Em 11/03/2020 o Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde, Dr. Tedros Adhanom, elevou o estado da contaminação à pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Em 20/03/2020 foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto Legislativo 06/20 a ocorrência de estado de calamidade pública, com efeitos até 31/12/2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/20 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastavam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. A decisão foi tomada no referendo da medida cautelar deferida em março pelo Ministro Marco Aurélio na ADIn 6341.
Assim, coube também aos Estados e aos Municípios o poder de legislar sobre matéria sanitária de interesse local ou estadual. Como é de conhecimento público houve severas restrições a circulação de pessoas, bens e serviços, ocasionando um recrudescimento da economia nacional.
Essa situação acelerou os processos internos nas entidades de prática desportiva – que envidavam seus maiores esforços no sentido de criação e geração de novas receitas – visando um novo perfil de público-alvo: torcedores com poder http://aquisitivo e entendimento mínimo de mercado financeiro.
Registre-se, por oportuno, que a conta do art. 3º da lei 10.671/03 (Estatuto do Torcedor), as entidades de prática desportiva equiparam-se a fornecedores, nos termos da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Desse modo, o torcedor é visto como consumidor, à guisa do inc. II, do art. 41 do Estatuto do Torcedor e, portanto, goza da prerrogativa de vulnerabilidade frente ao mercado de consumo.
O C.R. Vasco da Gama, dentre outras entidades de prática desportiva, capitaneou a iniciativa no mercado de cripto e lançou um fan token denominado "Vasco Token". O Vasco token "são ativos digitais que representam uma parcela de um ativo real. No caso do Vasco Token, são potenciais direitos de crédito do Vasco referentes ao mecanismo de solidariedade, que remunera os clubes pela formação dos atletas. Ou seja: você vai ter um pedacinho digital dos direitos do Vasco ao mecanismo de solidariedade dos jogadores formados em sua base."1
O mecanismo de solidariedade foi um instituto jurídico criado pela FIFA. Nos itens 2 do Anexo 5 do Regulations on the Status and Transfer of Players2 a entidade máxima do futebol dispõe que no caso de transferência internacionais, o clube formador terá um percentual do valor desta cessão de direitos federativos e econômicos, graduado de acordo com o tempo de sua formação. A saber: "A training club is entitled to receive (a proportion of) the 5% solidarity contribution in the following cases: a) a professional player is transferred, either on a definitive or loan basis, between clubs affiliated to different associations; b) a professional player is transferred, either on a definitive or loan basis, between clubs affiliated to the same association, provided that the training club is affiliated to a different association."
Esta regra foi importada e introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelas mãos da lei 12.395/11 que gerou o art. 29-A da lei 9.615/98 (Lei Pelé). Dispõe a norma em comento que: "Art. 29-A. Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova entidade de prática desportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as entidades de práticas desportivas que contribuíram para a formação do atleta, na proporção de: I - 1% (um por cento) para cada ano de formação do atleta, dos 14 (quatorze) aos 17 (dezessete) anos de idade, inclusive; e II - 0,5% (meio por cento) para cada ano de formação, dos 18 (dezoito) aos 19 (dezenove) anos de idade, inclusive.
Caberá à entidade de prática desportiva cessionária do atleta reter do valor a ser pago à entidade de prática desportiva cedente 5% do valor acordado para a transferência, distribuindo-os às entidades de prática desportiva que contribuíram para a formação do atleta. Pela regra geral do art. 286 do Código Civil o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a Lei, ou a convenção com o devedor, portanto a rigor o clube poderia fazer essa cessão com pessoa incerta e não sabida.
A lei 12.395/11 inseriu o art. 27-B na Lei Pelé, através da qual torna nula de pleno direito cláusula de contrato firmado entre as entidades de prática desportiva e terceiros, ou entre estes e atletas, que possam intervir ou influenciar nas transferências de atletas ou, ainda, que interfiram no desempenho do atleta ou da entidade de prática desportiva, exceto quando objeto de acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Por se tratar de um valor mobiliário, caso um torcedor-investidor detenha consigo um número significante de tokens, o seu poder econômico poderá influenciar nas transferências de atletas ou até mesmo no clube formador. Por outro lado, o torcedor-consumidor, vulnerável por excelência, poderá sofrer com a desídia do clube formador, já que normalmente é necessário acionar o Players’ Status Committee, porque o novo clube sequer tem conhecimento de quem seja o clube formador.
Saindo da esfera internacional e adentrando na doméstica, o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol3 (RNRTAF) da CBF dispõe no art. 59 que "O valor do mecanismo de solidariedade será pago pelo novo clube do atleta sem necessidade de solicitação por parte dos clubes formadores do atleta dentro dos 30 (trinta) dias seguintes à sua inscrição pelo novo clube." O clube formador que não receber o pagamento ao qual faz jus pode postular o valor devido pelo clube inadimplente junto à Câmara Nacional de Resolução de Disputas (órgão da CBF com força de Tribunal Arbitral).
O art. 61 da RNRTAF, consoante a legislação nacional e a normativa da FIFA, também dispõe que nenhum clube pode ajustar ou firmar contrato que permita a qualquer das partes, ou a terceiros, influenciar em assuntos laborais ou relacionados a transferências, independência, políticas internas ou atuação desportiva.
Por força do art. 18 ter do FIFA, é vedado que um terceiro obtenha o direito de receber parte ou a integralidade de valores pagos ou a serem pagos por uma eventual transferência de atleta entre clubes, ou de obter qualquer direito em relação a uma eventual transferência.
Considerando, outrossim, esse arcabouço normativo, é duvidosa a legalidade do fan token.
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1- Disponível http://aqui. Visitada em: 17/11/2021.
2- Disponível http://aqui. Visitada em: 18/11/2021.
3- Disponível http://aqui. Visitada em: 18/11/2021.
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BRASIL. Constituição da República. Disponível http://aqui.
BRASIL. Decreto Legislativo 06/20. Disponível http://aqui.
BRASIL. Mensagem 93/20. Disponível http://aqui.
BRASIL. Medida Provisória 926/20. Disponível http://aqui.
BRASIL. Lei 10.671/03. Disponível http://aqui.
BRASIL. Lei 8.078/90. Disponível http://aqui.
BRASIL. Lei 12.395/11. Disponível http://aqui.
BRASIL. Lei 9.615/98. Disponível http://aqui.
BRASIL. Lei 10.406/02. Disponível http://aqui.
CBF. Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol. Disponível http://aqui.
FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players. Disponível http://aqui.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 6.341. Disponível http://aqui.
VASCO TOKEN. Disponível em: Disponível http://aqui.