das ações de companhias abertas quando for chegado o momento dos demais acionistas decidirem pela continuação ou não do voto plural. Por um lado, a prorrogação poderá ser vista como uma premiação e voto de confiança dos acionistas ao eventual bom trabalho realizado pela administração/controlador, gerando a posterior valorização das cotações.
Por outro lado, companhias que detenham um quadro acionário repartido e conflituoso poderão ver uma queda de suas cotações gerada pela não valorização e interrupção dos trabalhos de uma administração que, apesar das disputas internas, vinha realizando um bom trabalho. Caberá saber se haverá questionamentos, nesses casos, quanto à abusividade do voto de tais minoritários, nos termos do art. 115 da Lei das S.A.
Considera-se, contudo, positivo o fato da sunset clause minimizar o efeito de encastelamento (entrenchement) da administração, uma das consequências naturalmente geradas pela admissão do voto plural.
Outro aspecto relevante do voto plural brasileiro é a restrição de seu uso apenas para companhias fechadas ou companhias abertas que não tenham negociado ações ou valores mobiliários conversíveis em ações em mercados organizados. Ou seja, o voto plural continua vedado às companhias já listadas em bolsa de valores. A intenção do legislador, nesse ponto, foi “não mudar as regras no decorrer jogo”, já que a adoção do voto plural poderia representar um prejuízo aos acionistas minoritários de tais companhias. Acontece que a vedação, em contrapartida, representou uma situação de “duas regras para o mesmo jogo”, que terminou por “penalizar” aqueles que aderiram primeiro a ele. Talvez uma opção menos desigual poderia ser a estipulação de quóruns mais exigentes para instituição do voto plural em companhias abertas já listadas, mas essa não foi a escolha do legislador.
Para tais companhias, que estarão excluídas das benesses do novo instituto, restará a adoção de outras medidas já conhecidas do mercado para estabilização de um controle minoritário, como as Poison Pills e a limitação de número de votos por acionista (voting right ceiling)1. Esta última, por sua vez, pode ter consolidada ainda mais a sua compatibilidade com o ordenamento societário brasileiro, já que agora expressamente permitida a flexibilização da regra “uma ação um voto” para as ações ordinárias.
Também ficou estipulada a vedação (com risco de automática conversão em ordinárias comuns) à transferência, a qualquer título, das ações com voto plural a terceiros, guardadas algumas exceções. A regra de conversão automática em ordinárias comuns também se aplica aos casos em que o acordo de acionistas entre titulares de ações com e sem voto plural dispor sobre exercício conjunto do direito de voto.
Ficaram vedadas, ainda, operações de incorporação e fusão de companhia aberta já listada que não adote voto plural com outras companhias que adotem voto plural, além da vedação à cisão/incorporação de parcela cindida de companhia aberta já listada que não adote voto plural para constituição de nova companhia com adoção do voto plural.
Percebe-se que tantas vedações e limitações terminaram por amarrar demasiadamente o instituto, restringindo sua utilidade e versatilidade. Esqueceram, talvez, que a opção por tornar-se ou continuar a ser acionista de determinada companhia sempre será uma escolha do próprio investidor, além de que o voto plural, em si, não traz mais controvérsias e perigos que outros mecanismos já utilizados no país para estabilização de controle minoritário. O aumento do custo de agência nas Poison Pills2 é um exemplo disso.
Apesar de algumas amarras serem importantes, acredita-se que houve um engessamento do voto plural; caberá, assim, à criatividade dos societaristas e da consolidação da regulação da CVM para que seja possível visualizar, na prática, a efetividade da referida alteração legal. Os ditames populares classificariam a novidade legislativa como um “antes feito que perfeito”. De fato, essa é a percepção inicial de um instituto que desagradou tanto aos seus entusiastas quanto aos seus críticos.
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1 Trata-se de medida defensiva com a função de limitar a um número máximo a quantidade de votos que um mesmo acionista poderá exercer. Ou seja, desconsidera-se a participação acionária excedente ao teto, impondo-se uma limitação do direito de voto por acionista. Essa cláusula já é adotada em companhias como a própria B3 S.A., Embraer – Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A., Petro Rio S.A. e Lojas Renner S.A.
2 Em Memorando aprovado no Parecer 36/2009, os ex-diretores da CVM Otávio Yazbek e Marcos Pinto ressaltam: “Poison pills dificultam ofertas hostis de controle e, por isso, aumentam custos de agência” e “Para a nossa análise, os custos de agência mais importantes são as perdas sofridas em virtude da ineficiência ou oportunismo da administração”.