Migalhas de Peso

O filtro de relevância no recurso especial: há como espelharmos a experiência obtida na repercussão geral?

O STJ é por todos conhecido como o “Tribunal da cidadania”, e não apenas por ter sido criado pela “Constituição cidadã”, mas pelo reconhecimento de seu desafio e de sua importância institucional na uniformização do direito, que se materializa, no final, pela garantia da segurança jurídica.

13/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Apresentada em 23/8/12 pelos deputados federais Rose de Freitas (PMDB/ES) e Luiz Pitiman (PMDB/DF), a PEC 209/12 visava, com a inserção do parágrafo 1º ao artigo 105, da Constituição Federal, espelhar, ao recurso especial, a experiência do requisito da repercussão geral para o recurso extraordinário, com o estabelecimento do ônus do recorrente de “demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional”.1 A justificativa já é por muitos conhecida: o crescente acervo processual do STJ2 e a generalização da ideia de que o STJ julga muitas questões “corriqueiras”, de suposta menor importância frente à estatura institucional da Corte3.

Nos anos seguintes, a proposta foi debatida e aprovado o parecer na Comissão Especial (em 13/5/14) e na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (em 27/3/13). Em 30/11/16, o Plenário a aprovou em primeiro turno com 327 votos a favor, 75 contras e 5 abstenções. Em 15/3/17, o Plenário a aprovou em segundo turno, com 375 votos a favor, 7 contras e 2 abstenções. Em 21/3/17, a Proposta foi enviada e recebida no Senado Federal, onde foi autuada como PEC 10/17.

Nesse ínterim, sobreveio uma importantíssima inovação legislativa e que nos traz algumas reflexões. O então novo Código de Processo Civil, que passou a vigorar em 18.3.2016, trouxe uma série de instrumentos de objetivação de julgados e uma aproximação inédita com o sistema de precedentes do direito anglo-saxão. Destacam-se, apenas a título de exemplo, a: i) instrumentalização de soluções de litígios de massa, como o Incidente de Resoluções de Demandas Repetitivas (“IRDR”) e a Assunção de Competência (“AC”); ii) o maior regramento dos recursos especiais repetitivos; iii) a inovação no sistema das tutelas provisórias, com a possibilidade de concessão da tutela de evidência; iv) a possibilidade de julgamento liminar de improcedência do pedido se houver entendimento firmado em sede de repetitivo, IRDR ou AC; v) a ampliação dos poderes monocráticos dos relatores quando defrontados com causas que contrariam entendimento firmado em sede de repetitivo, IRDR ou AC; vi) o novo regime da Reclamação; e, vii) a possibilidade de os honorários sucumbenciais serem majorados em sede recursal.

É evidente a intenção do legislador de confrontar com o notório abarrotamento de processos que o judiciário brasileiro sofre. Também é claro que essas alterações reverberam na cultura judiciária, no sentido de demandar, cada vez, a observância pelos magistrados e pelos advogados da existência de precedentes e da delimitação do objeto dos recursos repetitivos. E como toda e qualquer mudança cultural, leva-se tempo para bem assentá-las, notadamente, quando provocadas via alteração legislativa.

Chegamos então na primeira semana do mês de novembro de 2021. O Plenário do Senado Federal, à unanimidade dos 69 votantes, aprovou a PEC 10/2017, com acolhimento parcial de emendas. Na mesma sessão do dia 3.11.2021, em segundo turno, foi aprovada a PEC à unanimidade dos 70 votantes. Por conter alteração da proposta originária da Câmara dos Deputados, a emenda será agora por aquela casa apreciada. E aqui, vale nos atentarmos ao teor dessa mudança. O artigo 105, da Constituição Federal, passaria a conter dois parágrafos para reger a relevância da matéria nos seguintes termos:

§ 1º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo não o conhecer por esse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.

§ 2º Haverá a relevância de que trata o § 1º nos seguintes casos:

I – ações penais;

II – ações de improbidade administrativa;

III – ações cujo valor de causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos;

IV – ações que possam gerar inelegibilidade;

V- hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça;

VI – outras hipóteses previstas em lei.

Da leitura do Parecer 266, de 2021-PLEN/SF, de relatoria do Senador Rogério Carvalho (PT-SE), que embasou a aprovação nesses termos, extrai-se novamente a grande preocupação sob o aspecto quantitativo do número de processos no STJ4, e uma ressalva, todavia, sobre a necessidade de estabelecimento das “presunções de relevância”5, previstas nos cinco primeiros incisos acima transcritos. Ao final, no inciso VI, abre-se a porta para a eventual ampliação dessas hipóteses por via legislação infraconstitucional.

Uma das primeiras perguntas possíveis de serem feitas é sobre a restrição da função uniformizadora do STJ.

Ao estabelecer em rol taxativo as presunções de relevância, a PEC torna praticamente impossível de se sanar dissensos jurisprudenciais existentes entre os mais de trinta tribunais do país (dentre locais e federais)6. Matérias que não tratam sobre direito sancionatório (seja na esfera criminal, seja na esfera da improbidade administrativa) ou interferir na elegibilidade, só poderão ser examinadas se possuírem alto valor econômico envolvido (acima de 500 salários-mínimos7) ou se contrariarem a “jurisprudência dominante”, embora ainda não esteja claro o que se tomará como parâmetro para qualificar esse entendimento (se somente precedentes oriundos de recursos especiais repetitivos, ou se também precedentes reiterados não repetitivos).

É fácil inferir que as matérias de baixa repercussão econômica e possivelmente inéditas que sejam julgadas de forma diferente entre os tribunais não serão pacificadas pelo STJ. Isso nos traz à lembrança a crítica, feita pelos Deputados Federais autores da PEC, de que “acotovelam-se no STJ diversas questões de índole corriqueira”, o que evoca a questionável ideia de que a Corte só deveria lidar com questões tidas como importantes.

Trata-se, pois, não de uma mera reestruturação funcional do STJ para otimizar a sua atuação, mas sim de uma reestruturação institucional que se pretende materializar.

Em outras palavras, a ideia do Constituinte originário de criar o STJ como tribunal apto a uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional está a ser significativamente mitigada, transformada agora em um tribunal vocacionado apenas a lidar com um grupo temático presumidamente relevante.

Pode-se argumentar que a experiência da repercussão geral no recurso extraordinário demonstra que não há incompatibilidade constitucional, bem como evidenciou ser um processo natural que as Cortes Superiores passem a julgar somente questões de relevância nacional. Esse raciocínio está corretíssimo, mas, a sua transposição absoluta para a realidade do recurso especial, e dos termos da PEC mencionada, parece encontrar alguns problemas.

Primeiro, por mais óbvia que seja essa afirmação, é necessário enfatizá-la: as funções institucionais do STF e do STJ se diferem substancialmente, e não apenas quanto ao objeto de controle (se normas constitucionais ou normas infraconstitucionais). Se diferem, sobretudo, na forma em que exercem as suas funções uniformizadoras da interpretação jurídica.

No âmbito do STF, esse papel encontra expressão maior em sede de controle concentrado de constitucionalidade, em especial por via da Ação Declaratória de Constitucionalidade e, subsidiariamente, via Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Julga-se, portanto, o direito em tese, em caráter abstrato e provocado por um rol taxativo de legitimados ativos previsto no artigo 103, da Constituição Federal. Por sua vez, no âmbito do STJ, esse papel se materializa sobretudo pela via do recurso especial. Nem seria preciso destacar que se julga o direito concreto, materializado em um substrato fático que desagua na análise de direito objetivo, sem desconsiderar, todavia, o direito subjetivo adjacente.

Em resumo, a repercussão geral, por si só, não restringiu a função uniformizadora que se extrai do STF enquanto guardião da Constituição, pois em nada impactou a forma de controle concentrado de constitucionalidade. Por outro lado, o filtro da relevância no STJ diz respeito diretamente à limitação desse papel ao eleger alguns temas passíveis de serem conhecidos.

Segundo, há uma diferença considerável no volume do acervo normativo a ser controlado. Mesmo a nossa Constituição sendo prolixa, o aspecto quantitativo e qualitativo do objeto de controle pelo STF é completamente diferente do exercido pelo STJ. Sob a ótica qualitativa, tem-se a realidade de que poucos conflitos judiciais dizem respeito a uma violação direta ao texto constitucional, de modo que é razoável esperar que a maior parte das discussões gravitem em torno do direito infraconstitucional. Sob a ótica quantitativa, a possibilidade de divergências hermenêuticas surgirem de centenas de dispositivos normativos constitucionais é significativamente inferior à possibilidade de divergências surgirem da interpretação de centenas de milhares de dispositivos normativos infraconstitucionais.

Desse modo, é natural que os fatos da vida levados aos tribunais locais e federais, que ensejam discussões jurídicas relevantes no direito infraconstitucional, produzam divergências a serem solvidas em maior quantidade e velocidade pelo STJ do que as eventuais divergências sobre direito constitucional solvidas pelo STF. Talvez por isso, mostra-se sábia a Constituição Federal ao dispor que a composição do STF é taxativa em onze Ministros (artigo 101, caput), enquanto a composição do STJ é de “no mínimo, trinta e três Ministros” (artigo 104, caput). Maior a quantidade de demandas, mais julgadores naturalmente se espera para lidar com celeridade.

Por fim, façamos uma retomada à exposição inicial sobre os novos instrumentos processuais de objetivação dos julgados e a ideia de formação de uma nova cultura para lidar com os precedentes. Passados poucos mais de cinco anos da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, e por mais aceleradas que sejam as demandas contemporâneas e o crescente imediatismo, não nos parece que ainda temos tempo suficiente para avaliarmos os efeitos a longo prazo da mudança cultural de todos os operadores do direito para tratar com esses novos instrumentos.

De um lado, há a advocacia que cotidianamente aprende a conhecer mais os julgados repetitivos do STJ e a melhor formular as suas estratégias processuais, notadamente, ao analisar a (im)pertinência de determinada pretensão antes mesmo da propositura da petição inicial. Também ao analisar a viabilidade e a conveniência de interpor mais um recurso, haja vista a possibilidade de vir a ser arbitrada multa e serem os honorários em desfavor do cliente majorados. De outro lado, a magistratura que cotidianamente incorpora o necessário respeito à jurisprudência do STJ, apesar das possíveis ressalvas pessoais dos juízes a respeito do tema.  Também o aprendizado com o manejo do IRDR e da AC tendem a naturalmente diminuir o acervo recursal.

Desse modo, para além da questionável constitucionalidade da mudança institucional do STJ que se pretende realizar, reflete-se que também pelo desenvolvimento de uma nova cultura jurídica, parece ser precipitado promover profundas mudanças (que estão ligadas, sobretudo, à gestão processual da Corte) e que impactarão a observância do bom direito do jurisdicionado.

A Constituição Federal de 1988 é carinhosamente chamada de “Constituição cidadã” por incorporar um então inédito número de direitos e garantias fundamentais, em resposta ao período autoritário anterior. De igual modo, o STJ é por todos conhecido como o “Tribunal da cidadania”, e não apenas por ter sido criado pela “Constituição cidadã”, mas pelo reconhecimento de seu desafio e de sua importância institucional na uniformização do direito, que se materializa, no final, pela garantia da segurança jurídica. Sendo assim, qualquer mudança em seu modo de agir deve ser feita com muita temperança, tendo o norte de sua idealização sempre à vista.

__________

1 Texto original da proposta. Disponível aqui.

3 “De tal sorte, acotovelam-se no STJ diversas questões de índole corriqueira, como multas por infração de trânsito, cortes no fornecimento de energia elétrica, de água, de telefone. Ademais, questões, inclusive já deveras e repetidamente enfrentadas pelo STJ, como correção monetária de contas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que, nos primeiros 16 (dezesseis) anos de funcionamento do STJ, respondeu por cerca de 21,06% do total de processos distribuídos, um quantitativo de vultosos 330.083 (trezentos e trinta mil e oitenta e três) processos.” – Idem.

4 “Apesar dos esforços e do compromisso de Ministros e de servidores do “Tribunal da Cidadania” com a diminuição do acervo processual, salta aos olhos a avalanche de processos que o Tribunal recebe anualmente. Segundo o Relatório de Gestão de 2020 do STJ, foram distribuídos no Tribunal naquele ano 354.398 processos, com uma média de 10.739 de processos distribuídos e registrados por Ministro. A expectativa do STJ é de que o filtro de relevância diminua em 50% o volume de recursos que chegam ao tribunal.” Disponível aqui.

5 Idem, p.4.

6 A hipótese do inciso VI, do § 2º, não abrangeria o cabimento do recurso especial pela divergência pretoriana. Extrai-se do Parecer n.º 266, de 2021-PLEN/SF, que a intenção manifesta do legislador é a de legar a esse sexto inciso apenas a possibilidade de lei posterior realizar a “calibragem” do filtro: “Contudo, em sentido semelhante ao da Emenda nº 1-CCJ, de autoria do Senador Flexa Ribeiro, e ao da Emenda nº 3-PLEN, que teve como primeiro signatário o Senador Edison Lobão, mas que contou com a assinatura de 28 Senadores, entendemos necessário que o Constituinte reformador já defina objetivamente no texto constitucional algumas hipóteses de presunção de relevância do recurso especial, quais sejam: i) nas ações penais; ii) nas ações de improbidade administrativa; iii) nas ações cujo valor de causa ultrapasse quinhentos salários mínimos; iv) nas ações que possam gerar inelegibilidade; e v) nas hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Além disso, deve o texto constitucional abrir margem para que outras hipóteses previstas em lei possam ter previsão de relevância como forma de se possibilitar a correta calibragem posterior do filtro recursal. Desse modo, a Emenda nº 3-PLEN é parcialmente acolhida, no que diz respeito aos pontos acima descritos.” (destaques não originais) – Disponível aqui.

7 Vigentes à data da propositura da ação, segundo o Parecer 266, de 2021-PLEN/SF.

Thiago Luiz da Costa
Graduado em Direito pelo Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Mestre em Constituição e Sociedade pelo IDP. Advogado do escritório Trindade & Reis Advogados Associados.

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