O regime de centralização de execuções na Lei da SAF: a SAF como pressuposto
quarta-feira, 17 de novembro de 2021
Atualizado às 07:27
A Lei 14.193/21 instituiu a sociedade anônima do futebol (SAF) e criou instrumentos e incentivos para formação de um microssistema em que ela, a SAF, e apenas ela, terá função nuclear. Trata-se da Lei da SAF, portanto.
A Lei da SAF não se confunde, em seu propósito sistematizador, com as leis que tratam do associativismo ou do clube-empresa; os objetos de tutela são distintos - e, de certo modo, incompatíveis.
Por isso, o tratamento que lhe vem sendo eventualmente dado, com a alcunha de lei do clube-empresa, está equivocado e não modifica sua natureza e sua estrutura. A SAF e o clube-empresa são institutos distintos.
Com efeito, o clube-empresa foi concebido pela Lei Zico, reformado pela Lei Pelé e modificado por leis posteriores, incluindo a Lei do Profut, e não foi substituído pela SAF. Ambos os institutos - o clube-empresa e a SAF - convivem, sem se confundir, mas se sujeitam a regimes jurídicos diferentes.
Ademais, o clube (que também não se confunde com o clube-empresa), por definição, é uma associação civil. Ao se dedicar ao futebol profissional, atrai as normas da Lei Pelé. A mesma que, aliás, regula o clube-empresa. É dentro de seus microssistemas que o clube, em especial, e o clube-empresa, se existente, deverão encontrar os caminhos organizacionais, de manejo e de solucionamento de seus problemas jurídicos, econômicos ou financeiros.
Sendo assim, o sistema jurídico pátrio oferece três formas de organização da atividade futebolística: o clube, o clube-empresa ou a SAF, que são dirigidas por leis próprias.
Há na Lei da SAF, é verdade, pontos de contato entre o clube (e o clube-empresa) e a SAF, que servem, sobretudo, para instrumentalizar a criação desta. Não poderia ser de outra maneira, aliás, pois a SAF deverá nascer, com maior frequência, da vontade de um clube (ou mesmo de um clube-empresa), que se transformará em SAF ou a constituirá, por via da cisão (art. 2º da Lei da SAF) ou do drop down (art. 3º da Lei da SAF).
A Lei da SAF não criou - e não poderia criar - um muro, como o de Berlim, entre as entidades; inclusive porque, além de, em muitos casos, o clube permanecer acionista da SAF, a Lei se preocupou em oferecer instrumentos que tutelassem interesses e direitos de stakeholders, formados anteriormente ao surgimento da SAF, para protegê-los em decorrência justamente da sua criação.
Esses instrumentos, no entanto, não foram oferecidos para que o clube ou o clube-empresa reformulassem as bases dos negócios que praticaram ou para abalar qualquer ato jurídico perfeito. Tampouco para organização ou reorganização isolada de clube. Servem, apenas, no âmbito da criação da SAF.
Veja-se, a propósito, que o Capítulo I, intitulado "Da Sociedade Anônima do Futebol", é dividido em seções que tratam (i) de disposições introdutórias, (ii) da constituição da SAF, (iii) da governança da SAF, (iv) das obrigações da SAF e, por fim, (v) do modo de quitação das obrigações.
Apesar de a Seção V não mencionar expressamente a SAF, ela não tem como ser isolada do restante da Lei, muito menos aplicada fora do microssistema que se criou. Não se revela, pois, um apêndice da Lei Pelé, a permitir sua utilização pelo clube ou pelo clube-empresa que não passou ao modelo da SAF.
Apesar disso, o solucionamento das obrigações existentes dos clubes, pelos próprios clubes, é uma premissa fundamental da Lei. Mesmo assim, não se pretendia - e não se pretende - que a SAF sirva apenas como obstáculo para satisfação de credores anteriores. Ao contrário: ela pode contribuir para resolver um problema estrutural e endêmico, que afeta times e a sociedade em geral. Daí se ter previsto, em uma situação específica, um fluxo obrigatório de recursos da SAF para o clube e um mecanismo de responsabilização subsidiária da SAF.
Tal situação envolve o regime de afetação de receitas, previsto no art. 10, segundo o qual "o clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente: I - por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei; II - por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista".
Ou seja, a condição necessária da concessão do regime centralizado de execuções (RCE), previsto no mencionado inciso I do art. 13, é o processo constitutivo da SAF.
Note-se, a propósito, que a obrigação de pagar deverá ser satisfeita com duas espécies de receitas, necessariamente: receitas próprias, do clube, advindas, por exemplo, de contribuições associativas, e de receitas transferidas pela SAF. A letra "e" serve, pois, como conjunção aditiva.
Já o advérbio quando, por sua vez, não se dissocia da Lei e foi empregado para servir como conjunção integrante e proporcional, e não adversativa; de modo que a transferência de suas receitas, no âmbito do RCE - que se somam às receitas próprias -, deverá ocorrer a partir do momento em que o processo de criação da SAF estiver concluído. Em linguagem cotidiana: quando estiver, e não se estiver constituída.
Essa construção se integra às normas dos artigos 15 e 24.
O art. 15, aplicável apenas à hipótese de adesão ao RCE, concede prazo inicial de 6 anos, ampliável para 10, observadas certas condições, para pagamento de credores do clube, pela perspectiva de ampliação de suas receitas - que advirão da SAF -, e não com o propósito de oferecer moratória aos clubes endividados.
Caso os prazos do RCE não sejam observados, os credores ainda contarão com mais um meio de satisfação de seus créditos, que também envolve a SAF: a responsabilização subsidiária, na forma do art. 24: "superado o prazo estabelecido no art. 15 desta Lei, a Sociedade Anônima do Futebol responderá, nos limites estabelecidos no art. 9º desta Lei, subsidiariamente, pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas anteriores à sua constituição, salvo o disposto no art. 19 desta Lei".
Assim, não há mistério: previu-se um sistema de satisfação de obrigações anteriores do clube, pelo próprio clube, com condições específicas e especiais, por intermédio do RCE, por conta da perspectiva de melhoria e do aumento do fluxo de recursos que advirão da SAF. Ou seja: o modelo pressupõe a SAF.
Portanto, a aplicação isolada da Lei, pelos clubes, para impor unilateralmente novas condições a credores existentes ou para justificar a adesão ao RCE, sob o manto do associativismo, conforme vem sendo admitida por alguns Tribunais, fruto de enorme malabarismo retórico, não encontra guarida na Lei da SAF - tampouco em qualquer outra lei.
Há, por fim, uma, e apenas uma exceção, de natureza estrutural, na Lei da SAF, que se dirige ao clube: a novidade da admissão do uso da recuperação judicial, nos termos do art. 25, tema que será abordado oportunamente.